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Práxis criadora e práxis reiterativa: dois níveis da ação humana sobre a matéria. É este agir do sujeito – transformador e inovador – que lhe dá identidade. É a prática do interpretar humanístico do mundo, mas o ato criativo enceta outras criações, fazendo com que tal práxis jamais se torne estanque. A práxis criativa apresenta aspectos que lhe são únicos, conforme colocado por Adolfo Vazquez:

“a) unidade indissolúvel, no processo prático, do interior e o exterior, do subjetivo e o objetivo;

b) indeterminação e imprevisibilidade do processo e do resultado;

c) unicidade e irrepetibilidade do produto.”

(VAZQUEZ, 1968, p. 251)

No entanto, a repetição de um modelo anteriormente proposto constitui-se, em si, uma práxis também: é a práxis reiterativa, acentuada pela revolução industrial e que se torna mais palpável no objeto fílmico, alvo de análise nesta dissertação. O cinema, conforme coloca Malraux (s/d) é uma indústria e, sendo assim, apresenta aspectos tanto de arte, quanto de indústria sendo, neste caso, um dos melhores exemplos para se analisar as rupturas da modernidade e da pós-modernidade, bem como os conflitos entre os postulados sujeito como razão e do sujeito como emoção, com sua linguagem específica que desvela estruturas sócio-culturais:

“Parce qu’il est aussi une industrie, lê cinema subi plus que tout autre art l’influence, la marque du systeme economique, politique et social du pays producteur.”22

(DAQUIN, 1960, p. 39)

22 Porque ele também é uma indústria, o cinema, mais do que qualquer outra arte, sofre as marcas do

Embora indústria, o filme continua arte, postura reiterada por diretores, críticos, e semióticos. Christian Metz (1972) constrói seu modelo de análise do discurso cinematográfico a partir da identificação de unidades mínimas significantes, que são os planos, mas eles não podem ser decompostos, pois se articulam para formar o movimento, essencial para identificar o discurso fílmico. Ou seja: não existem unidades discretas e o cinema se faz, assim, sempre presente (mesmo quando a ação transcorre no passado, a visualização se dá no presente). Como o movimento desloca-se no tempo, o cinema depende, fundamentalmente, da memória. É importante salientar que a linguagem cinematográfica agrega várias linguagens simultaneamente (verbal, musical, pictórica, teatral, etc.) e que esta multiplicidade discursiva reforça o impacto do filme como arte:

“...movies are an art, fullfledged conscious, of legitimate birth and needing no more defenses or rationales.”23

(GILMAN, 1974, p. 60).

No entanto, a força de cooptação do capitalismo e da indústria para reduzir a práxis artística é sublinhada por diversos autores, a começar por Brecht (PEIXOTO, s/d, p. 60), que encetou uma longa disputa com a produtora (Nero Films), que adaptou sua peça “A ópera dos três vinténs” para o cinema. Brecht perdeu o processo e declarou:

“O processo tinha por objetivo mostrar a impossibilidade de colaboração com a indústria cinematográfica. Este objetivo foi atingido quando perdi o meu processo. Este processo atestou, claramente, para todos os que saem ver, os defeitos da indústria cinematográfica e os defeitos da jurisprudência.”

(PEIXOTO, s/d, p. 60)

Vêem-se, aqui, os aspectos que criam um campo comum entre capitalismo, Direito e o Estado moderno e seus déficits. Contra-argumentam os entusiastas do resgate do cinema como discurso artístico que este se coloca ao alcance de todos e, portanto, legitima-se como arte popular que visa superar alguns dos déficits apontados por Sousa (2001). Tal colocação afoita não resiste à pergunta que distingue entre fruição e elaboração, cabe aqui o questionamento, já colocado por Brecht, se a elaboração da obra era de fato democrática e reitera que a compreensão da linguagem cinematográfica, como de resto qualquer outra linguagem, artística ou não, é construída

“... as panorâmicas verticais, horizontais ou oblíquas desorientam o primitivo. Ele não sabe que é a câmara que se move. Vê árvores deslocando-se sobre o ecrã; edifícios subindo ou descendo; objectos normalmente imóveis que se movem. A sua atenção afasta-se inteiramente da ação do filme... Não compreende nada! Por vezes mesmo julga que se divertem a sua custa. Zanga-se e... lança pedras para o ecrã!”

(BEVER, 1974, p. 302)

Planos, movimentos de câmera, montagens, efeitos – todos estes elementos se constituem em nova linguagem, em novo discurso a ser analisado para lançar uma compreensão do sujeito que se coloca no mundo e que reconstrói este mesmo mundo, pois “a semiologia mostra-nos o universo dos signos (...) o universo das ideologias.” (ECO, 1976, p. 85).

Ora, o discurso artístico e o discurso fílmico, como tal, se constituem em sistemas simbólicos, que são estruturantes porque são estruturados (BOURDIE, 2003). Ao estabelecerem relação de comunicação, estabelecem, simultaneamente, relações de poder, cumprindo uma função de dominação:

“Contra todas as formas do erro ‘interaccionista’, o qual consiste em reduzir as relações de força a relações de comunicação, não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular poder simbólico.”

(BOURDIEU, 2003, p.11)

O campo da arte, entendo-se a noção de campo como a especificidade de uma área definida, um “espaço social de relação objetivas” (BOURDIEU, 2003, p. 64) e a derivação de que todos os campos possuem elementos comuns. Um dos que se destacam para efeitos desta dissertação é aquele considerado pelo autor como fundamental para o universo cultural: “a lógica propriamente mágica da produção do

produtor e do produto como feitiços” (BOURDIEU, 2003, p. 67).

Este aparente “feitiço”, que o cinema, ao “re-apresentar” a realidade, enfatiza não deve, no entanto, encobrir que ele se realiza para além e para aquém do imaginário, desempenhando um duplo papel ao sintetizar ciência e arte, indústria e artesanato (este último como expressão individual de autoria):

“É certo, no entanto, que, contra todas as espécies de escapism que levam a achar na arte uma nova forma da ilusão dos mundos imaginários, a ciência deve apreender a obra de arte na sua dupla necessidade: necessidade interna desse objecto maravilhoso que parece subtrair-se à contingência e ao acidente, em suma, tornar-se necessário ele próprio e necessitar ao mesmo tempo do seu referente; necessidade externa do encontro entre uma trajectória e um campo, entre uma pulsão expressiva e um espaço dos possíveis expressivos, que faz com que a obra, ao realizar as duas histórias de que ela é produto, as supere.”

(BOURDIEU, 2003, p. 70)

Ora, tal superação pode se revestir, assim, de um indicador de tendências em ebulição, transformadoras, que apontam para saídas e paradigmas emergentes. Poder-se- ia, então, analisar o discurso do sujeito enquanto arte que subverte, entendendo aqui o conceito de anarquia que dissolve o Estado (BAKUNIN, 2003). É uma arte que se institui coletivamente (como coletivo é a práxis cinematográfica), desgarrando-se das formas autoritárias da religião, da legislação e de outras abordagens institucionalizadas (BAKUNIN, 2000). É um discurso libertador que se apresenta como meio para:

“... desarrollarse la inteligencia, la dignidad y la felicidad de los hombres,; pero no de esa libertad formal, concedida, medida y regulada por el Estado, cuya existencia es una eterna falsedad que en realidad sólo representa el privilegio de unos cuantos sobre la esclavitud del resto; ni tampoco de aquella libertad individualista, egoísta, insatisfactoria para el espíritu e ficticia, por Jean-Jacques Rousseau y por todas las demás escuelas del liberalismo burgués, que considera al llamado derecho público representado por el Estado como el límite del derecho de cada uno, lo que desemboca siempre y de forma necesaria en la liquidación del derecho de cada uno.”

(BAKUNIN, 1978, p. 17-18).

É este sujeito, como sujeito de discurso e sujeito que se faz em um discurso de arte, que se apresenta como sujeito de direitos.24

Para fazer a interpolação entre estas duas relações – sujeito e direitos – é importante analisar a vertente de como direitos e deveres se constituem, assunto que será alvo do próximo capítulo.

2 Direitos e deveres

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