• Nenhum resultado encontrado

2 O PENSAMENTO DO EREIGNIS NAS CONTRIBUIÇÕES: DA

2.7 Da Ressonância à Fundação

A transição só pode ser alcançada por meio de um Salto (...). Transição, por isso, não é nunca mediação, mas de-cisão, que só pode se fundar naquilo pelo que ela se decide como o que precisa ser fundado. (HEIDEGGER, 2010, p. 337). (Grifos nossos).

Recapitulando brevemente o percurso das Contribuições até agora, primeiramente: é necessário entender o porquê de Heidegger resolver batizar sua obra com dois títulos, sendo um deles o título público (Contribuições à Filosofia) e o outro o título (ou assinatura, marca) essencial (Do Ereignis). Isso diz muito sobre a obra como um todo, pois reflete a intenção de Heidegger em confrontar o conhecimento tradicional da metafísica com a meditação poética originária que propõe como caminho alternativo ao traçado pelo homem ocidental desde Platão, ramificado até consumar-se em pura Maquinação. O confronto entre os dois títulos é o confronto entre as duas perguntas centrais do pensamento ocidental em geral. De um lado, a tradição que conduziu a pergunta pelo ente até seu cume para depois (a pergunta) transubstanciar-se em fazer puro. Do outro lado, a essência, pergunta fundamental do homem pelo ser (Seyn).

Segundo Heidegger, o Ereignis é: conexão total com o ser (Seyn), apropriação do acontecer pelo Dasein, nome oculto do ser89, central do pensamento onde se realizam todas as de-cisões:

Ora, por Ereignis entendemos isto que doa ser! O Ereignis não pode ser determinado a partir de um caráter de ser, está para além de ser neste sentido (...) ele nos traz a nós mesmos (...). Pertencemos assim ao acontecimento, somos no nosso ser os que respondem. “No” Ereignis, o homem (abrindo-se ao ser que lhe é destinado a partir do tempo próprio) e o ser apropriam-se um do outro (...) O “pensamento” do Ereignis, o dissemos, é o coração do pensamento de Heidegger, aonde conduzem todos os caminhos. (DUBOIS, 2004, p. 118-119). (Grifos nossos).

89 Aqui uso a palavra ser ao invés de ser (Seyn), pois me refiro ao ser do primeiro Começo e da pergunta condutora, o

ser como entidade, ser do ente e não puro ser (Seyn). Por isso Ereignis é seu nome oculto, pois desde sempre (sem saber) o homem ocidental aconteceu como Ereignis, ou melhor, o Ereignis manteve desde sempre o ser do ente. Todavia, com o platonismo e o direcionamento da filosofia a partir da modernidade como objetividade o Ereignis se ocultou, mesmo sendo seu nome o próprio nome do que é o ser, tanto em sua manifestação tradicional como entidade tanto quanto em seu fulgor originário como ser (Seyn). Mesmo sob o amparo da Maquinação, o ser da história da metafísica ainda possui Ereignis como determinação originária, uma vez que a pergunta fundamental foi aberta antes da pergunta condutora, manifestando o Ereignis como desvelar da verdade (Aletheia).

A indicação de Dubois reflete o Ereignis como um “pensamento” fundamental que se encontra além do ser e por isso, aproxima o ser (Seyn) do homem que assume o Salto e se apropria do seu acontecer (tempo destinal). Mas o que isso quer dizer exatamente? Quando Dubois afirma que o Ereignis “está para além de ser” quer dizer que quando Heidegger estipula esse pensamento necessariamente precisa fornecer suporte teórico consistente para as ideias poderem frutificar em verdadeiras contribuições para a filosofia, ou seja, o Ereignis demanda, exige uma reformulação (virada) por si só e por isso precisa de um Outro Começo para acontecer propriamente. Uma iniciativa dessa magnitude só pode ser recepcionada pelo pensamento a partir de um exercício que é o próprio texto das Contribuições:

O Ereignis significa a inicialidade que se clareia expressamente do início (começo). A verdade inicial do ser (Seyn) conserva em si como acontecer apropriador inicial, a unidade inicial do Ereignis e do que é apropriado em meio ao acontecimento. A palavra “inicial” significa constantemente: apropriado em meio ao acontecimento a partir do início (começo) e tomado em meio ao Ereignis como acontecimento inicial. (HEIDEGGER, 2013, p. 149). (Grifos nossos).

Para ser capaz de chegar aonde pretende, Heidegger se vê no dever de implantar uma série de novos termos ao seu pensamento, abordar a pergunta por outro viés, distanciando-se (mas não tanto quanto se pode supor) de seus escritos anteriores a fim de encontrar a via que permita ao homem (racional) transformar-se em Dasein e desse jeito “encontrar-se” na essência (Ereignis) e pertencer a si-mesmo. A nova forma de escrever de Heidegger busca encontrar uma expressão que dê origem ao pertencer pensante-dizente, ou seja, ao “merecimento” da linguagem pensante que procura estabelecer uma relação pura e sem desvios com o ser (Seyn). Heidegger encontra na expressão Ereignis a possibilidade desse pertencimento ocorrer sem intermédio de uma representação ou imagem. Ereignis como experiência essencial do ser (Seyn), palavra que “traduz” o próprio ser (Seyn), o centro de toda discussão em Contribuições e via de acesso ao Outro Começo do pensamento. Essa é a virada do pensamento heideggeriano que olha para trás, mas se dirige para frente, para o porvir. O pertencer pensante-dizente “faz” a filosofia de Contribuições possível. Sem o pertencer não há discurso essencial. Sem o pertencer o pensamento continuaria em sua

Vivência imediata e pública. Sem o pertencer não se propõe a pergunta, mas permanece-se indefinidamente na resposta90.

O conteúdo das Contribuições é, segundo Heidegger, uma verdade vindoura, pois o homem ainda se encontra (hoje muito mais) em uma indigência de pensamento, uma época onde não é possível estar fora de uma armação muito “bem bolada” e responsável por “encubar” o pensamento humano em uma objetividade aonde tudo chega ao pensamento por meio de uma investigação acerca dos entes. A indigência não permite ao homem moderno questionar sobre o conteúdo das Contribuições, pois impede o pensamento de sequer notar a falta provocada pela indigência, a saber, a falta essencial que cabe a todos nós, uma falta tão profunda quando impronunciada, a falta originária de uma relação com o ser (Seyn) das coisas. Sendo assim, cabe apenas a alguns poucos a alternativa de desbravar as páginas do livro e “adubar” o pensamento com nutrientes que façam florescer uma nova árvore de possibilidades. Não se trata simplesmente de podar ou derrubar a árvore que já estava lá (o primeiro Começo), pois isso seria impossível devido a profundidade das suas raízes. Se trata aqui de plantar uma outra, cavando um buraco mais profundo para que o enraizamento dessa árvore chegue ao núcleo de onde brota todo pensamento e consequentemente cresça frondosa no futuro. Devido à natureza extrema dessa empreitada, Heidegger constata que em sua época seria muito difícil publicar essas ideias, pois trata de um material claramente dedicado ao futuro. A esperança de Heidegger reside no porvir, para ele cabe às próximas gerações possuir a coragem de encarar a verdade abismal e sua própria essência.

O movimento realizado pelo pensamento é simplesmente transição. Como palavra central da virada, o Ereignis também é uma transição. Compreender o movimento do pensamento é entender a essência da transição entre dois tipos de pergunta sobre o ser. Uma delas, a pergunta condutora, atravessou os séculos como inclinação do homem histórico pela busca de conhecimento: trata-se de uma pergunta em que o perguntado é o ser do ente (a entidade). A outra, chamada por Heidegger de pergunta fundamental atravessou os séculos como ocultamento do ser (Seyn): trata-se de uma pergunta que só pode ser respondida pela experiência de apropriação

90 Refiro-me a resposta da pergunta condutora, a resposta da pergunta pela entidade tão difundida na história

“aparente” do pensamento ocidental. O homem encontra essa resposta na Maquinação, com ela tudo se “resolve” por intermédio da informação e do fazer sobre os entes, pela ciência da natureza em sua aplicação prática. O pensamento da Maquinação com sua planificação global do ente fornece a resposta à pergunta condutora e é nessa resposta onde o homem permaneceu por todo o século XX e ainda se conserva exclusivamente direcionado a ela, ou seja, não há mais pergunta à Maquinação, pois a resposta fornecida por ela impede a colocação de uma outra pergunta, condicionando o homem na indigência da indigência, pois acredita já possuir a resposta definitiva, mas nem mesmo reconhece sua impossibilidade de perguntar propriamente.

provocada pelo Ereignis. Para o pensamento poder recobrar o ser (Seyn) que sempre lhe pertenceu, deve ocorrer esse movimento de transição onde o que se mantinha oculto pode novamente acontecer como pergunta. Trata-se de uma tematização que interroga a história em busca de duas vertentes, uma pública e outra essencial, como os títulos do livro, como propriedade e impropriedade em Ser e Tempo e como todo seu pensamento posterior as Contribuições, uma constante confrontação com a tradição, uma constante tentativa de atingir o outro, a diferença91 o estranho, o angustiante e abismal que nos fundamenta.

Para atingir a meta dessa tentativa, a pergunta fundamental deve ser colocada, mas o que quer dizer aqui colocar? É simplesmente “ter como” perguntar, isto é, dispor daquilo que é necessário para colocar com suficiência uma pergunta tão importante e originária como essa. Para “ter como”, o pensamento não deve se aclarar com o que já foi dito, mas conjugar novas (outras) formas de aproximação e então junto delas “enriquecer” a pergunta, encontrá-la sob diversas possibilidades, não de resposta, mas de caminhos para se relacionar com ela. O pensamento deve conjugar diferentes maneiras de tentar dizer o mesmo ser (Seyn) através da pergunta fundamental. O que se conjuga são palavras. Juntas, essas palavras conjugadas formam uma assembleia. Até agora vimos e interpretamos três conjugados, a saber, a Ressonância, o Passe e o Salto. A Ressonância leva o homem a perceber que não há apenas uma forma de compreender o mundo, mas várias outras “faltam” em seu cotidiano. A Ressonância faz perceber a indigência de “algo a mais” além (ou aquém) da pura instrumental Maquinação. O Passe evoca a abertura realizada na aurora do pensamento ocidental, uma abertura fundamental para a pergunta, mas foi prontamente fechada devido a evidências da entidade que apareciam no discurso de Platão e direcionaram a atenção do homem para um tipo de saber muito mais efetivo e plausível que os mistérios encerrados e cosmogônicos de Parmênides e os demais filósofos pré-socráticos. O Passe é o impulso que faltava para o pensamento enfim dar o Salto que o leve à pergunta pelo ser (Seyn).

91 Refiro-me aqui não a diferença platônica que colocou a investigação do pensamento no encalço do ente, mas sim a

diferença entre primeiro e Outro Começo, entre pergunta condutora e pergunta fundamental. Diferença no sentido de levar a diferença ao pensamento, confrontando com aquilo que já foi estipulado pela história e pela tradição como correto e indubitável.