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Na pré-história, como nômades, os agrupamentos distinguiam-se fundamen- talmente do que hoje pode-se entender como Estado (seja na acepção moderna da palavra, que começa com Maquiavel, seja na acepção mais ampla, incluindo, por exemplo, as Cidades-Estado gregas). O conceito alemão de “gemeinschaft”25 faz bem esta distinção com “gesellschaft”26. “Gemeinschaft” engloba redes de relações pessoais, com regras não escritas gerindo a vida cotidiana, os rituais – enfim, o comportamento social típico das comunidades pré-modernas. Já “gesellschaft” aplica-se à urbe, onde o comportamento deixa de ser gerido por regras morais vivenciadas entre os pares e assume um caráter de leis racionais que visam ao bem comum. O conceito de “gesellschaft” implica, aqui, a definição de um Estado autônomo em relação a outros estados. Deixam de existir somente os laços de consangüinidade e surgem os laços calcados em outros interesses.

A forma e a importância de como vários aspectos que fortalecem estes laços se engendram (proteção, aceitação social por parte dos pares, acúmulo de riquezas, transmissão cultural, manutenção de status quo, são alguns dos exemplos mais comuns) traçam uma distinção entre os vários teóricos que se debruçaram sobre o assunto. Além disso, no âmago do problema, surge uma questão ontológica: são estes impulsos e motivações inatos (divinos ou não), ou são eles constructos sociais? A questão está longe de ser supérflua, pois de sua resposta depende como se entendem as relações entre as várias instâncias sociais.

Na Antigüidade começaram a se estratificar os primeiros sistemas políticos e cabe aos gregos a importante contribuição de sistematizar uma metodologia (a dialética), a ciência da moral (que rege a vida segundo regras pré-estabelecidas E racionais) e uma cosmogonia orientada para a busca da verdade:

“Sócrates: Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nos inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nos matar.”

(Platão, 1972, p.125)

Até o surgimento de Sócrates, as regras que orientavam a conduta humana calcavam-se em regras divinas. É com Sócrates que se busca uma razão humana para construir conceitos abstratos e esta construção é realizada com o re-pensar dos próprios conhecimentos em confronto com a experimentação face a outros conceitos – o método dialético. Platão, como discípulo de Sócrates, percorre seus caminhos em diálogos para definir um ideal puro no campo das idéias já pré-existentes que se encontram obscurecidas pelos sentidos.

Fechando a tríade dos clássicos gregos, chega-se a Aristóteles, que desenvolve o silogismo como método para analisar o mundo. A partir dos silogismos, busca estudar a essência do ser, seja em potencialidade, seja em ato. Um tronco de árvore, por exemplo, tem a potencialidade de se transformar em um móvel, mas somente quando o artesão realizar tal transformação é que esta potencialidade se efetivará.

Esta discussão – sobre potencialidade e concretude – retornará no mundo contemporâneo, onde os limites entre vida e morte voltam a ser questionados. Para citar um exemplo recente, é a discussão que se encontra em relação ao uso das células-tronco de embriões. Outras reflexões sobre cidadania, direitos e deveres são perpassadas pelos modelos religiosos, científicos e políticos do mundo ocidental, cujas raízes se encontram na cultura greco-romana, que serviu como modelo para a constituição de vários Estados Modernos.

O voto secreto, por exemplo, é uma invenção romana e hoje é considerado um dos fundamentos das democracias, tendo se disseminado com a incorporação, pelas democracias, da implementação de plebiscitos (muito utilizado em questões controversas, como aquelas abordadas pelas biotecnologias).

É claro que estes sistemas sofreram profundas alterações, pois os conceitos de cidadania, que já então surgiam, eram diferentes daqueles hoje adotados:

“E verdade que os primeiros pensadores que se debruçaram sobre a definição do que hoje entendemos por cidadania buscaram inspiração em certas realidades do mundo greco- romano, que conheciam por intermédio dos clássicos transmitidos pela tradição manuscrita do Ocidente: a idéia de democracia, de participação popular nos destinos da coletividade, de soberania do povo, de liberdade do indivíduo. A imagem que faziam da cidadania antiga, no entanto, era idealizada e falsa. A cidadania nos Estados-nacionais contemporâneos é um fenômeno único na História. Não podemos falar de continuidade do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo.”

(GUARINELLO, in PINSKY; 2003, p. 29)

As estruturas do pensamento na Antigüidade, portanto, foram respostas a uma organização bem definida da sociedade e da economia, que se deslocara do nomadismo e da agricultura para o comércio e a urbe. Da Antiguidade, é possível realizar uma articulação direta com a Idade Contemporânea, para verificar o que ocorre quando uma nova estruturação econômica e social surge.

Nesta trajetória, a Idade Média, marcada pelo feudalismo e pela consolidação do cristianismo, e a Idade Moderna, com seus Estados Nacionais, a expansão colonialista e o ressurgimento da ciência serão deixadas em suspensão.

A Idade Contemporânea se distingue, dentre outros aspectos, porque busca se debruçar sobre o presente (e um passado que se faz presente) para dissecá-lo – e não para prescrever métodos com vistas à construção de uma sociedade “ideal” e utópica.

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