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1 A NOÇÃO DE PROPRIEDADE EM SER E TEMPO

1.3 A De-cisão Heideggeriana

A decisão, como poder-ser, enquanto abertura da negatividade do Dasein, como desvelamento de sua perda no impessoal, como isolamento, constância do estar-em débito, como verdade da existência, como verdade na medida da indeterminação da existência determinada na decisão, tem necessidade de se realizar em cada um de seus traços de ser-para-a-morte próprio. Consciência e mortalidade são, portanto, soldadas juntas na Cura: a consciência é consciência de um mortal, o mortal convoca a própria consciência como mortal. (DUBOIS, 2004, p. 56).

No centro de tudo encontra-se a decisão ou de acordo com a tradução de Schuback, de- cisão [Entschlossenheit]27, possibilidade libertária para o Dasein poder-ser si-mesmo. A de-cisão mais própria é determinada a partir de uma escolha feita tendo como fundamento os fenômenos da morte e do débito. A própria de-cisão deve ser realizada de forma antecipatória, ou seja, por existir a cada instante o Dasein já se encontra à “beira” de uma de-cisão a partir de onde foi realizada a antecedente, cabe a ele mesmo estabelecer a antecipação como seu critério de realização. Logo, no modo de ser da antecipação, a de-cisão própria desemboca no “destino” da existência, a assunção genuína da de-cisão ecoa em cada fato transcorrido, em cada menor fagulha de tempo. Sendo como é, o Dasein toma simples decisões a partir de suas estruturas mais impessoais, deixando-se levar pela publicidade das opiniões sedimentadas. Mas quando o inverso ocorre, a sua de-cisão foi tomada com todo pesadelo que imbui o fato de “ainda se estar no tempo” junto aos entes. Sobretudo, a de-cisão indica a clareza livre dos preconceitos, alerta às suas próprias convicções.

27 O termo em alemão possui o significado de destrancar. Schliessen (trancar) mais o prefixo Ent (indica sentido

contrário) dão a ideia de abertura, espaço onde se libera ou realiza algo. Márcia Schuback incorpora a palavra de-

cisão, pois recupera a essência de separação presente no termo alemão. Sendo assim a de-cisão é o destrancar de uma

possibilidade, abertura que designa a resolução de um instante a partir da afirmação do ser onde está em cheque o tempo insubstituível do Dasein.

Somente desta forma pode-se estar em concordância com o ser e, por conseguinte, com todo seu mundo:

O Dasein de-cidido se liberta para seu mundo a partir daquilo em função de que o poder-ser se escolhe a si-mesmo. (...) De acordo com sua essência ontológica, a de-cisão é sempre uma decisão de um determinado Dasein em seus fatos. (...) O decisivo é justamente o projeto e a determinação que, cada vez, abrem as possibilidades de fato. A indeterminação que caracteriza cada poder-ser de fato lançado do Dasein pertence necessariamente à de-cisão. (...) A in-de-cisão do impessoal permanece, também, predominante embora não seja capaz de alcançar a existência de- cidida. (...) A determinação existencial do Dasein de-cidido a cada possibilidade abrange os momentos constitutivos do fenômeno existencial, até agora desconsiderado, que chamamos de situação. (...) O Dasein já age de-cidido. (HEIDEGGER, 2004, p. 88-89). (Grifos nossos).

Ser e Tempo apresenta a noção da de-cisão como o principal dilema do Dasein, ela exprime uma bifurcação crucial em seu mundo, a presença de duas vias onde pode depositar seu ser, dois modos de ser opostos e originários, a verdade e a não-verdade. Estando sempre “em ar” de de- cidir-se, o Dasein pode escolher, deliberadamente ou não, a ambiguidade de ninguém e “todo mundo” permanecendo na in-de-cisão. Mesmo in-de-ciso o Dasein continua projetando-se no mundo, ou seja, de-cidiu-se pela in-de-cisão, modo de ser da não-verdade. O de-cisivo também pertence ao impessoal, normalmente já nos de-cidimos antes mesmo de “concretizar” a “ocorrência”, quase nunca nos jogamos aos fatos sem qualquer amparo prévio ou mínimo direcionamento, temos controle sim, mas ao mesmo tempo seguimos in-decisos ao sentido mais autêntico de nosso próprio Dasein, tão simples quanto específico em seu fundamento ontológico. Cada fato pertencente ao Dasein é decorrente de um momento de-cisivo. O constituinte da de-cisão é o de-cisivo, a partir do momento de-cisivo podemos ou não afirmar a nós mesmos. Se o Dasein se afirma na in-de-cisão permanecerá na impropriedade e na não verdade onde o impessoal de- cidiu-se de antemão. Por outro lado, se o Dasein afirma uma de-cisão ciente de sua existência finita como ser-no-mundo e ciente do débito constante, acontece uma situação28 fundamentada na

28 A situação não pode ser “convertida” para o impessoal, não pode simplesmente obter uma resposta através da via

pública. A situação é proclamada pelo clamor como um poder-ser onde o Dasein se insere propriamente. Essa

situação ontológica está fundamentada na consciência do si-mesmo individual a cada Dasein, ou seja, ao tomarmos

uma de-cisão baseado em uma inclinação genuína, uma situação se abre e nela reside o resultado da nossa escolha, de nossa determinação própria. Situação é o poder-ser si-mesmo consumado e preenchido de existência, efetivado em

existência que se de-cidiu. A de-cisão fundamenta a situação. Situação significa para Heidegger a espacialidade ontológica aberta da (e para) a propriedade.

A situação não pode ser entendida a partir de um estado de coisas distribuído aonde o Dasein espacial e temporalmente se “encaixa”. Como situação, ela acontece na correta compreensão do clamor, portanto se relaciona com a propriedade, com o caráter ontológico determinante para o espaço (aí) do Dasein e sua temporalidade manterem a relação originária com o si-mesmo escolhido, de-cidido. A noção de situação exposta por Heidegger é a união de diversos constituintes existenciais em uma coerência significativa apenas para aquele que já se de-cidiu propriamente. Ao impessoal, esta espécie de situação é absolutamente desconhecida, pois ela não condiz com a generalidade do global, mas com a especificidade do particular. Como ente, Dasein está aí no espaço e possui temporalidade, mas relaciona-se com espaço e tempo em absoluta distinção em relação aos demais entes, isso marca seu estar-lançado em meio a esses dois constituintes, sem escolhas. A escolha verdadeira pode somente acontecer quando o Dasein “ajeita” seu aí (espaço) no tempo de acordo com uma de-cisão advinda dele mesmo, sem ter “partido” de ninguém, isto é, projetando-se no seu próprio silêncio e de lá trazendo a resposta específica para seu próprio débito existencial, assim desembocando na situação onde o mundo passa a se “desenrolar” sem a randômica opinião das influências exteriores.

A situação de propriedade onde o Dasein pode de-cidir-se está sempre diretamente engajada no tempo e proporcionada pelo tempo, mas isso não significa que ele se tornou claro e indubitável ao ser-próprio e de-cidido. Por isso, Heidegger necessita esclarecer como o tempo se configura na existência, primeiramente em sua noção cotidiana vulgar e depois em sua propriedade constitutiva para a Ontologia Fundamental desta forma se realizar satisfatoriamente. Partindo das já explicitadas noções de morte, angústia, clamor da consciência e de-cisão, o tempo pode se mostrar propriamente em um dos momentos emblemáticos da obra, importante para se estabelecer a coerência com o vindouro pensamento do Ereignis.