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Capítulo 3: Agenda de Direitos Humanos e Políticas de Igualdade Racial

3.1 Atores e Agendas Internacionais em Saúde e Direitos Humanos

3.1.1 Saúde Internacional e Direitos Humanos

O cenário internacional da saúde também é depositário de uma das principais questões que circulam por diversos setores da vida social, por ora apontadas como ações em prol da cidadania e dos Direitos Humanos e, mais recentemente, discussões em torno dos temas de territorialização e políticas identitárias (LIMA, 2010). Cada vez mais, a saúde e outros setores da vida social discutem a importância dos aspectos étnico-raciais na formulação de ações e oferecimento de serviços públicos de seguridade social.

A formulação e implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra em âmbito nacional levantou debates acalorados na sociedade brasileira e continua a conclamar estudiosos da área a pensar o melhor modo de trabalhar a interface etnicidade- identidade-saúde, pois implica debruçar o olhar sobre as especificidades da identidade sociocultural de determinados grupos étnicos, relacionando-os às necessidades em saúde.

Hall (2009) aponta mudanças no atual cenário político-cultural internacional marcado por políticas da diferença – lutas sociais pela diferença, novas identidades e sujeitos políticos. Problematiza o fato de que a atuação dos movimentos em prol do resgate de uma cultura popular negra, até então marcada por um „essencialismo estratégico‟, pode necessitar, no

presente momento, de novas estratégias de intervenção que extrapolem a essencialização das diferenças – “tradições deles versus as nossas” (p. 326) – e possam formular estratégias dialógicas e formas híbridas da estética diaspórica. Todo modo, são as lutas pelo reconhecimento das diferenças que trazem à tona, inclusive no setor saúde, o conceito de equidade, fundamental para as justificativas das políticas compensatórias, focalizadas, ou mesmo políticas de ação afirmativa no mundo.

Paim (2006) e Paim e Silva (2010) enfatizam que documentos técnicos e doutrinários da área da saúde, especialmente aqueles referentes à criação da OMS, à declaração de Alma- Ata, à implantação de sistemas universais também são responsáveis pelo reconhecimento e inclusão de conceitos/noções como universalidade, equidade e integralidade, entendidas como princípios e diretrizes das ações em saúde. Os autores acima demonstram que, diante de um cenário internacional marcado por desigualdades entre países, regiões, classes, grupos sociais e étnico-raciais, diversos organismos internacionais recorreram à noção de equidade como uma tentativa de explicação e resolução dos problemas das desigualdades étnico-raciais em saúde.

A noção de equidade, trazida por tais organismos internacionais, passa a ser o carro- chefe das proposições em saúde e direitos humanos. Inicialmente discutidos sob os conceitos de igualdade e justiça, os organismos justificam que a equidade implica em melhores condições de saúde, em diminuição das diferenças evitáveis e injustas ao mínimo possível, em serviços de saúde que garantam a atenção em função da necessidade e em função da capacidade de pagamento (OPS, 1997 apud Paim, 2006). Paim (2006) faz severas críticas a esse modelo de construção de ações em saúde que leva em conta um conceito amplamente controverso e impreciso. Tal conceito adquire grande permeabilidade dentro de documentos da saúde a partir das Normas Operacionais Básicas (NOB‟s) no Brasil e em documentos em prol da saúde da população negra, fomentado principalmente por estas agências internacionais que definem o termo e que, no caso da saúde, são defensores de políticas de saúde focalizadas.

É nesse bojo que a saúde da população negra continua a sofrer uma série de influências e demandas de atores internacionais para a sua organização no Brasil. Tome-se como exemplo os principais cadernos lançados em prol das discussões sobre saúde da população negra e racismo no país; muitos desses materiais foram financiados e elaborados por atores como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ou o Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID). Essas e outras organizações e fundações filantrópicas

internacionais – Fundação Ford, MacArthur, Fundação Rockefeller, Fundação das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), etc. foram responsáveis pelo fomento de ideias, concepções e valores sobre as iniquidades no mundo, especialmente as iniquidades raciais.

O documento lançado pelo DFID “Subsídios para o enfrentamento do racismo na saúde”, elaborado em conjunto com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Ministério Público Federal (MPF), OPAS E PNUD, no ano de 2007, e outro documento elaborado pela equipe de país do Sistema das Nações Unidas no Brasil fazem um resgate dos principais pactos e convenções internacionais dirigidas à busca pela garantia dos direitos humanos, especialmente focalizadas no âmbito da promoção da igualdade racial e das políticas afirmativas. São descritos convenções e decretos dos quais o Brasil é signatário. Aqui foram resumidos nas seguintes declarações:

Carta das Nações Unidas de 1945; Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU – 1948; Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, em 1958 contra as formas de discriminação na busca por trabalho e emprego; Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Racial – ONU – 1965, ratificada pelo Brasil em 1968; Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos/Protocolo Facultativo de 1966 que salvaguarda direitos importantes como o direito à autodeterminação, os princípios da não- discriminação, a igualdade entre os sexos, dentre outros; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as mulheres – CEDAW, ONU, 1979. Por último o documento analisa a Declaração e Plano de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas – ONU, 2001 (BRASIL, 2010; DFID, 2007).

Uma das principais Conferências acima listada – a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas – também conhecida por Conferência de Durban tem sido discutida e analisada por diversos autores como uma das mais instigantes e controversas conferências mundiais contra o Racismo, porém um dos momentos cruciais de rediscussão e envolvimento mais sério de diversos atores sociais na causa dos Direitos Humanos e das Ações Afirmativas (MAIO et al, 2010; MAIO, MONTEIRO, 2005; ALVES, 2002; BAIRROS, 2002; DOPCKE, 2001). A Conferência de Durban, apesar das muitas dificuldades que apareceram ao longo de sua realização, não deve ser vista e analisada do mesmo modo que as anteriores. Alves (2002) confirma a seriedade da questão no âmbito internacional:

Na verdade, porém, o racismo e a discriminação racial, juridicamente proscritos, nunca haviam sido seriamente abordados em sua incidência planetária. Qualquer reunião internacional sobre a matéria era deturpada pela existência do apartheid sul- africano, objeto de fixação de atenções pelo mal que trazia em si e como ameaça à paz e à segurança, agravada pelo contexto de confrontação bipolar (ALVES, 2002, p. 200).

Ora, o mundo globalizado exigia uma atenção maior, por parte das nações, para as manifestações estruturais do racismo contemporâneo, que, sutilmente ou não, ainda mantém grandes contingentes populacionais em situação de inferioridade racial, “dissimulados em direitos civis distorcidos”. Esse reconhecimento, acrescido a outros elementos internacionais notadamente fortalecidos pelos surtos de violência racista e/ou xenófoba no mundo (agressões a imigrantes na Europa, ressurgimento de doutrinas supremacistas brancas, recrudescimento de conflitos étnico-religiosos asiáticos, vandalismo dos skinheads, etc.), pelo fim do apartheid sul-africano e por um efeito do multilateralismo – ao mesmo tempo em que era responsável pela melhoria do globo, abriu a porta para uma infinidade de tensões e embates bélicos baseados em distinções segundo raça, cor e ascendência nacional ou étnica – justificou, deste modo, a premente necessidade de realização desta conferência (idem, ibidem).

As principais dificuldades e controvérsias de Durban giraram em torno de quatro grandes questões. A primeira delas relacionou-se à insistência dos países árabes em querer, mais uma vez, equiparar o sionismo ao racismo, gerando conflitos entre o estado de Israel e as outras nações no tocante às ações perpetradas por aquele estado contra a Palestina. Tanto Israel quanto os EUA se retiraram da Conferência diante das propostas que iam se apresentando neste contexto. A segunda dificuldade correspondeu às tentativas de reconhecimento da escravidão como crime de lesa-humanidade e a consequente necessidade de pagamento de reparações para todos os países africanos. A ideia da reparação foi rechaçada por diversos países, especialmente europeus, que não admitiam a condenação do colonialismo e suas consequências. O máximo que os países ocidentais puderam aceitar foi a admissão de „eventuais males ou excessos do colonialismo‟ (ALVES, 2002; BAIRROS, 2002; DOPCKE, 2001).

Os temas da conferência – fontes de muitas controvérsias entre os países – foram assim organizados, não necessariamente nesta ordem: 1) Origens, fontes, causas, formas e manifestações contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; 2) Vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; 3) Medidas de prevenção, educação, e proteção voltadas para a erradicação do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e da intolerância correlata nos níveis nacional, regional e

internacional; 4) Provisão de remédios efetivos, recursos, correção, assim como medidas [compensatórias] e de outra ordem nos níveis nacional, regional e internacional; 5) Estratégias para alcançar a igualdade plena e efetiva, inclusive por meio da cooperação internacional e do fortalecimento das Nações Unidas e outros mecanismos internacionais para o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância correlata, assim como o acompanhamento de sua implementação (ALVES, 2002; BRASIL, 2001).

O terceiro ponto polêmico da conferência voltou-se aos temas três e cinco “medidas de prevenção” e “estratégias para alcançar a igualdade plena”, posto que a expressão ação afirmativa, não sendo consenso, foi retirada da discussão, diga-se de passagem, pelo próprio país que a cunhou – os EUA. O quarto e último controverso elemento aqui exposto diz respeito às discussões e posicionamentos de algumas delegações europeias no que concerne a não aceitação da noção de raça. Por mais que a recusa da noção de raça fosse bem justificada por muitas dessas delegações, a não-aceitação terminava por complicar ainda mais as discussões, tornando-as mais acirradas. Alves (2002) comenta que a não existência de raça recairia no reconhecimento de não existência do racismo – conclusão que, além de pouco lógica, jamais seria levantada por qualquer delegação naquela conferência.

De um modo geral, especialmente para os países da América Latina e, com grande destaque o Brasil, os efeitos da controversa Conferência de Durban foram bastante positivos. Seus documentos aprovados ratificaram um compromisso dos Estados a adotarem ações para a eliminação da desigualdade racial e metas a serem alcançadas em suas políticas universalistas (BAIRROS, 2002). No contexto em que se realizou, essa conferência foi, aos olhos de especialistas mais otimistas, a melhor conferência que se poderia realizar abrangendo temas tão amplos quanto polêmicos, numa ordem internacional que tende a tocar a economia neoliberal à revelia das questões sociais, ao multilateralismo e à diplomacia parlamentar:

(...) as responsabilidades pelos problemas verificados em Durban são de diversos atores. A responsabilidade pela implementação da maioria das recomendações – como aquelas concernentes à “medidas afirmativas” que começaram a ser aplicadas no Brasil depois dessa conferência – dependerá, por sua vez, como é o caso de qualquer documento emergente de encontro multilateral, da seriedade com que cada Estado encara as decisões coletivas de que tenha participado (e, com exceção de Israel e dos Estados Unidos, todos foram partícipes). Dependerá também da capacidade de utilização desses documentos pela sociedade civil. Dependerá finalmente, em última e mais definitiva instância, de uma conscientização generalizada – hoje em dia praticamente impossível – de que, como diz a Declaração de Durban (...), somente com a criação de um futuro de condições mais equânimes, “baseado em nossa comum humanidade em toda sua diversidade”, a globalização poderá ter efeitos antidiscriminatórios (ALVES, 2002).