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4. MOÇAMBIQUE: UMA VARANDA PARA O ÍNDICO

4.2. AS EPÍGRAFES

4.2.1. Das andorinhas, o escolhido

A primeira epígrafe utilizada por Mia Couto, em AVF, trata-se de uma citação atribuída a Henri Junod, que se traduzirá na fala de Chaka (1786-1828), fundador do império Zulu, aos seus assassinos: “Nunca governareis esta terra. Ela será apenas governada pelas andorinhas do outro lado do mar, aquelas que têm orelhas transparentes...”

Segundo a pesquisadora francesa Nicole Goisbeault (2005), Chaka, o Zulu, é um mito banto, tendo sido a história de sua ascensão e reinado nos transmitida pela epopeia em prosa [Chaka, uma epopeia bantu] que o professor bassoto, ou bassuto [numa referência à etnia banto], Thomas Mofolo, baseado em relatos da tradição oral, redigiu em língua sota ou sessoto, i. é., em uma língua auxiliar. Ele integra-se ao vasto conjunto de mitos históricos, baseados em povos sob a égide de uma personalidade fora do comum, que na modernidade tem sido recuperado, para fins nacionalistas.

Sendo uma peça estruturante da tradição, principalmente nos instantes de inventar, no sentindo etimológico, uma identidade nacional, o mito relatado por Mofolo, será, a partir de 1956, segundo Goisbeault (Op cit., 2005), constantemente utilizado, feito teatro didático, por dramaturgos africanos. Dentre eles, Goisbeault destacará o senegalense Leopold Sedar Senghor (1906-2001), que escreveu um poema dramático, em dois cantos, intitulado Chaka; o malinense Seydou Badian Kouyaté (n. 1928), que escreveu uma peça de cinco atos, La mort de Chaka; e o guineense Nenekhaly Camara (1930-1972), autor de uma peça em três atos,

Amazoulou. Todas apologéticas, permitindo-se a identificação do autor com o seu

herói. Na primeira, a de Senghor, por exemplo, percebe-se “o poeta emprestando ao fundador da nação Zulu seu próprio ideal de humanismo universal” (Ibidem, p. 162); na outra, Badian “projeta sobre a personalidade de Chaka o seu plano político: a criação de uma nação com poder altamente centralizado, onde a Razão de Estado deve ser imposta a todos os cidadãos”, observa (Ibidem, p.162-163).

A despeito do mito desenvolvido por Mofolo, ainda segundo Nicole Goisbeault, “a violência agressiva” de Chaka foi transformando-se, eufemisticamente,

em uma bondosa audácia a serviço da realização de um projeto grandioso de unificação que exigia a eliminação dos fracos e covardes. Um ser do desejo e do ideal para Senghor, hábil estrategista para Badian, homem de ação responsável e integro

para N. Camara, Chaka é absolvido de todos os seus crimes e saudado pelo povo como digno representante de uma África revoltosa. A tradição só é invocada para ilustrar a adesão coletiva

através dos cantos de louvores que ligam Chaka ao leão ou ao elefante, símbolos de força e soberania (Ibidem, p. 163) [grifos nossos].

Outros dramaturgos, da geração posterior aos da negritude, como Abdou Anta Ka (Senegal), Djibril Tamsir Niane (Guiné) ou Tchicaya U Tam’Si (Congo) mostraram- se, conforme a autora (Ibidem, p. 163), mais críticos perante o herói zulu:

vê-se a passagem de um teatro puramente nacionalista para um teatro de reflexão sobre o poder, chegando às vezes até a desmistificação de Chaka e à condenação da tirania, como em D. T. Niane ou T. U-Tam’Si.

Em AVF (2007), já a partir da escolha da epígrafe de Junod e pela recusa inicial da personagem Ermelindo Mucanga em ser herói, conforme expressa no primeiro capítulo,

certo era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser evitada, custasse os olhos e a cara. Que poderia eu fazer, fantasma sem lei nem respeito? (...) herói de quê, amado por quem? Agora que o país era uma machamba de ruínas, me chamavam a mim, pequenito carpinteiro? (AVF, p. 12-13),

Mia Couto demonstra a pretensão de se alinhar aos escritores africanos pós-colonial que, embora desejosos de cultuar os seus mitos de origem, do antigamente, pois

reconhecem a sua importância no jogo de constituição da identidade cultural de seu povo, o farão de modo crítico e reflexivo.

De Chaka – do cerne de sua fala dita para os seus assassinos, e que enfeixa o pórtico do romance em estudo –, uma lição/profecia para ser apreendida: a terra

não será nunca governada por aqueles que utilizam a crueldade e a perfídia como armas, mas sim, por seres puros, que retornarão do outro lado do mar.

Sobre andorinhas, presente neste pergaminho que se desenrola, oportuna se torna a referência feita por Chevalier e Gheerbrant (1988, p. 51), quando nos diz que, para os bambara do Mali, na África Ocidental, ela é uma auxiliar, uma manifestação do demiurgo Faro, senhor das águas e do verbo. A andorinha é a expressão suprema da pureza, em oposição à terra, originalmente poluída, “suja” pelo sangue. Nos rituais de sacrifícios oferecidos a Faro, por não pousar jamais no solo, ela é quem recolhe o sangue das vítimas, para levá-lo aos espaços superiores (Céu), de onde descerá sob a forma de chuva fecundante. Por sempre retornar ao seu lugar, no início da primavera, simboliza o eterno retorno, a ressureição.

O Chaka, em sua fala profética, não se refere a alguém especificamente, embora assinale ser um “de fora”, o que virá para governar a terra e o seu povo. Os assassinos de Chaka, segundo o relato mítico, são os seus irmãos Dingaan e Mahala’ngana, ajudados por um induna61 Mbhope. E o matam pelo desejo de governar em seu lugar.

Ainda sobre Chaka ou Tchaka, o Zulu, embora os seus feitos façam parte da memória coletiva da África equatorial e austral, ele não figura no Panteão dos Heróis Moçambicanos62. No memorial, repousam os restos mortais dos que lutaram pela libertação nacional, sendo civicamente celebrados a cada 3 de fevereiro, que é a mesma data em que se deu, em 1969, o assassinato de Eduardo Chivambo Mondlane (através de uma encomenda-bomba), em Dar-es-Salaam, capital da Tanzânia.

Na Fortaleza de Maputo, outro monumento histórico moçambicano, repousam os restos mortais de Ngungunhane, o Leão de Gaza, Imperador do Reino de Gaza e descendente de um general zulu, Soshangana, que se revoltou contra o domínio de

61

O induna equivale a um líder entre os guerreiros de uma etnia. 62

Ngungunhane, Eduardo Chivambo Mondlane, Samora Machel, Filipe Samuel Magaia e Josina Machel figuram dentre os heróis que repousam no Panteão dos Heróis Moçambicanos.

Chaka e fundou o seu próprio império. No entanto, não desenrolaremos o

pergaminho mais do que desenrolado está, pois, em mise en abyme, o evocado

reside no infinito da memória.

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