• Nenhum resultado encontrado

A DAPTAÇÃO DO C RITÉRIO DO A BUSO DO D IREITO NO Â MBITO DAS R ELAÇÕES DE C ONSUMO

Entendido o abuso do direito como o principal critério que limita o consumidor no exercício dos direitos que lhe são atribuídos em caso de desconformidade da coisa comprada, entendemos que tal instituto, de origem tão remota como tivemos oportunidade de esclarecer em momento oportuno, sofre certas adaptações quando transposto para o âmbito das relações de consumo.

Como já deixámos claro, as relações jurídicas de consumo apresentam certas especificidades quando comparadas com as comuns relações contratuais entre privados. Aquelas caracterizam-se pela existência de uma desproporcionalidade de poder negocial, sendo o consumidor a parte mais fraca, leiga e desprotegida. É com base neste desequilíbrio que se desenvolve o direito do consumo, cujo objectivo é, através de uma maior protecção do consumidor, atingir uma igualdade de posições contratuais, em moldes equivalentes aos do tradicional direito civil. Nestes termos, sendo a conduta abusiva em geral impedida quando o titular do direito excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito, não poderemos dissociar a conduta abusiva do agente, pelo que, sendo o agente um consumidor, teremos que ter em conta essa condicionante na interpretação de uma sua conduta, em hipótese, abusiva.

Como vimos anteriormente, o exercício dos direitos é limitado, em primeiro lugar, pelo princípio da boa fé, entendida no seu sentido subjectivo. Este princípio impõe uma actuação honesta e íntegra de modo a não frustrar as expectativas devidamente fundadas que a contraparte possa criar, de acordo com a tutela da confiança. Transposta esta ideia para o âmbito do exercício dos direitos dos consumidores em caso de desconformidade, significa que ao consumidor se impõe uma actuação que se contenha dentro dos limites da honestidade e integridade, de modo a não frustrar as expectativas que fundadamente se criaram no vendedor relativamente aquele exercício. Ora, atendendo à posição que cada uma das partes assume na relação contratual, ou seja, entendido o vendedor como a parte mais preparada e com maior poder negocial, somos da opinião que os critérios do princípio da confiança deverão ser, nestes casos, mais exigentes para o vendedor. Assim, e desde logo, a situação de

confiança em que se possa encontrar o vendedor, que como vimos de traduz numa situação

de boa fé subjectiva, deverá ser mais rigorosa. Na verdade, a que pessoa adere a essa situação de confiança é, em regra, mais sabedora e preparada do que aquela que a viola com o comportamento abusivo, que será um consumidor. Também no que toca à justificação para a

confiança, entendemos que este critério será mais apertado sendo o confiante um vendedor

numa relação de consumo, na medida em que terá que se atender aos elementos objectivos capazes de criar essa crença justificada. Ora, num contexto em que a parte que cria essa confiança é mais frágil do que a parte na qual ela se suscita, não será qualquer comportamento que terá a capacidade de criar no vendedor uma justificação da sua posição de confiante. Desta forma, numa hipótese de venire contra factum proprium levada a cabo por um consumidor, não bastará um simples comportamento da sua parte para colocar o vendedor numa posição de confiança merecedora de protecção. A confiança do vendedor de que, por exemplo, o consumidor não vá exercer um determinado direito, deverá ser avaliada através de critérios mais restritos do que os que se aplicam nas situações comuns em que as partes que possuem a mesma capacidade contratual. Exige-se, assim, que o comportamento do consumidor seja de molde a colocar um vendedor, sabedor e preparado, numa posição de confiança que, a ser violada através do exercício de um determinado direito por parte do consumidor será, por esse facto, merecedora de tutela do direito.

O exercício do direito encontra-se ainda circunscrito ao critério dos bons costumes. Vimos já que os bons costumes representam um conjunto de critérios éticos e morais dominantes na sociedade, sendo assim um critério mais geral do que o da boa fé. Nesta senda, por representarem quadros sociais reguladores e extra-sistemáticos, entendemos que não apresentarão nenhuma especificidade quando integrados nas relações contratuais de consumo.

Por último, surge-nos ainda como limite ao exercício dos direitos a sua função social e económica, que se refere à configuração real do direito e à finalidade sobre a qual foi construído. No âmbito dos direitos atribuídos aos consumidores, a função económica e social dos mesmos é clara. De facto, estes são estabelecidos no intuito de introduzir um maior equilíbrio nas relações contratuais de consumo que são tendencialmente desequilibradas em desfavor do consumidor. Assim a sua função económica e social consiste, precisamente, em reajustar a posição de poder contratual das partes através de uma maior protecção da parte desfavorecida, que é o consumidor. Ora, tendo em conta as funções dos direitos subjectivos, o exercício do direito será abusivo sempre que ultrapasse ou contrarie o seu fim económico e social nos termos do qual foi consagrado, o que acontecerá, nomeadamente, quando através do exercício do direito em caso de desconformidade o consumidor fique colocado numa

posição de manifesta superioridade em relação ao vendedor. Efectivamente, entendidas as normas de direito do consumo como disposições cujo objectivo é introduzir um equilíbrio em relações contratuais desequilibradas, se o consumidor, ao exercer o seu direito, se posiciona num patamar em excessiva superioridade quando comparado com o vendedor, então terá ultrapassado a função económica e social que fundamentou a atribuição do direito exercido. Entendido o instituto do abuso do direito no âmbito das relações de consumo, procuraremos de seguida analisar em que circunstancias um consumidor a quem foi vendida uma coisa desconforme estará a actuar de modo abusivo.