• Nenhum resultado encontrado

Das metrópoles às passarelas: a industrialização da moda 9

PARTE I: ‘FOTOGRAFANDO’ UM MOVIMENTO

2.2 MODA E ESTILO NA METRÓPOLE 7

2.2.2 Das metrópoles às passarelas: a industrialização da moda 9

A partir do advento da alta-costura (haute-couture), em 1857, consolidou-se uma nova forma de distinção. O surgimento do primeiro grand couturier, o inglês Charles-Frédéric Worth (que abriu a sua maison de alta-costura naquele ano, considerada a primeira do mundo) coincidiu com a ascensão do poder e prestígio da burguesia industrial, que queria se fazer notar e, portanto, os aspectos visuais dos seus trajes eram muito semelhantes daqueles da nobreza (BRAGA, 2005, p. 62-63). É quando a engrenagem da moda, calcada na dinâmica de fluxo/diferenciação, homogeneização/individualização, imitação/diferença (TARDE, 2005) dá um novo passo na sua consolidação. Nas palavras de Morin (2006):

o primeiro motor da moda é evidentemente a necessidade de mudança em si mesma da lassidão do já visto e da atração do novo. O segundo motor da moda é o desejo da originalidade pessoal por meio da afirmação dos sinais que identificam os pertencentes à elite. Mas esse seu desejo de originalidade, desde

124 Os mestres artistas retratavam personagens deusas, ninfas e sultanas do século XVIII, “moralmente

verossímeis”, que representaram retrato de uma época (SIMMEL, 1973, p.175), vestindo-as com indumentária antiga. Foi uma forma de captar o eterno do transitório.

94 que a moda se espalhou, se transforma em seu contrário; […] vira padrão. E é então que a moda se renova aristocraticamente, enquanto se difunde democraticamente (MORIN, 2006, p.142)

Ainda que tenha sido mais um passo na democratização da moda pelos progressos da sociedade e da cadeia de confecção, a ostentação e o luxo chegaram a ser considerados retrocesso. Mas, além da exuberância, Worth dedicou-se ao estudo dos movimentos do corpo e investiu em modelagens confortáveis. De qualquer forma, foram o “luxo e riqueza dos trajes e esse entusiasmo pela variedade de modelos e cores [que] certamente vieram a colaborar com a paisagem das ruas de Paris, habitadas pelas damas da burguesia, que passaram a sair mais, adotando o hábito dos passeios” (ROCHA, 2009, s/p).

Além do pioneirismo no métier, Worth instaurou, também, um relacionamento mais profissional no meio, agora entre criador e cliente, e não mais entre executante e senhor (VINCENTE-RICARD, 2002), ao forçar suas clientes a irem até as maisons para ver os modelos. Tornou seus desfiles e eventos obrigatórios para as damas mais elegantes da sociedade parisiense da segunda metade do século XIX. Foi responsável pelo lançamento da sazonalidade aos desfiles, que impôs a regularidade bianual dos lançamentos das coleções (primavera/verão e outono/inverno).

Entre as inovações da primeira fase, estão o aperfeiçoamento do sistema fashion, a projeção dos costureiros franceses no centro das profissões da moda e a legitimição de sua autoridade na definição do rumo do setor, prestigiado como artista, o criador da moda, “que exteriozava seu gosto e suas vontades no processo de elaboração das roupas, dando o aval do seu prestígio ao assinar a sua criação” (BRAGA, 2005, p. 64). Lipovetsky (1989, p. 70) define este período como moda de Cem Anos125, “um sistema bipolar fundado sobre uma criação de luxo sob medida, opondo-se a uma produção de massa, em série e barata, imitando de perto ou de longe os modelos prestigiosos e griffes da Alta Costura”.

No período que antecede a II Guerra, grandes costureiros se destacaram – Paul Poiret, Gabrielle Chanel, Madeleine Vionnet, Elsa Schiaparelli – ao lado da sucessão de vanguardas (Cubismo, Surrealismo e Dadaísmo) que renovaram as produções artísticas e a percepção

125 O sistema que “não só aproximou as maneiras de vestir-se, como difundiu em todas as classes o gosto das

novidades, fez das frivolidades uma aspiração de massa, enquanto concretizava o direito democrático à moda instituído pela Revolução” (LIPOVETSKY, 1989, p. 78).

95 estética, transformando valores e costumes e, inclusive, influenciando as criações daqueles. Antes de 1930, os fabricantes dedicaram-se aos novos tecidos, e roupas de noite podiam ser feitas de algodão ou lã, sem ir contra os sinais de elegância. No entanto, após a crise de 1929, os americanos impuseram um imposto. Mesmo assim, os materiais sintéticos eram acessíveis a todas as classes sociais, o que diminuiu qualquer distinção entre as classes (KRUPNYK, 2011).

A Primeira e a Segunda Guerra Mundiais foram marcos históricos na constituição da sociedade. O mundo estava em recessão econômica, e a situação refletiu-se em todos os setores, inclusive no têxtil. Potencializou-se ainda mais a produção em massa, devido à demanda de uniformes para os soldados e de roupas práticas para as mulheres que assumiam funções masculinizadas. A entrada delas no mercado do trabalho exigiu roupas práticas e funcionais. As mulheres passaram cada vez mais a adotar as calças, tornando-as “roupas de interesse público”.

Ao mesmo tempo em que o papel do costureiro, que passou a ser chamado de estilista no decorrer da primeira metade do século XX, assumiu enorme destaque, com a situação econômica difícil, houve uma queda no setor da alta-costura e racionamento na indústria têxtil. Também se passou a renovar roupas antiquadas e reutilizá-las. Por volta da Segunda Guerra Mundial, após a ocupação alemã, a França manteve a sobriedade nas criações, em nome do desperdício (deixou de propor modelos reconhecidos pela sua excentricidade) e perdeu seu

status em benefício dos Estados Unidos.

Mas em 1947, após anos de racionamento severo, com os modelos sendo, inclusive, determinados em seu estilo de corte, Dior lança uma coleção batizada pela editora-chefe da revista Harper’s Bazaar como New Look. O estilo da coleção caracterizada pela extravagância e feminilidade, apresentava modelos cuja nova elegância pedia acessórios que encareciam o vestuário de quem queria estar na moda. As saias eram “amplas, geralmente pregueadas ou drapeadas, que aumentava incrivelmente a quantidade de tecido utilizado […] luvas e chapéus eram imprescindíveis” (POLLINI, 2007, p. 60),

Em certa medida, Dior fez regredir a condição da mulher, que, a partir de então, queria ser independente, elegante e sofisticada. O estilista é responsável, também, por oxigenizar a moda e restaurar a imagem de Paris como o centro da moda mundial, apesar das adversidades. Os anos 1950 deram lugar a uma intensa atividade criativa, com duas coleções por ano. Segundo Krupnyk (2011), alguns designers, como Chanel, retomaram suas atividades, e outros se destacaram em notoriedade.

96 Considerados ditadores absolutos das regras da moda seguida religiosamente pela alta sociedade opulenta que a compra, só podiam ser copiadas pelas demais mulheres após determinado prazo. “Pelos regulamentos da Câmara Sindical da alta-costura na época, os veículos de comunicação somente podiam reproduzir os modelos após um prazo de dois meses” (VINCENT-RICARD, 2002, p. 57). De acordo com Caldas (2006, p. 55), “das passarelas e casas parisienses vinham os modelos comprados pelos grandes magazines para confecção. Eram também reproduzidos pelas revistas e simplificados pelas costureiras no mundo todo […]”.

Esse tipo de ditadura vertical da moda, chamado Trickle Down Theory ou Teoria do

Gotejamento é a explicação clássica da difusão da moda que surgiu com os desfiles das coleções

de alta-costura, por meio dos quais as tendências126, que aí nascem com essa nomenclatura, gradativamente se popularizam até chegar às lojas de departamento e, após, às ruas. O conceito define a inovação, a partir do topo da sociedade, que depois goteja sobre os grupos sociais inferiores pelo fato de eles apresentarem “uma tendência a se elevar ao nível das classes mais altas assumindo suas características”, conforme Svendsen (2010, p. 44).

Esse modelo básico que crê na moda por definição de classe (SIMMEL, 1988; BOURDIEU, 2008), já comentado, acabou perdendo a força porque partia da ideia do atraso da adoção de uma moda depois que pessoas de posição superior (por serem mais abastadas ou por gozarem de prestígio social) a imitassem. Apenas uma minoria tinha o papel de criador de moda, como um sistema gerador de ideias e referências para a maioria. A difusão da moda, articulada em torno de duas indústrias, a haute-couture e a confecção industrial funcionou, durante um século, mas sofreu uma “série de transformações127 organizativas, sociais e culturais que podem ser definidas como ‘revolucionárias’, a partir dos anos 1960 e 1970.

126 A palavra deriva do latim “tendentia”, do verbo tendere, cujos significados são “tender para, inclinar-se para ou

ser atraído por”. Raramente utilizada até o século XIX, ficou conhecida “quando adquiriu o sentido de ser aquilo que leva a agir de uma determinada maneira, ou ainda, predisposição, propensão” (CALDAS, 2006, p. 25). Na psicologia, a ideia é relacionada ao desejo e ao direcionamento à sua satisfação. A herança positivista adiciona ao movimento gerado pela tendência um fim que é nada menos que o progresso e o futuro. Na prática, se popularizam no pós-guerra, junto com o desenvolvimento do consumo de massa, pois se vinculam aos gostos coletivos. Vale ressaltar que a aparente uniformidade das tendências mascara uma grande diversidade de fenômenos, explicada pela sociologia das tendências. Não se pode confundir certos fenômenos de moda com modismos massivos, segundo Erner (2010).

127 A adoção da calça como peça central do vestiário feminino é uma dessas mudanças, infringindo prerrogativas

profissionais e sociais comuns até então. A partir de 1965, segundo Monneyron (2011, p. 31-33), na obra La Frivolité essentielle, o número de vendas de calças evoluiu e ultrapassou o número de vendas de saias e, em 1971, se aproximou da venda dos vestidos. Diminuem as distinções, e as mulheres, cada vez mais ativas, perdem o medo, inclusive de usar a minissaia. Essa peça, apesar de ter sido inventada por Andre Courrèges nos anos 1920, foi popularizada por Mary Quant, que a comercializou. Assim, tornou-se símbolo da independência das mulheres.

97 Após alcançar seu ápice, nos anos 1950, as mudanças econômicas e políticas na sociedade inovaram o modelo, e foram movimentos sociais e culturais em voga que romperam as regras do setor na busca pelo novo. O prêt-à-porter lançado “na França por Jean Claude Weill em 1949, calcado na expressão inglesa ready-to-wear constituiu um dos principais símbolos dessas mudanças” (CALANCA, 2008, p. 54). Em linhas gerais, pode-se dizer que significou a sistematização da produção do vestuário, em série e em tamanhos pré-definidos.

Por sua vez, o prêt-à-porter, que significa “pronto-para-vestir”, inverte a lógica da produção feita até ali e, diferentemente das confecções industriais em série (e embora a alta- costura continue a existir), passa a produzir em massa peças de roupas com tecidos mais baratos (o algodão principalmente), acessíveis a um grande número de consumidores, sem deixar de agregar a inspiração nas últimas tendências. Nesse caso, cria um sistema de tamanhos padrão (internacional) que estetiza a moda industrial, massifica grifes e também difunde pelas ruas estilos e gostos diversificados, de acordo com Calanca (2008), em especial a partir da Inglaterra e dos EUA.

“Moda aberta” é a expressão utilizada por Lipovetsky (1989, p. 116-117) para explicar o período em que a moda desvincula-se do luxo, e os estilistas do prêt-à-porter suscitam a verdadeira revolução no sistema de grifes ao impor seus nomes como uso da imprensa e da publicidade para distinguir-se dos seus rivais. A partir dos anos 1960, portanto, houve uma verdadeira abertura no mercado e na criação, com a diversificação da indústria e das grifes, dali em diante personalizadas, por meio dos primeiros anúncios e do planejamento da imagem das marcas. Desencadeou-se uma mutação estética, mas também simbólica, segundo Lipovetsky. “Mais nenhuma hierarquia homogênea comanda o sistema da moda, mais nenhuma instância monopoliza o gosto e a estética das formas” (LIPOVETSKY, 1989, p. 117).

O estabelecimento do sistema industrial, o ciclo dos lançamentos através de desfiles, com posterior produção em massa, e a distribuição regular projetam a passarela128, a qual tornou-se o lugar oficial da moda como evento. Embora a palavra passarela tenha surgido ainda no século XIX, no mesmo período em que a moda e a cidade floresciam, nos tempos da passante e do flâneur, pois era o local da travessia de pedestres, foi a via fundamental das fashion-weeks (semanas de moda), os movimentos sazonais de moda. Com origem no verbo francês “passer”

128 É uma estrutura usada, também, para apresentações e concursos. No Brasil, o termo é conhecido e nomeia o

98 (passar), a passarela abarca o sentido de travessia de circulação e, portanto, está inserida no fluxo dos desfiles das coleções nacionais e internacionais.

A passarela é um dos estágios do circuito da moda prêt-à-porter até chegar às ruas, cuja regularidade no hemisfério norte é de duas vezes ao ano. No sul, igualmente profissionalizado, os eventos também são bianuais, embora a periodicidade seja um pouco diferente. Segundo Palomino (2002, p. 28),

[...] Os desfiles para o verão europeu ocorrem em setembro e outubro, e os para o inverno, em fevereiro e março. Essas roupas vão chegar às lojas de seis a sete meses depois, diferentemente do que ocorre no Brasil, onde os eventos são mais colados com o varejo. Isso se dá porque aquelas temporadas internacionais estão mais consolidadas e acontecem de modo mais profissional. Ou seja, são feitas para os profissionais do setor.

Esse processo coincidiu com o desenvolvimento dos meios massivos (a TV em especial), período em que todas as camadas da sociedade conquistaram poder de compra e passaram a consumir mais moda, fenômeno que se tornou geral, instituindo um novo estado da demanda. Assim, o desejo por vestuário, entretenimento e prazer expandiu-se com força. Como explica Lipovetsky (1989, p. 115), “há essa democratização última dos gostos de moda trazida pelos ideais individualistas, pela multiplicação das revistas femininas e pelo cinema, mas também pela vontade de viver no presente, estimulada pela nova cultura hedonista de massa”.

Ao ter possibilitado que se escapasse do mundo da tradição, a moda começou a permear, de modo permanente, o mundo do consumo e a impor-se, interferindo na autonomia/individualização dos sujeitos pelo fascínio e prazer de sedução que gera. Em outros termos, sua dinâmica cíclica e efêmera é, antes de tudo, efeito das valorizações sociais ligadas às novas posições e representações dos sujeitos em relação a si e ao conjunto coletivo, que exaltam a unicidade dos seres e promovem a diferença. “[…] A consciência de ser dos indivíduos de destino específico, a vontade de exprimir uma identidade única, a celebração cultural da identidade pessoal, longe de constituírem um epifenômeno, têm sido uma força produtiva, o próprio motor da mutabilidade da moda” (LIPOVETSKY, 1989, p. 59), mesmo que estas identidades sejam múltiplas ou fluídas.

99 Chegamos à era da “moda consumada”, com o setor mais complexo e democratizado, alcançando instâncias cada vez mais amplas da vida cotidiana. “Estamos imersos na moda, um pouco em toda parte e cada vez mais se exerce a tripla operação que a define propriamente: o efêmero, a sedução, a diferenciação marginal”, conforme o autor (1989, p. 155), ou seja, pela cultura da urbe. Nessa perspectiva, nas últimas décadas, a realidade fragmentada das narrativas midiáticas e das manifestações socioculturais, reflexo da sociedade contemporânea, aponta a expansão da moda para novos campos da vida social – política, religião, esportes, artes, arquitetura, tecnologias –, mostrando-se as ruas das metrópoles como o lugar exato e espontâneo do acontecimento moda.