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Das migrações “forçadas” às multiterritorialidades

5 TAPERA: DA DOAÇÃO DE TERRAS À FRAGMENTAÇÃO DO TERRITÓRIO

5.3 A ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO

5.4.2 Das migrações “forçadas” às multiterritorialidades

Observa-se que a globalização acelera, violentamente, os processos de desestruturação das comunidades tradicionais, desequilibra e altera, profundamente, as relações de homens para homens e dos homens para com a natureza.

Isto porque os processos migratórios para as cidades são seguidos pela destruição dos laços de solidariedade tradicionais e da estabilidade de famílias.

No entanto, observa-se que esses migrantes ficam encurralados e segregados em dezenas de milhares de favelas, sem qualquer perspectiva de romper o “círculo vicioso” da pobreza, ignorância e violência.

Fico triste ao ver os meus filhos e netos morando hoje em Salvador. Minha filha mora em Narandiba, pra chegar na casa é preciso descer um barranco, a casa dela fica do lado de um rio que virou esgoto. Só tem maconheiro no lugar, é cada cara mal encarado que não gosto de ir lá. Fico muito triste de ver meus netos naquelas condições, expostos à criminalidade. Eles gostam tanto daqui mas, infelizmente não gostam de trabalhar na roça. Fico muito triste ao ver aquela miséria que estão submetidos. (Grupo focal 2 – Tapera, depoimento concedido em 15 de agosto de 2008)

No passado, com relações sociais mais estáveis, os indivíduos nasciam, viviam e morriam dentro de suas comunidades, sua classe e seu credo religioso, fossem eles escravos durante o regime colonial, servos no feudalismo ou operários no sistema capitalista.

As migrações para as grandes cidades tendem a destruir os laços tradicionais de cooperação e solidariedade. Esperanças de mobilidade geográfica e social levaram muitos moradores da Tapera a abandonar o campo, em busca de inserção na economia de mercado. Mas, as cidades, longe de serem lugares de liberdade, se tornam, para muitos dos migrantes, uma armadilha, por falta de acesso a empregos estáveis e serviços de educação e saúde, sobretudo para adolescentes e jovens. Vivendo na miséria, segregados e sem esperança de mobilidade social, os jovens engrossam as fileiras da delinqüência, do narcotráfico, da prostituição e da criminalidade. Concentrada em áreas de extrema pobreza, sem infra-estrutura, educação escolar e serviços de saúde.

A comunidade da Tapera tem passado por um processo migratório continuado, onde, no ano de 2008, vinte e cinco jovens migraram para a capital de Santa Catarina. No entanto, a cidade que mais atrai é Salvador e, de acordo com pesquisa de campo, todos que migraram pra esta capital moram na periferia, com destaque para os seguintes bairros: Fazenda Grande, Bairro da

Paz, Tancredo Neves, Pernambués, Cajazeiras, São Cristovão e Nordeste de Amaralina. Muitos trabalham no mercado informal, continuam com pouca escolaridade e tem como maior meta retornar pra a Comunidade.

Moro em Salvador há dez anos, trabalho de cobrador de ônibus, mas nunca me acostumei com cidade. Se pudesse vinha pra cá todos os finais de semana. Meu único lazer é vir pra cá. Quando pego a BR vindo, meu coração fica numa felicidade, na volta ele vai preso amargurado, chega dá um nó na garganta. Se tivesse como manter a minha família aqui vinha embora na hora, só que a roça não dá lucro, pois um mês você tem em outro não, é muito incerto. (Grupo focal 3 – Tapera. Depoimento concedido em 16 de agosto de 2008).

Os que migram, sempre retornam pra Comunidade quinzenalmente, mensalmente, por bimestre, semestre ou anualmente. Ao retornarem levam consigo a percepção da experiência de múltiplos territórios. Isto porque vivenciam cotidianos distintos, em dois territórios diferentes. Sendo assim, mesmo não construindo uma identidade com o novo território, esses migrantes, acabam tendo a experiência de viver, ao mesmo tempo, em mais de um território. Este caso implica em mudanças de alguns hábitos, fato que marca a multiterritorialidade. Desta forma, os moradores da Tapera que migraram, ao retornarem, mesmo a passeio, trazem consigo experiências territoriais de outros lugares, que diversas vezes se manifestam no velho território. O retorno indica, muitas vezes, algum vínculo com o passado: o resgate de um tempo-espaço, uma reconstrução, uma fuga.

No entanto, estes sujeitos passam por dois processos de des-reterritorialização, que geram certamente grandes mudanças. Um primeiro momento de des-reterritorialização ocorre quando o quilombola deixou seu território de origem e se fixou (ou não) no território de imigração, ou seja, ocorre o processo de des-reterritorialização de saída. O segundo momento de des- reterritorialização ocorre quando o quilombola migrante deixa o território de imigração, rumo ao seu território de origem, ou seja, ocorre a des-reterritorialização de retorno. Estes dois processos constituem infinitas territorialidades que se entrecruzam e se reproduzem, gerando grandes diferenças na territorialidade.

O migrante retornado se encontra numa posição bastante singular: deixou família, casa, amigos em busca de um objetivo (ou por falta dele) num lugar muito distante de tudo que sempre reconheceu como parte de sua identidade. Após um determinado período retorna para este lugar e nota que muitas coisas ao seu redor estão diferentes de quando as deixou. Na verdade, o próprio retornado já não é mais o mesmo, seu olhar já está encoberto pelo “óculos” que o lugar de destino

lhe fez usar, tornou-se um híbrido. Neste sentido, nem ele, nem o lugar de origem são mais os mesmos. Há, ainda que pouco nítido algum estranhamento entre o retornado, transformado no/pelo lugar de destino, e o lugar de origem, que também sofreu transformações à medida que a sociedade local continuou seu curso de produção do espaço.

Quando eu morava aqui as coisas eram mais difíceis, não tinha transporte, não tinha esse movimento de bar que tem hoje. Os bares daqui só vendiam cachaça, os jovens e mulheres não o freqüentava. Hoje, todo mundo que fica aqui tem moto, carro, as casas todas arrumadas: pintadas, de piso de cerâmica, banheiro, mobília... Agente percebe que até os hábitos alimentares mudaram, hoje o povo come bem e parece que vive mais. Percebi que em quase todas as casas tem aposentado. (Grupo focal 2 – Tapera, depoimento concedido em 16 de agosto de 2008)

Analisando o processo, observa-se que as experiências do retornado traz impactos para sua territorialidade e no território de retorno. Pois, no retorno, o indivíduo “processa” as experiências territoriais vividas no território de imigração com aquelas que ele territorialmente reconhece e, ainda, com aquelas que estranha no território de origem. Esse reconhecimento/estranhamento leva os retornados a criarem ou aplicarem estratégias que são influenciadas pelas experiências adquiridas nas suas múltiplas territorialidades. Neste momento é que se percebe o surgimento de uma nova territorialidade, agora múltipla, pois mescla as influências territoriais vividas por estes indivíduos.

A aparente desterritorialização proporcionada pela dominação dos espaços em detrimento da sua apropriação, mascara a construção de uma nova territorialidade, uma territorialidade híbrida que nem mesmo os próprios migrantes percebem de imediato. O retorno, e a vivência no território de origem é que propicia a real percepção do quanto o território de imigração contribuiu na construção de uma territorialidade múltipla.

Morei cinco anos em Salvador, mas não quero nem saber daquele lugar. Morava no bairro da Paz já passei várias noites sem dormi por causa de tiroteios, dois vizinhos foram assassinados. Trabalhava na construção civil e, num final de tarde de sábado, estava esperando ônibus no ponto do centro de abastecimento do Rio Vermelho quando passou uma viatura da Polícia Militar. O ponto estava cheio, os policiais desceram me abordaram, olharam a minha mochila que tava com a roupa suja de cimento, me ameaçou e foram embora. Fiquei muito triste, nervoso e envergonhado. Com isto, peguei o primeiro ônibus que passou, nem sabia pra onde ia. O que eu mais queria era fugir daquele lugar, pois achei que todos estavam pensando que eu era bandido. Depois disso, pedi as contas na empresa, vim embora trabalhar de moto táxi aqui. Hoje estou muito feliz, na minha Comunidade onde todos conhecem o meu caráter.

Mas, quando a gente sai adquire novos hábitos e quando volta o lugar não é mais o mesmo. Não sei se fui eu que mudei ou foi a Tapera que mudou no decorrer desse tempo. (Grupo focal 3 – Tapera. Depoimento concedido em 16 de agosto de 2008).

A mudança na percepção do seu território resulta das ações que são empreendidas sobre o lugar de origem e a mudança no seu próprio modo de ser, mostram para os outros o quanto a migração valeu, ou não, a pena. Assim, o retorno, mesmo que sazonal, proporciona uma reterritorialização com influência da metrópole. É neste caso que a Comunidade passa a ser um território plural, pois, coexistem duas territorialidades a tradicional e a dos retornados.

Apesar do deslocamento de muitos jovens, há um significativo número de famílias que migraram na década de 1990 e estão retornando. Os que retornam e voltam a fixar residência na Comunidade não mais desenvolvem as mesmas atividades tradicionais. Geralmente são os donos de bares, mercearias, transporte coletivo, cargo de confiança no serviço público, trabalhadores do comércio da cidade de Irará ou empregada doméstica também na cidade.

De acordo com o depoimento que segue os retornados não se adaptam a estrutura produtiva, pois eles constroem uma nova identidade que não se adequa à condição do camponês.

Morei doze anos em Salvador e vi que lá não era um lugar bom pra criar meus filhos. Eles ficavam em casa sozinhos enquanto eu e meu marido trabalhávamos. Aqui tem toda a minha família e terra pra construir uma casa, morávamos de aluguel. Mas não consigo mais dá duro na roça, é muito difícil, por isso prefiro trabalhar de doméstica na cidade, é dinheiro pouco mais certo, somado com a Bolsa Família e o bico que meu marido faz, consertando sapatos na cidade tá bem melhor que em Salvador. Há também outro problema, as terras são poucas e fracas, meus irmãos já estão trabalhando. (Maria Dalva de Brito, depoimento concedido em 27 de julho de 2008).

Sendo assim, a territorialidade está associada à identidade. Sobre a identidade, Hall (2001) traz algumas reflexões: à medida que o contexto contemporâneo é marcado pelos descentramentos e a globalização como reação a estes processos emergem de igual modo dois padrões: a homogeneização e a busca pelas “raízes”. Porém, o autor completa que ainda que seja tentador pensar a identidade restringida a dois caminhos: um retornando às “origens” e outro desaparecendo através da assimilação ou homogeneização, tais caminhos não levam em consideração a questão da tradição. No que tange à análise de comunidades tradicionais, é plausível pensar-se que tanto os “lugares de memória”, como a representação identitária, lançam mão de elementos culturais e que estes elementos também não são “puros”.

As trocas culturais se tornam uma via de mão dupla, a Comunidade quilombola não é mais um reduto fechado, como guardiã da tradição, pois as manifestações culturais também são híbridas. Ao mesmo tempo em os jovens da Comunidade organizam o samba de roda e as pastorinhas, também organizam os pagodes nos finais de semana. Tanto que alguns jovens da

Comunidade montaram uma banda, na qual tocam forró, axé e pagode. Esta banda faz vários shows, durante todo o ano, em todo o município de Irará e municípios circunvizinhos.

Por conta disso, os participantes do grupo focal 2, prestou o seguinte depoimento:

A saída dos jovens para trabalhar fora tem modificado bastante os hábitos dos moradores, dos jovens em especial. Antigamente todas as diversões eram baseadas nas manifestações culturais da própria comunidade: as pastorinhas, as batas de feijão, os sambas e rezas de Cosme e Damião, a chegança...hoje, tudo isto ainda faz parte das festas da comunidade, mas na mesma proporção a gente ver acontecer os pagodões de final de semana nos bares, o modo dos jovens se vestir, os cortes de cabelo, o uso de drogas. (Grupo Focal 2 – Tapera. Depoimento concedido em 26 de julho de 2008).

Nota-se que, apesar das alterações no modo de vida, os jovens da Comunidade, mesmo os que migram, gostam de ser da Tapera, gostam da história da Comunidade, se tivessem condições de sobreviver continuariam morando na Comunidade.