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DA PERDA DA EXPERIÊNCIA AO NOVO ROMANCE

4. MOÇAMBIQUE: UMA VARANDA PARA O ÍNDICO

4.3. DA PERDA DA EXPERIÊNCIA AO NOVO ROMANCE

Em 1933, Benjamin69 (1996), refletindo sobre o monstruoso desenvolvimento

da técnica sobrepondo-se ao homem, isto é, a Modernidade, nos alertará sobre o

declínio das ações da experiência, e o perigo de extinção que paira sobre a arte de narrar. E nos dirá, então, que

ela [a experiência] sempre fora comunicada aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1996, p. 114).

No bojo das reflexões benjamianas, o silêncio experimentado por uma

68

Usamos aqui, Cf. Jacques Rancière (2009, p. 15), como o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas, i. é, fixa um comum partilhado e partes exclusivas.

69 Nascido em Berlim, em 1892, Walter Benjamin se suicidou em 1940, na fronteira entre Espanha e França, em circunstância dramáticas, por temor de ser encarcerado pela Gestapo, a polícia de Hitler. Para o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), “a primeira perda real que Hitler infligiu à cultura alemã” foi a morte de Walter Benjamin.

geração que viveu uma das mais terríveis experiências da história: a I Guerra Mundial (1914 – 1918). Esta geração,

que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (Ibidem, p. 115),

retorna silenciosa dos campos de batalha. Nas suas incertezas, uma verdade:

Nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes (Ibid., p. 115).

Abandonada, desmoralizada, essa geração, mais pobre em experiências comunicáveis – pelo desaparecimento das formas tradicionais de narrativa e, consequentemente, pelo enfraquecimento da memória –, sucumbirá, na visão do Anjo de Walter Benjamin, diante do monstruoso desenvolvimento da técnica. O foco crítico de Benjamin recai, principalmente, sobre a indústria do cinema.

No lastro das reflexões benjamianas, mas focando, principalmente, na narrativa literária, Theodor W. Adorno sintetiza, numa assertiva, o paradoxo que entremeia toda a crise atual do romance: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração” (ADORNO, 2008, p. 55).

Tratando da posição do narrador no romance contemporâneo, em 1958, ele vai demonstrar o quanto a forte presença do subjetivismo, “que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la” (Ibidem, p. 55), tem ameaçado o preceito épico da objetividade que, de certo modo, se fazia presente desde o surgimento do romance como forma literária específica da era burguesa, no curso de um desenvolvimento que remonta ao século XIX70.

Se, em seu início, “o realismo era-lhe imanente e até mesmo os romances que, devido ao assunto, eram considerados ‘fantásticos’, tratavam de apresentar seu conteúdo de maneira a provocar a sugestão do real” (Ibidem, p. 55), hoje esse

70 Associado, dentre outros acontecimentos, à invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gensfleisch “Gutenberg” (c.1397–1468), no início do período moderno (1453–1789), o romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou, segundo Benjamin (1996b), de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. O Dom Quixote de Cervantes, publicado pela primeira vez em 1605, será o primeiro grande livro do gênero.

procedimento tornou-se questionável e a narrativa de ficção diante das perdas de suas funções tradicionais para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema, se viu obrigada, assim como a pintura que as perdeu para a fotografia, a se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato. O autor, no entanto, nos lembra:

só que, em contraste com a pintura, a emancipação do romance em relação ao objeto foi limitada pela linguagem, já que esta ainda o constrange à ficção do relato: Joyce foi coerente ao vincular a

rebelião do romance contra o realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva (Ibidem, p. 56) [grifos nossos].

Para Adorno, “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite” (Ibidem, p. 56). Nas suas reflexões, ele ainda nos dirá que “contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice” (Ibidem, p. 56). E, decerto referindo-se ao romance Ulisses, “seria mesquinho rejeitar a tentativa sua [Joyce]” (p. 56) e tratá-la como “uma excêntrica arbitrariedade individualista” (Ibidem, p. 56), pois, vaticina:

se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer as coisas como elas realmente são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo (Ibidem, p. 57).

E mais ainda:

basta perceber o quanto é impossível, para alguém quem tenha participado da guerra, narrar essa experiência como antes uma pessoa costumava contar suas aventuras. A narrativa que se apresentasse como se o narrador fosse capaz de dominar esse tipo de experiência seria recebida, justamente, com impaciência e ceticismo (Ibidem, p. 56).

Ainda para Adorno, o romance rompendo com o realismo e buscando criar novas formas de linguagem estaria qualificado como peça de resistência à reificação, à coisificação do indivíduo no mundo contemporâneo, como poucas outras formas de arte.

Depois de lembrar que, referindo-se aos “efeitos psicológicos” alcançados por Dostoievski, “o romance psicológico teve seus objetos surrupiados diante do próprio nariz” (Ibidem, p. 57), Adorno retorna ao século XVIII para destacar o caráter

precursor da obra de Fielding – desde o Tom Jones –, depois lembra “os romances extremamente ambiciosos de Hermann Broch” (Ibidem, p. 58), para logo em seguida eleger Marcel Proust como insuperável “em matéria de suscetibilidade contra a forma do relato” (Ibidem, p. 58).

Sobre a obra de Proust, Adorno aponta que ela “pertence à tradição do romance realista e psicológico, na linha da extrema dissolução subjetivista do romance” (Ibidem, p. 58). O seu narrador, por exemplo,

parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço inferior – atribuiu-se à técnica o nome de monologue intérieur – e qualquer coisa que se desenrole no exterior é apresentada da mesma maneira como, na primeira página, Proust descreve o instante do adormecer: como um pedaço do mundo interior, um momento do fluxo de consciência, protegido da refutação pela ordem espaciotemporal objetiva, que a obra proustiana mobiliza-se para suspender (Ibidem, p. 59).

Também não poderíamos deixar de considerar a reflexão sobre o romance moderno, rasura e no lastro do texto adorniano, feita pelo crítico Anatol H. Rosenfeld (1996, p. 92):

O primeiro grande romancista que rompe a tradição do século XIX, conquanto ainda de modo moderado é Marcel Proust: para o narrador do seu grande romance o mundo já não é um dado objetivo e sim vivência subjetiva; o romance se passa no íntimo do narrador, as perspectivas se borram, as pessoas se fragmentam, visto que a cronologia se confunde no tempo vivido; a reminiscência transforma o passado em atualidade. Como o narrador já não se encontra fora da situação narrada e sim profundamente envolvido nela não há a distância que produz a visão perspectívica (...) o narrador se envolve na situação, através da visão microscópica e da voz do presente, tanto mais os contornos nítidos se confundem; o mundo narrado se torna opaco e caótico. Vimos que esta “técnica”, se de um lado é causa, de outro lado é resultado do fato de que, conforme a expressão de Virgínia Woolf, a vida atual é feita de trevas impenetráveis que não permitem a visão circunspecta do romancista tradicional.

Em consonância com essa perspectiva, o romance moderno se caracterizaria, dentre outros aspectos, pelo desaparecimento das relações lógico-causais dos acontecimentos narrados, graças ao tom autobiográfico e testemunhal resultante da presença de um narrador em primeira pessoa. Desse mundo borrado, fragmentado,

em crise, poderá vir à superfície o lado penoso da história dos vencidos, comumente não retratados pela história instituída. E daí, certamente, resultaria uma escrita política, de resistência. De certo modo, julgamos ser este o caminho percorrido pela escrit(ur)a coutiana, nascida, segundo Tania Macêdo e Vera Maquêa (2007, p. 48), enquanto os sonhos do passado, de liberdade e de autonomia nacional se estilhaçavam.

Outro não será o alcançado pelo pensamento do professor e crítico literário Derivaldo dos Santos, ao reportar-se à produção poética coutiana:

[Ela] não se resguarda da história nem da vida, pois se eleva a cargo de reivindicação social, canto de descoberta e de discórdia da vida instituída em torno da realidade de onde ela brota. A poesia, ainda que se considere o mundo particular que a escrita comporta, e não raras vezes traduzindo a dor pungente de seu criador, é um abrigo do coletivo, na medida em que o poeta é capaz de dar à sua criação um estatuto de matéria dupla. Escrever poesia é comprometer-se, antes, com a palavra-criação, e ter, a um só tempo, o compromisso de que a sua revelação não se limita à ordem estética (SANTOS, 2011, p. 1- 2 [grifos nossos]).

Homem de seu tempo, na praça à convite, Mia Couto não sucumbirá:

Na última viagem que fiz de avião entre Moçambique e a Europa uma ideia me ocorreu. E era a seguinte: nos nossos dias, já não há viagem. Deslocamo-nos, apenas. Embarcamos num continente para, horas depois, ganharmos destino num outro mundo, a distâncias atingíveis por números, mas não por humano entendimento. A viagem essa antiquíssima epopeia, com os seus desconhecidos meandros, os seus ritmos e presságios, essa viagem morreu. A velocidades que possibilita a deslocação acabou matando a viagem. Com ela se extinguiu a transição pausada entre gentes e lugares, essa travessia que convoca travessias das nossas próprias paisagens interiores (COUTO, 2009, p. 184).

Diante da crise provocada pelo “acelerado desenvolvimento tecnológico” que “mata a viagem” e deixa em baixa “as ações da experiência”, karingana wa

karingana, Mia Couto encontrará, no intercâmbio das línguas, o seu “morrer para

nascer de novo”:

(...) As línguas são as mais poderosas agências de viagens, os mais antigos e eficazes veículos de troca. Sendo maioritariamente uma língua dos outros, o português em Moçambique é língua de migração, um veículo com que saímos de nós e viajamos para dentro de uma nova cidadania (Ibidem, p. 184)

Certamente, “poderosas agências de viagens”, logo, vasto terreno, como nos garantem Tania Macêdo e Vera Maquêa (2007, p. 56),

para experiências estéticas criativas e temáticas alternativas ao império cultural estabelecido pelo Ocidente, fundando particularidades na forma romanesca, sem se privar das conquistas formais do gênero, como a autorreferencialidade e a fragmentação saturada do romance pós-moderno.

O romance AVF, por exemplo, é, pela sua contemporaneidade, pois escrito no momento de vivência do autor, quase um testemunho71 da história recente de Moçambique. Esse testemunho – discurso histórico que dá vida ao discurso literário –, no entanto, não será contado por uma voz única, autoritária, mas atravessado por outras vozes que, silenciadas, pedem agora silêncio para falarem sobre si e o seu tempo vivido. Senão, vejamos.

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