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Capítulo 2: Formação da Sociedade Brasileira: Racismo, Ideologia e Poder

2.3 Raça, Cor e Saúde – Dilemas de Uso e Classificação Sócio-racial

Uma vez apresentada a noção de raça na sessão anterior, neste momento, torna-se necessária algumas considerações atuais sobre seu uso nas ciências sociais, mas, especialmente, na política e no campo da saúde. Assume-se neste trabalho o percurso apontado por Guimarães (1995, 2002, 2003, 2005) para a legitimidade do uso da categoria

raça em estudos e pesquisas, especialmente no campo da saúde, pois, como ele mesmo nos diz, a raça possui um potencial crítico que pode desmascarar sua noção errônea de raça biológica, fundamentadas em práticas de discriminação e marcadas pelo significado da cor neste país.

A retomada do conceito de raça pela sociologia brasileira fez-se, contudo, sem que se desse muita atenção às implicações teóricas e políticas do seu uso. Banido das ciências sociais desde o começo do século, substituído, com sucesso, no senso comum brasileiro, pela noção de cor, tomada como reprodução imediata de uma realidade objetiva e empírica, o anti-racialismo começou, todavia, a chocar-se contra os fatos ululantes da discriminação racial no Brasil. Essa redução do anti-racismo ao anti-racialismo acabou por contrariar os interesses e os valores do povo negro brasileiro, que ressuscitou – na sua luta contra o mito da democracia racial – o conceito de „raça‟, tal como é usado no senso comum (GUIMARÃES, 2005, p. 71).

A noção de cor, amplamente discutida e, quiçá, retoricamente utilizada entre os teóricos do século XX8, especialmente no período da década de 30, ainda parece precária no âmbito das ciências sociais e passível de novas formulações. Trata-se de uma categoria subjetiva, expressa em muitas nuances e denominações. Guimarães (2003) a refere como uma categorial racial, pois voltada a classificação de pessoas, pretos, mulatos, pardos, cores, que, por trás, detêm a categoria raça. Esta parece ser uma categoria importante a ser explorada, dado que os indicadores atuais referem-se sempre a cor ou raça para identificação da identidade da população.

Paixão e Carvano (2008b), avaliando a presença da variável cor ou raça no interior dos sistemas censitários brasileiros, demonstram o quesito étnico-racial como um dos mais expressivos para o campo da sócio-antropologia nas pesquisas demográficas. Os autores afirmam que tais variáveis relacionam-se diretamente aos padrões de inter-relacionamento étnico-raciais no interior de cada sociedade ou subgrupos populacionais, gerando dilemas sobre o modo de entrevistar e interpretar as populações. Quatro são os fatores por eles apontados como responsáveis por uma malha complexa de análise dos elementos étnico- raciais nos sistemas estatísticos: 1 – forma como cada indivíduo identifica a si mesmo em termos de aparência física, nacionalidade e etnicidade; 2 – tipo de ideologia dominante na sociedade sobre tais variáveis e o modo como são valoradas ou estigmatizadas; 3 – lutas sociais e capacidade de mobilização dos grupos discriminados e 4 – comportamento dos grupos étnico-raciais dominantes em sua relação de dominação e/ou interação com os grupos étnico-raciais oprimidos.

8 Martínez-Echazábal analisa as rupturas epistemológicas da década de 30, levantando a questão sobre um

possível deslocamento retórico ou real mudança conceitual nos discursos sobre as relações raciais e étnicas no país.

As dificuldades em se constituir um sistema classificatório adequado, levando-se em conta as definições de grupos étnicos, nacionais ou raciais/ aparência física, são apontadas até mesmo pela Divisão de Estatísticas do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU), corroborando-se percepções de que tais análises não deveriam recair em dimensões essencialistas, abrigando os indivíduos em uma identificação apriorística qualquer (PAIXÃO e CARVANO, 2008b). Por este motivo, a dimensão subjetiva se apresenta como dado nas coletas e análises desta magnitude.

As análises demográficas brasileiras utilizaram as variáveis raça e cor nos censos desde 1872. As variáveis indagadas oscilaram entre raça, cor e raça/cor, porém, sempre referidas a tipos classificatórios mais próximos da variável cor: brancos, pretos, pardos, caboclos, mestiços, amarelos, indígenas, etc. Atualmente, os questionários enfatizam as duas variáveis, perguntando sempre “a sua cor ou raça é”. Além disso, os principais cadastros de registro, no âmbito do Datasus, geram dados sobre raça/cor no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), no Sistema de Informação de Nascidos Vivos (Sinasc) e no Sistema Nacional de Agravos Notificados (Sinan) (PAIXÃO e CARVANO, 2008b).

Guimarães (2005) afirma que um indivíduo só pode ser classificado num determinado grupo de cor se, por trás dele, existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado, portanto:

(...) não há nada espontaneamente visível na cor da pele, no formato do nariz, na espessura dos lábios ou dos cabelos, ou mais fácil de ser discriminado nesses traços do que em outros, como o tamanho dos pés, a altura, a cor dos olhos ou a largura dos ombros. Tais traços só têm significado no interior de uma ideologia preexistente (para ser preciso: de uma ideologia que cria os fatos, ao relacioná-los uns aos outros), e apenas por causa disso funcionam como critérios e marcas classificatórios (GUIMARÃES, 2005, p. 47).

Neste sentido, os sistemas classificatórios de cor ou raça são antes sociais que biológicos, demarcando que a cor ou raça das populações existem, de um modo ou de outro, independente da maneira como cada sociedade opere seus sistemas de classificação (PAIXÃO e CARVANO, 2008b). No caso da saúde, espera-se de fato, que as categorias de construção de uma política refiram-se aos determinantes em saúde: os aspectos que tornam uma determinada população mais vulnerável. Estes fatores, a princípio, referem-se muito mais aos aspectos estruturais que os portadores de uma dada cor ou raça podem estar mais afetados. A incorporação do quesito raça-cor neste campo, ainda assim, provocou uma série de debates.

Identificamos, de um lado, alguns pesquisadores (MONTEIRO, 2004; FRY et. al., 2007) que questionam o uso da categoria raça. Destacam-na como um fenômeno social,

porém, enfatizam que sua utilização em estudos que recuperam especialmente a dimensão biológica do processo saúde-doença não poderia ser feita, pois, raça, sob esta ótica, não existe. Para estes autores, as doenças, mesmo doenças genéticas, possuem fatores psicossociais, históricos e econômicos em sua determinação. Deste modo, querem sinalizar que são as desigualdades sociais as responsáveis pelas iniqüidades em saúde e que o uso deste termo promoveria uma “racialização” de seus agravos. Além disso, destacam a complexidade do sistema classificatório e de cobertura e qualidade dos dados sobre raça nos sistemas de informação em saúde no Brasil.

Outra postura teórico-política é adotada: Lopes (2003, 2005) destaca a necessidade de uso da categoria raça, acentuando seu caráter mutável, deslocando-o de uma fundamentação biológica e afirmando sua propriedade social e política, necessária à superação do racismo na sociedade brasileira. O racismo brasileiro ocorre principalmente através do fenótipo do negro. Neste contexto, a raça passa a significar um “grupo de pessoas socialmente unificadas em virtude de seus marcadores físicos” (LOPES, 2003).

Ao cabo destas primeiras análises sobre as noções de raça e cor, renova-se a referência a Guimarães (2003) quando de sua ênfase na necessária localização teórica de determinadas categorias. Para o autor, qualquer conceito só faz sentido no interior de um discurso, especialmente quando se trata de temas sobre a identidade nacional. Assim, buscamos, neste projeto, um destaque para as concepções sobre raça presentes na base da produção de políticas de saúde, atentando para o fato de que o entendimento da produção de uma política de Saúde da população negra exige uma análise de suas principais categorias no interior dos discursos e práticas de seus atores políticos. Tais discursos e práticas podem apontar para a definição de posicionamentos racialistas e antiracialistas entre pesquisadores, governantes e militantes sociais.

Tais posicionamentos, entretanto, mesmo polarizados em torno dos embates racialistas X antiracialistas, ratificam a existência dos problemas sociais e das desigualdades a que está submetida a população negra no país. A vulnerabilidade persistente neste segmento populacional levou segmentos da sociedade brasileira a lutar por melhorias nas suas condições de vida. A atuação do movimento negro no âmbito da sociedade civil pareceu-nos fundamental, especialmente a partir da década de 80, para a busca por reconhecimento e cidadania – em consonância com as discussões sobre Direitos Humanos cada vez mais fortes no país. Vejamos, portanto, como tais direitos surgem no cenário internacional, repercutindo- se sobre o setor saúde, inclusive no Brasil.

Capítulo 3: Agenda de Direitos Humanos e Políticas de Igualdade