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Da ponderação de princípios

PARTE II UMA BREVE TEORIA DOS PRINCÍPIOS

13. Da ponderação de princípios

Como visto do tópico precedente, de início, não há que se falar em prevalência de um princípio constante do ordenamento sobre outro (de igual natureza) no ordenamento jurídico, senão diante da análise do caso concreto, em que se decidirá, com toda a interferência valorativa do contexto, aliada ao grau de subjetividade imprimido pelo intérprete/aplicador, qual norma jurídica lhe é aplicável.

É a pragmática, a casuística, como resultado da aplicação de normas jurídicas permeadas de valores aos casos em concreto, sobrepondo-se a toda a atividade

Tributário, n.º 61, p. 86: “A segurança jurídica é, por excelência, um sobre princípio.”

57 Bandeira de Mello, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Malheiros. São Paulo: 1978.

científica que delas não se utilize. A respeito da influência da subjetividade nos atos de intepretação/aplicação, vale o parêntesis concernente à obra de Norberto Bobbio, que ao se pronunciar sobre o dever de imparcialidade do juiz, já atentava para a carga de subjetividade do aplicador da norma individual e concreta: “O preceito de imparcialidade é necessário, porque a aplicação de uma norma ao caso concreto nunca é mecânica e requer uma interpretação na qual intervém, em maior ou menor medida segundo os diferentes tipos de lei, o juízo pessoal do juiz”. 58

Ou seja, diante de uma situação concreta, em que apresentada a dúvida sobre se deva ser aplicado o princípio A ou o princípio B, é que o intérprete/aplicador refletirá sobre as conseqüências e renúncias decorrentes da aplicação de um ou outro princípio, antes de declarar em que sentido é o seu ato aplicativo (decisório).

Essa sistemática decorre da própria natureza lógico-dialética do Direito, que tem como principal caractéristica a contraposição entre tese (princípio A), antítese (princípio B) e síntese (interpretação prevalecente ou decisão, necessariamente aplicativa de um ou outro princípio; ou mesmo dos dois princípios, de forma conjunta, sendo um deles em acepção diversa e mitigada da pretendida pela parte). É a contraposição dialética entre princípios.

Repita-se aqui um primeiro esclarecimento: a afirmação de que inexistiria uma hierarquia entre princípios fundamentais foi feita com ressalva (“de início”), em razão da conclusão expressada pelo tema do presente trabalho, que tem no Princípio Democrático a norma jurídica fundante de toda a atividade tributária estatal.

Cabe, ainda, um segundo esclarecimento: a despeito do objeto principal do presente trabalho resumir-se à demonstração do Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade tributária estatal e à proposta de uma alternativa intepretativa/aplicativa dos seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário,

58 Bobbio, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia clássica e as lições dos clássicos. 11ª tiragem. Campus.

entendemos que há um valor maior a ser tutelado no ordenamento, sem o qual, não há que se falar sequer em democracia, qual seja, o direito à vida. Tanto é assim que o direito à vida é disposto na Constituição Federal como a primeira garantia de ordem fundamental do extenso rol do art. 5º da CF, constando, inclusive, do seu caput:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)”

Assim, a primazia sintática do valor “vida” sobre os demais valores constantes do ordenamento decorre não somente de uma previsão normativo-constitucional, mas, em maior grau, de uma inferência lógica, pois, onde não há vida, não há sociedade, e conseqüentemente, inexiste Direito (ubi societas ibi jus59). Atente-se que há aí uma primazia de ordem lógica de uma garantia sobre os princípios previstos no ordenamento, ainda que ambos sejam de ordem fundamental.

Em princípio, o valor “vida” não é recepcionado pelo ordenamento como uma norma-princípio, por intermédio da disposição constante do caput do art. 5º, da CF, mas, sim, como uma garantia, de ordem fundamental. E na verdade, nem precisaria sê-lo, por dois motivos: i) o direito à vida, como visto, é pressuposto lógico do próprio Direito, como bem cultural que este é (obra humana, como dito na apresentação); ii) a previsão do princípio fundamental pela dignidade da pessoa humana supre perfeitamente a necessidade de guarida do direito fundamental à vida, sob a forma de princípio (art. 1º, III, CF). É o que se depreende, inclusive, da leitura de recente decisão prolatada pela Ministra do Supremo Tribunal Federal Carmén Lúcia Antunes Rocha, que deu provimento monocrático a recurso de sua relatoria, ao fundamento da ocorrência de ofensa por parte da decisão atacada ao direito à saúde, sendo este uma das manifestações do direito à vida, o qual, nos termos em que expusemos acima, é amparado pelo ordenamento não só através da disposição constante do art. 5º, caput, mas, também, pela previsão constante do art. 1º, III:

59 “Onde há sociedade, aí há direito”, de acordo com a tradução fornecida por Spalding, Tarsilo Orpheu.

“AI 588169/RJ - RIO DE JANEIRO Data do julgamento 26/04/07 (...)

4. O direito à vida compreende o direito à saúde, para que seja possível dar concretude ao viver digno. A Constituição da República assegura o direito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e, em sua esteira, todos os meios de acesso aos fatores e condições que permitam a sua efetivação. (...). Esse princípio constitui, no sistema constitucional vigente, um dos fundamentos mais expressivos sobre o qual se institui o Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III). (...)”

(Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora)

Vê-se da decisão da relatora, numa clara correlação com o tema do presente trabalho, a decisão pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, constante do art. 1º, III, da Constituição Federal, como sendo “um dos fundamentos mais expressivos” do Estado Democrático de Direito.

Da análise de outra decisão da Suprema Corte, podemos perceber também a afirmação pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como elemento basilar do Estado Democrático de Direito:

“HC 91427 MC/BA – BAHIA (...)

A depender da situação concreta em apreço, por conseguinte, (...) a inobservância desses requisitos legais e constitucionais pode se configurar como grave atentado contra a própria idéia de dignidade humana - princípio fundamental da República Federativa do Brasil e elemento basilar de um Estado democrático de Direito (CF, art. 1o, caput e III). (...)”

(RI/STF, art. 192). Brasília, 22 de maio de 2007. Ministro GILMAR MENDES Relator

Da leitura das decisões do Supremo Tribunal Federal - órgão maior da jurisdição constitucional pátria – percebemos o tratamento normativo atribuído ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que pela previsão do art. 1º, III, da Constituição Federal, funciona como fundamento constitucional do valor “vida”, que, como visto, é o principal valor tutelado pelo nosso ordenamento jurídico.

Vale o comentário no sentido de que, em nítida ponderação de princípios mencionada (v. item 13), decidiu o Tribunal pela prevalência do direito à vida, quando contraposto ao Princípio da Livre Iniciativa:

“ADI 3512/ES - ESPÍRITO SANTO Relator(a): Min. EROS GRAU

Julgamento: 15/02/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno (...)

6. Na composição entre o princípio da livre iniciativa e o direito à vida há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

Depreende-se da decisão acima transcrita que, ao analisar o caso concreto, o Tribunal optou por fazer prevalecer a norma jurídica assecuratória do valor “vida”, em contraposição ao Princípio da Livre Iniciativa, rechaçando, assim, pretensão que desestimulasse a colaboração com interesses legislativos concernentes à saúde da população. De modo similar, decidiu o Tribunal, em outra ocasião, pelo direito à saúde como sendo decorrente do próprio direito à vida, denotando, ainda mais, a sua ascendência sobre os demais valores do ordenamento:

“RE-AgR 393175/RS - RIO GRANDE DO SUL Relator(a): Min. CELSO DE MELLO

Julgamento: 12/12/2006 Órgão Julgador: Segunda Turma (...)

O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. (...)”

Como última observação relativa ao direito à vida, parece-nos procedente a posição de José Souto Maior Borges, para quem o valor “vida” teria sido recepcionado pela Constituição não apenas como direito fundamental (art. 5º, caput, da CF), mas, sim, como um princípio, conforme previsão da sua parte relativa ao Meio Ambiente (art. 225, caput):

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo- se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

E parece ter razão o Professor pernambucano, pois, em ponderação de princípios efetuada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o direito a um meio ambiente equilibrado tem prevalecido, em relação ao Princípio da Livre Iniciativa:

“STA-AgR 171 / PR – PARANÁ Relator(a): Min. ELLEN GRACIE Julgamento: 12/12/2007

Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Ementa AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. IMPORTAÇÃO DE PNEUMÁTICOS USADOS. MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À SAÚDE PÚBLICAS. (...) 3. Ponderação entre as exigências para preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade econômica (art. 170 da Constituição Federal). 4. Grave lesão à ordem pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal). Precedentes. (...) 6. Agravo regimental improvido.”

“STA-AgR 118/RJ - RIO DE JANEIRO Relator(a): Min. ELLEN GRACIE Julgamento: 12/12/2007

Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Ementa AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. IMPORTAÇÃO DE PNEUMÁTICOS USADOS. MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À SAÚDE PÚBLICAS. (...) 4. Ponderação entre as exigências para preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade econômica (art. 170 da Constituição Federal). 5. Grave lesão à ordem pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal). Precedentes. (...) 7. Agravo regimental improvido.”

Retornado à questão da hierarquia entre os princípios, em relação a eventual questionamento sobre hipóteses de antinomia normativa entre outros princípios fundamentais e o Princípio Democrático, cumpre esclarecer que, na realidade, há uma hierarquia imanente ao ordenamento deste princípio em relação com os demais.

Veja-se, contudo, a conclusão de que inexiste um protoprincípio que prevaleça sobre os demais (senão o próprio Princípio Democrático, no dizer da

Constituição mesmo, e conforme será demonstrado adiante) decorre também, da inexistência de conceitos jurídicos absolutos. O exercício lógico-dialético acima referido e comumente utilizado nas decisões do Supremo Tribunal Federal, prática que permeia toda a atividade jurídica, e não somente as hipóteses de antinomia entre princípios, e é denominada por Humberto Ávila, em citação de Rodriguez de Santiago, como “ponderação de princípios”60.

Ao analisarmos a norma individual e concreta (item 9), afirmamos que o ato de aplicação do Direito (do disposto em seus textos legislativos), consiste numa tentativa de “objetivação da subjetividade” - característica inerente à natureza humana - resultante das múltiplas possibilidades de interpretação dos textos legislativos. Essa objetivação tem seu ápice na manifestação expressa do órgão competente, pela prevalência dos valores que sejam convencionalmente mais relevantes em determinado espaço-tempo, e pela desconsideração daqueles valores que sejam menos relevantes (ou até os contra-valores mais repulsivos) àquela sociedade.

Assim, o intérprete/aplicador pode optar pela fundamentação do seu raciocínio/decisão, com base em um ou mais valores, desde que positivados no ordenamento (ex.: não pode o magistrado validar a cobrança de imposto sobre a propriedade predial urbana, sobre imóvel rural, tendo em vista a ausência da previsão dessa tributabilidade no ordenamento). Pode sim o magistrado decidir entre a aplicação da capacidade contributiva ou da isonomia, por exemplo, em relação à viúva meeira, que tenha como único bem de herança a casa em que mora em bairro nobre, sem contudo, dispor de maiores recursos para arcar com o referido imposto predial que por ela seria devido sobre a propriedade de imóvel.

Todavia, por mais que o intuito de afastar a subjetividade (via de conseqüência, o arbítrio) seja dos mais nobres, a atividade jurídica remanesce permeada (ainda que em menor proporção) de carga subjetiva, não somente, aquela decorrente do

60 Santiago, José M. Rodriguez de. La ponderación de bienes e interesses no derecho administrativo. Madrid, Marcial Pons: 2000. apud Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios

próprio suporte físico (textos legislativos), e suas inúmeras possibilidades interpretativas, como também, aquela com da qual está impregnado o intérprete/aplicador.

Nesse sentido, não constitui exagero afirmar que o Direito funciona como um instrumento mitigador da subjetividade humana na regulação das condutas (pelo seu elemento “redutor” de complexidades – a norma jurídica – no dizer de Luhmann; e não “de eliminação” das complexidades), de forma a afastar a imprevisibilidade, e via de conseqüência, o arbítrio (garantia de segurança jurídica aos legiferados) e assegurar-lhes o Bem Comum (Becker).

14. Da norma hipotética fundamental de Kelsen – análise de suas implicações no

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