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Da realidade à ficção: telenovelas e agendamento

Novelas de onde se origina o corpus de análise

O QUE Telenovela invade

2.6 As telenovelas brasileiras e a realidade social

2.6.1. Da realidade à ficção: telenovelas e agendamento

A hipótese do agenda-setting leva em conta, em todos os estudos fundamentais, os conteúdos jornalísticos nos mais diversos meios de comunicação. Neste trabalho, entretanto, o foco da análise é um produto ficcional: a telenovela. Embora não se tenha a pretensão, aqui, de fazer um estudo aprofundado sobre o assunto, é aceita aqui a função de agendamento para as telenovelas até como fundamentação para a hipótese principal levantada, referente ao potencial desse tipo de ficção para divulgar Ciência.

Semelhante perspectiva é apresentada por Coutinho (2001), que aponta a verossimilhança como possibilitadora da transposição da hipótese da agenda-setting do jornalismo para a ficção.

Embora não sejam, claramente, a expressão do real, as narrativas presentes em nossas telenovelas buscam guardar uma lógica análoga à dos acontecimentos do cotidiano dos telespectadores. Assim, ainda sem o compromisso de serem ‘verdadeiras’, as narrativas seriadas em televisão apresentam, na maioria dos casos, a aparência de verdade no que diz respeito à preocupação em apresentarem possibilidades concretas e condizentes às lógicas de ações individuais ou coletivas (COUTINHO, 2001, p. 6).

A aproximação com o real tem sido uma forma de legitimação da telenovela brasileira. O teor de realismo das últimas produções determina um cuidado apurado em reproduzir os gêneros primários tal como ocorrem na vida real – ou ao menos como é esperado socialmente que ocorram – para que, mesmo descontextualizados da esfera íntima, sejam facilmente vendáveis como tal. As réplicas de diálogo, as conversas interiores dos personagens, as cartas perdem o caráter íntimo que as caracterizam no plano do real e ganham nova dimensão na ficção, seja pelo alcance que passam a ter, seja pela complexidade comunicativa que assumem sem, contudo, o espectador deixar de se sentir especialmente tocado pelos temas e desdobramentos retratados.

Essa propriedade de entrar na intimidade das pessoas, já que veicula informações por meio do aparelho que possuem em ambientes privados de suas casas, e simular enunciados primários é a grande responsável pela vocação de servir de agente de transformação ao introduzir informações e padrões de comportamento, desenvolver motivação e criar expectativas, ideais de atuação e modos de vida (MALCHER, 2001). É a televisão, em particular, a telenovela, que propicia a formação de novos padrões culturais, muitas vezes conflitantes com aqueles que até então vinham sendo construídos.

É dessa forma que Motter (1998, p. 92) coloca a telenovela como uma forma de “interação entre os cotidianos da ficção e da realidade concreta e o verdadeiro dialogismo que se processa entre ficção e realidade, numa permanente e recíproca realimentação, diluindo progressivamente os limites entre ambas”. O espectador acaba por se colocar como tal, passa a ter determinado comportamento (vestuário, linguagem etc.) porque consegue uma identificação direta com os mesmos. A ficção resgatada como realidade e a realidade vista através da ficção são características cada vez mais marcantes da ficção nacional; uma forma de autolegitimação.

Com o propósito de agendar temas do cotidiano para debate, conforme observa Motter (1988, p. 90), as telenovelas brasileiras acabam cruzando fronteiras. Elas fogem do folhetinesco do modelo

clássico ao incorporar temáticas sociais atuais, atualizando-as sempre que estas são postas em ação.

Na medida em que elas se tornam verossímeis ampliam consideravelmente a audiência, induzindo os dramaturgos a escrever obras cujas fronteiras imaginárias se diluem pouco a pouco. Por isso suscitam grande impacto na sociedade, uma vez que desde a eclosão do fenômeno elas já agendavam os temas das conversações diárias dos cidadãos. Mais do que isso: criam hábitos, mudam rotinas, inovam as relações sociais (MELO, 1999, p. 3).

É nos gêneros primários que compõem o gênero secundário telenovela que as mudanças sociais pouco a pouco são difundidas, pela proposta de novos comportamentos, legitimação de um menor grau de formalismo em atividades comunicativas como diálogos entre pais e filhos, uso de novas expressões etc.

De todos os países americanos, o gênero brasileiro é o que mais tem a preocupação de se pautar pela realidade. Por esse motivo, telejornais e noticiários em geral – e os temas por eles postos em relevo – constituem importante referencial para os autores. Em contrapartida, as telenovelas conseguem manter em foco as temáticas tratadas por mais tempo, ampliando a função defendia por McCombs para o meio televisivo apenas como ‘enfatizador’. Um indício da função agenda das telenovelas está nas matérias, por todos os meios, dedicadas aos temas em foco na ficção. Além dos veículos noticiosos tradicionais, as conversas informais são também influenciadas pelos temas mais polêmicos. Não é à toa que diversas matérias preocupam- se em mostrar como as pessoas copiam a moda das novelas ou passam a usar neologismos – como é o caso do já citado ‘clone’ para significar ‘cópia’ – usados amplamente.

As novelas analisadas oferecem diversos exemplos de temas emergentes nos veículos noticiosos graças às tramas da ficção: fertilização in vitro, clonagem, drogas, cultura muçulmana. Em reportagem sobre a Ética na clonagem humana, a autora das novelas, Glória Perez, concedeu entrevista à Revista Ciência Hoje (edição de outubro de 2001) cujo teor traz à tona mais algumas aproximações possíveis entre condições de produção das notícias e da ficção: consulta a especialistas, pesquisas em veículos informativos, consultores especializados permanentemente monitorando a trama.

Para localizar a telenovela enquanto agenda, vale recorrer às limitações do poder da agenda do jornalismo. Para Clóvis de Barros Filho (1995), a comprovação da hipótese da agenda estaria restrita às agendas pública e institucional. Para além da dificuldade de verificação da vinculação ente a agenda da mídia (jornalismo) e a agenda interpessoal, o autor acredita que as agendas privada e intrapessoal não sofrem qualquer impacto em relação aos conteúdos apresentados via meios de comunicação. Por considerar possível o agendamento do jornalismo capaz de influenciar nas esferas mais pessoais (nem que seja somente do ponto de vista cognitivo, ao permitir uma acumulação de informações formadoras de uma visão de mundo com a qual novas informações são confrontadas), o ponto de vista defendido pelo presente estudo aponta para a crença no agendamento se processando mais efetivamente na lacuna apontada por Barros Filho. Afinal, as narrativas ficcionais parecem ser dirigidas especialmente ao consumo individual, inclusive porque o acompanhamento da história exigiria uma espécie de ‘afastamento’ do mundo social aliado a um ‘diálogo’ com o imaginário de cada telespectador, ao menos na hora da exibição, durante o consumo dos capítulos. Dessa forma, é possível buscar, inclusive, uma vinculação entre os conteúdos ficcionais e o chamado ‘interesse público’, que representa um dos principais parâmetros orientadores do jornalismo (ao menos em tese), incluindo o televisivo. Assim, ao funcionar como um indicativo para a constituição do interesse dos telespectadores, as telenovelas transformam-se em agenda para os jornais.

Há, ainda, outro ponto de aproximação entre o gênero ficção seriada televisiva e aqueles para os quais McCombs e Shaw defendem a função do agendamento. O fornecimento de modelos do standard com o qual cada nova informação precisa ser confrontada para completar o processo comunicativo. Ao enfocar temas complexos e abordar os possíveis problemas que podem trazer para a sociedade, como a disputa pela maternidade ou a criação de vidas humanas sob controle exclusivo da mão do homem, as novelas acabam por fornecer novos ‘padrões’ de realidade para os que acompanham pouco ou nada dos avanços científicos por outros meios como os jornais, sugerindo

uma linha de pensamento sobre seus efeitos e suas implicações no cotidiano.

Dessa forma, o presente estudo defende que a hipótese do

agenda-setting pode ser utilizada como importante ferramenta de

análise e abordagem dessa interação entre os conteúdos ficcionais e jornalísticos, oferecendo novos indícios na investigação do papel das telenovelas na sociedade de massa.