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5 A PROBLEMÁTICA DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (SAN):

5.2 Um breve retrato da Insegurança Alimentar (IA) no Brasil: dados da

5.2.2 Dados sobre o consumo e padrão alimentar da população brasileira

As análises do perfil nutricional da população brasileira têm sido feitas com bases em inquéritos nutricionais nacionais. Ao longo da história das políticas de saúde e nutrição poucos foram os estudos realizados exclusivamente para esses fins. São eles: o ENDEF – Estudo Nacional de Despesa Familiar realizado pelo IBGE/INAN em 1974/75, a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição realizada em 1989 pelo IBGE e IPEA/INAN e a Pesquisa Nacional de Orçamento Familiar (POF) realizada pelo IBGE no ano de 2002-2003. Todas essas pesquisas realizaram avaliação do estado nutricional através do método antropométrico, tendo o ENDEF também aplicado inquérito dietético por pesagem direta. As POFs dos anos de 1961- 1962, 1987-1988, 1995-1996 e 2002-2003 realizaram a análise do padrão alimentar por estimativa de consumo através do gasto com aquisição de alimentos no domicílio.

Em relação à saúde da mulher e da criança outro estudo é financiado periodicamente pelo Ministério da Saúde. São as Pesquisas Nacionais de Demografia em Saúde (PNDS), que configuram um sistema de informação integrante do programa mundial de pesquisas de demografia e saúde (DHS - Demographic and Health Surveys) com apoio técnico do Macro International Inc. As PNDS têm o objetivo de coletar informações que possibilitem elaborar indicadores demográficos, de saúde e de nutrição para mulheres em idade fértil (15 a 49 anos) e crianças menores de 5 anos, e ainda subsidiar a formulação e a avaliação de políticas estratégicas de ação. No Brasil já ocorreram em 3 edições: 1986, 1996 e 2006.

As Pesquisas de Orçamentos Familiares – POF visam a mensurar as estruturas de consumo, dos gastos e dos rendimentos das famílias e possibilitam traçar um perfil das condições de vida da população brasileira a partir da análise de seus orçamentos domésticos (IBGE, 2004a).

A coleta dos dados da POF que analisou o perfil nutricional e a estimativa de consumo através da aquisição de alimentos no âmbito domiciliar, foi realizada nas áreas urbanas e rurais em todo o território brasileiro no período de julho de 2002 a junho de 2003. Forneceu informações também sobre a composição orçamentária doméstica a partir da investigação dos hábitos de consumo, da alocação de gastos e da distribuição dos rendimentos, segundo as características dos domicílios e das pessoas, bem como sobre a percepção das condições de vida da população brasileira (IBGE, 2004a).

Além das informações referentes à estrutura orçamentária, várias características associadas às despesas e rendimentos dos domicílios e famílias foram investigados, viabilizando o desenvolvimento de estudos sobre a composição dos gastos das famílias, segundo as classes de rendimentos, as disparidades regionais e as áreas urbanas e rurais, a extensão do endividamento familiar, a difusão e o volume das transferências entre as diferentes classes de renda e a dimensão do mercado consumidor para grupos de produtos e serviços, ampliando o potencial de utilização de seus resultados (IBGE, 2004a).

Para gestão pública, as POFs contribuem para subsidiar o estabelecimento de prioridades na área social com vistas à melhoria da qualidade de vida da população, incluídas as políticas públicas temáticas como dos campos de nutrição em saúde pública e Segurança Alimentar e Nutricional. O método para a obtenção dos dados dos orçamentos familiares foi a aplicação de questionários específicos sob a forma de entrevista presencial (IBGE, 2004a).

Os instrumentos de coleta utilizados na POF 2003, organizados segundo o tipo de informação a ser pesquisada, foram: questionário do domicílio, questionário de despesa coletiva, caderneta de despesa coletiva, questionário de despesa individual, questionário de rendimentos individuais e questionário de condições de vida. A coleta das medidas antropométricas do peso e altura foi realizada com todos os moradores encontrados durante o período da entrevista, em todos os domicílios visitados. A caderneta de despesa coletiva foi o instrumento básico para o registro

das informações necessárias para a obtenção das estimativas das quantidades adquiridas de produtos alimentares para consumo no domicílio (IBGE, 2004a).

De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2002, os gastos com alimentação ocupam o segundo lugar na participação da despesa total familiar, representando na média nacional 21% dos gastos com despesas de consumo e 17% dos gastos totais das famílias, sendo superada apenas pelas despesas com habitação, 35% (FIBGE, 2004b).

Há, no Brasil, padrões de consumo alimentar que caracterizaram as cinco grandes regiões do país, o meio urbano e o meio rural e os diferentes estratos socioeconômicos da população brasileira. Considerando o percentual de gastos no domicílio, segundo grupos de alimentos, os principais itens de consumo no país são: as carnes (18,3%); o leite e seus derivados (11,9%); os panificados (11%); os cereais e leguminosas (10,4%) e as bebidas e infusões (8,5%) na área urbana. De acordo com a análise do perfil de despesas na área rural, as carnes se mantêm em primeiro lugar (20%), seguidas dos cereais e leguminosas (16,9%). O terceiro lugar é ocupado por leites e derivados e farinhas e féculas (9,1%, cada grupo) e ovos e aves ocupam o quarto lugar com 8% dos gastos com este grupo de alimentos. Destaca-se que, provavelmente por razões de facilidade de acesso o consumo de alimentos preparados consumidos nos domicílios da zona urbana é aproximadamente 358% mais alto do que nos domicílios da zona rural (BRASIL, 2004a).

De acordo com análise do Ministério da Saúde, comparando as POFs de 1987, 1996 e 2003, nas cinco regiões metropolitanas estudadas, foi possível também observar aumento de despesas com bebidas e infusões como refrigerantes, cervejas e chopes em detrimento dos gastos com frutas. Cabe ressaltar que esse é um aspecto que vem comprovar tendências de alterações de hábitos alimentares observados atualmente no Brasil, que são traduzidos pela freqüente troca de alimentos naturais, mais saudáveis, por alimentos mais ricos em açúcares e gorduras (BRASIL, 2006b).

Outros aspectos demonstraram a mudança no local de consumo de alimentos. A POF evidenciou que consumir alimentos fora de casa vem se tornando um hábito na população em geral. Quase um quarto (24%) da despesa média mensal familiar é destinado a refeições fora de casa. Mesmo na zona rural (quase a

metade do valor encontrado na zona urbana), 13% da população confirma esta tendência (IBGE, 2004a; BRASIL, 2006b).

A pesquisa inovou em termos de dimensões de análise. A percepção da população quanto a alguns aspectos referentes à qualidade de vida foi estudada, por isso foi incluída uma avaliação do tipo e suficiência do alimento consumido pelas famílias. As quantidades de alimentos foram consideradas: normalmente insuficiente, às vezes insuficiente e sempre suficiente. Mais da metade das famílias investigadas avaliaram suficiência de quantidade de alimentos. Por outro lado, 47% das famílias destacaram que a quantidade de alimentos consumidos era, habitualmente, ou, eventualmente, insuficientes. Segundo a avaliação do tipo de alimento consumido, 56% das famílias afirmaram que os alimentos consumidos nem sempre eram do tipo preferido. Somando-se a essa proporção as famílias que declararam raramente consumir alimentos preferidos, tem-se que, no Brasil, perto de 73% das famílias declararam algum grau de insatisfação com o tipo de alimento que consome (IBGE, 2004a). Esses dados corroboram com o entendimento de SAN assumido no Brasil que destaca a necessidade das políticas de alimentação e nutrição respeitarem os hábitos alimentares culturalmente determinados.

Em síntese, o padrão alimentar e a disponibilidade de alimentos, no Brasil, vêm sofrendo alterações condizentes com a emergência das DCNT em adultos. Há no Brasil contemporâneo o predomínio de consumo de alimentos industrializados, em todas as faixas de renda. O “segundo regime alimentar” destacado por Friedman e McMichel (1989) se reflete, aqui, impondo um padrão alimentar “global”, enfraquecendo o mercado interno de comercialização de alimentos e distorcendo hábitos culturalmente construídos. Os alimentos mais consumidos são basicamente ricos em sal, gordura (saturada e trans41) e açúcar simples, pobres em carboidratos complexos, fibras e micronutrientes. De acordo com a Estratégia Global da OMS para alimentação saudável, atividade física e saúde, dentre os sete principais fatores de risco para DCNT, os cinco principais hipertensão arterial, hipercolesterolemia, baixo consumo de frutas e hortaliças, excesso de peso ou obesidade, falta de atividade física e consumo de tabaco têm relação direta com a má alimentação e

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As gorduras trans são um tipo específico de gordura formada por um processo de hidrogenação natural (ocorrido no rúmen de animais) ou industrial. Estão presentes principalmente nos alimentos industrializados. Os alimentos de origem animal como a carne e o leite possuem pequenas quantidades dessas gorduras (BRASIL, 2009).

nutrição e ausência de atividade física (WHO, 2003; BRASIL, 2005b; BRASIL, 2006b).

No Brasil, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição – PNAN defende a importância de estimular práticas alimentares culturalmente referenciadas nas diferentes regiões do país (BRASIL, 1999). Este aspecto também contribui concretamente para a garantia da soberania alimentar, pois a manutenção de consumo de alimentos arraigados culturalmente diminui a entrada de alimentos e preparações alimentares estranhas aos hábitos da população além de privilegiar a produção e consumo de agricultores locais. A proposta da Iniciativa de Incentivo ao consumo de frutas, verduras e legumes discutida pelo Ministério da Saúde em parceria com o CONSEA nacional em 2005, embora não tenha tido êxito, propunha esta dimensão como eixo norteador de uma política nacional de abastecimento voltada para o mercado interno nacional (PINHEIRO; GENTIL, 2005).

Essas evidências auxiliam o entendimento de que a inSegurança Alimentar e Nutricional no Brasil é resultante da alimentação inadequada que pode, em termos biológicos, se expressar tanto como desnutrição ou mesmo obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis. Pessoas com excesso de peso ou obesidade são pessoas expostas ao consumo inadequado de alimentos; entre os mais pobres, alimentos com alta densidade energética têm substituído alimentos tradicionais mais saudáveis (como o tradicional feijão com arroz) (BRASIL, 2006b).

No âmbito dos aspectos sociais da SAN, os hábitos alimentares também sofrem alterações à luz dos modelos de desenvolvimento econômico e social das sociedades. Os processos de transição demográfica, epidemiológica e nutricional são resultantes das modificações ocorridas nos modos de viver, adoecer, comer e morrer das populações. Hoje as populações têm um padrão alimentar rico em alimentos industrializados, ricos em sal, açúcar e gorduras e pobres em fibras, vitaminas e sais minerais, e, com a expectativa de vida aumentada, são acometidas pelo predomínio de doenças crônicas como obesidade, doenças cardiovasculares, diabetes, Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), dislipidemias e cânceres. As mudanças na forma de organização social contribuíram para a formação de novos hábitos alimentares em consonância com os valores e padrões globalizados.

Os hábitos e escolhas alimentares também são influenciados pelos aspectos culturais. Tradicionalmente, a abordagem para adoção de hábitos alimentares

saudáveis é muito focalizada na dimensão biológica, ou seja, a partir da necessidade do consumo de alimentos ricos em nutrientes como carboidratos, lipídios, proteínas, fibras, vitaminas e sais minerais de forma equilibrada. Contudo, a alimentação se caracteriza por outros elementos, tão importantes quanto os nutrientes, como seus aspectos simbólicos, culturais e antropológicos (PINHEIRO, 2005) os quais não podem ser esquecidos no bojo das ações propostas pela Política.

Não comemos apenas para manter o corpo em bom funcionamento. Em termos sociais, a relação do homem com os alimentos tem uma determinação histórica e particular para cada cultura, e é essa relação que estabelece a matriz de identidade cultural dos alimentos tornado-os socialmente comestíveis ou não. A cultura oriental se organiza a partir de uma matriz cultural e alimentar bastante diferente da matriz cultural ocidental. Peixes crus fazem parte dos cardápios orientais enquanto que nos EUA os alimentos tipo fast food são os preferidos para consumo.

Os hábitos e ideologias alimentares justificam as opções (preferências ou rejeições) adotadas por um grupo étnico e social, colocando-se como dimensões mediadoras que organizam as práticas e o consumo. As preferências ou rejeições alimentares se manifestam também através de crenças populares, mitos e tabus alimentares que, com base em aspectos culturais, superestimam ou rejeitam o consumo de certos alimentos a partir de simbolismos construídos pelo imaginário social e saber popular. Podem se fundamentar em questões religiosas, étnicas ou familiares que, em diferentes medidas, limitam a variedade alimentar dos grupos sociais (CANESQUI, 1988).

Fontanele (2002), em elaborada análise sobre a trajetória da uma rede de fast food mundial, o Mcdonald’s, faz um mergulho no processo de produção da rede e conclui que nos moldes da sociedade globalizada, onde tudo é representação e a mídia opera um lugar de destaque, o que ocorre é um fetichismo planejado onde marcas, signos, uniformes dos atendentes, programação visual, arquitetura das lojas, tudo, absolutamente tudo, se volta para atender o “paladar universal”. Quem come um sanduíche Bic Mac42, compra forma e conteúdo, essência e aparência,

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Big Mac é o sanduíche mais divulgado, vendido e consumido na rede McDonalds em todos os países que está instalado (FONTANELE, 2002).

valor de uso e valor de troca muito antes de comprar comida. Todos comem igual em qualquer lugar do mundo. As características peculiares das culinárias locais sucumbem a uma receita universal onde a soberania alimentar e a preservação da cultura alimentar passa ser saudosismo e “atraso” social.

Na contemporaneidade, a era da globalização e urbanização, o modo de viver valoriza a praticidade e agilidade para preparação de alimentos que são pré- processados e embalados para consumo individual e direto. No Brasil, a disseminação de redes de fast food franquiadas e empresas multinacionais têm contribuído para o “comer formatado” que desvaloriza as preparações culinárias locais culturalmente referenciadas no Brasil. Hábitos tipicamente brasileiros como o do consumo de arroz com feijão nas refeições principais, de acordo com a POF 2003-2003, têm se alterado com a imposição destes novos modelos sociais.

Sob o ponto de vista coletivo, uma alimentação saudável torna-se adequada quando também compreende aspectos relativos à percepção dos sujeitos sobre os modos de vida adequados, ou seja, quando se identifica com as expectativas dos diferentes grupos sociais, que compõem a sociedade civil. Para isso as dimensões de variedade, quantidade, qualidade e harmonia precisam associar-se aos padrões culturais, regionais, antropológicos e sociais das populações (PINHEIRO, 2005)

No enfoque da Segurança Alimentar e Nutricional, uma alimentação é saudável e adequada quando trazemos para a abordagem da saúde outros fatores envolvidos em sua gênese. O alcance do estado nutricional adequado, de maneira indireta, pressupõe o encontro de alguns fatores como produção, abastecimento e comercialização, acesso e a utilização biológica dos alimentos. Para a garantia de uma alimentação saudável, é necessária condição adequada para seu total aproveitamento e essas condições são relativas às condições de vida como trabalho, moradia, emprego, educação, saúde, lazer e outros. Assim esse conceito tem como objeto a trajetória necessária, desde a produção até o consumo, do alimento, em todas as suas dimensões, e todas as possibilidades que esta produção gera em termos de desenvolvimento sustentável e soberania alimentar (PINHEIRO, 2005)

Em nível de políticas públicas, o grande desafio na formulação e implementação de uma estratégia para a promoção de uma alimentação saudável passa, portanto, necessariamente, por torná-la viável em um contexto onde os

papéis, os valores e o sentido de tempo estão em constante mudança (PINHEIRO, 2005).