• Nenhum resultado encontrado

ZEZÉ MARTINS E “AS IDÉIAS REVOLUCIONÁRIAS”

5 TAPERA: DA DOAÇÃO DE TERRAS À FRAGMENTAÇÃO DO TERRITÓRIO

5.2 ZEZÉ MARTINS E “AS IDÉIAS REVOLUCIONÁRIAS”

Os atuais moradores da Tapera, apesar de marginalizados e segregados, têm orgulho de se auto-identificarem como descendentes de cativos, mas que se constituíram na condição de donos de terra. Diante disso, exaltam a pessoa de Zezé Martins como o herói “branco que deu liberdade aos negros”.

Eles têm como instrumento de defesa um posicionamento político-ideológico que os coloca numa condição de superioridade em relação aos moradores da Olaria. Sempre usam expressões tais como: “a gente é pobre e o povo da Olaria é peregrino”; ou “a gente tem terra, pouca, mas tem; e eles não”. Este posicionamento resulta do ato de terem a propriedade privada da terra, que perpassa por uma questão de poder.

Elemento articulador de todas as relações, em todas as instâncias sociais, o poder é um conceito chave que permite avançar, descobrir a dialética da produção e da apropriação do espaço territorialmente.

Observa-se que a idéia de superioridade, resulta do fato que, Zezé Martins, ao doar as terras, proporcionou uma condição de liberdade para o indivíduo. No entanto, segundo moradores, ele impunha as suas regras na organização social. Ele representava os três poderes: criava as leis, executava-as, e julgava os cidadãos. Mantinha uma postura político-ideológica contrária aos interesses dos latifundiários, de toda a elite burguesa e do Estado. De acordo com o grupo focal 1: “Pregava que os negros deveriam se rebelar e tomar o poder”. Deste modo, organizou um movimento que levantava recursos para comprar cartas de alforria. E organizou outro plano de “libertação” de alguns negros que, mesmo depois da Abolição, viviam na condição de escravos em propriedades locais. Neste sentido, ele oferecia a posse da terra como

um instrumento de libertação do cativeiro. Diante disso, passou a ser considerado pelos fazendeiros como subversivo, e foi comparado aos principais “bandidos” conhecidos, conforme reportagens que seguem:

Espero que as estrellas há de scintillar perennemente sôbre as terras de Irará. Apóis a actitude insanna da princeza Izabel, as nossas roças só tem enfraquecido, o que enfraqueceu também o comércio. Ninguém mais quer trabalhar, ou trabalha sem vontade (...) tem um branco pelas banndas do Santo Antonio pregando desordem e dano terra pra os infammes, ta virando uma nova Canudos aqui em Irará, mas eu, em nome da ordem, dos bons costumes e da honra da nossa terra não vou permitir que nosso município entre nas páginas tristes da história. (...) A gente precisa de homens que levem o progresso e a riqueza pra nosso município. (Discurso do Intendente Coronel Elpídio Nogueira para os fazendeiros, publicado no jornal “O Iraraense”, em 15 de março de 1898.)

Nas sociedades rurais subdesenvolvidas, o banditismo sempre captou os interesses e a fantasia do povo. Na verdade, o fascínio que estes bandidos exercem e a criação de lendas sobre eles – sem mencionar o fenômeno do próprio banditismo – parecem ter sido universalmente difundidos. O homem, ou ocasionalmente a mulher, que vive fora da lei como um celerado errante, aparentemente livre de qualquer restrição da sociedade, desperta uma fibra de nossa imaginação, principalmente quanto mais remotas forem suas colocações no tempo ou no espaço. Desta forma, os ingleses vibram com os feitos de Robin Hood e seu alegre bando; os americanos contam as aventuras de Jesse James; os mexicanos, as façanhas de Pancho Villa, os brasileiros, as de Lampião; os feirenses com Lucas da Feira; e os iraraenses, as de Zezé Martins. (NOGUEIRA, p. 18 1960)

O Coronel Elpídio Nogueira, interventor federal no município, compara Zezé Martins com Antonio Conselheiro. Isto porque Canudos representou, de certa forma, um movimento de reação à República. Não propriamente ao regime político republicano, mas ao significado que lhe fora atribuído pelo sertanejo: de uma nova ordem que favoreceu os poderosos e só instaurou mais opressão. Em contraposição à República, este movimento defendia a idéia de monarquia, que significava uma nova ordem sem opressão, e não a restituição do poder monárquico. Por isso, foi identificado como um movimento messiânico. Para Negrão (2001), o messianismo caracteriza-se pela crença na vinda do “messias” ou do seu emissário para acabar com uma ordem de opressão e instaurar uma nova ordem. O movimento messiânico implica uma atuação coletiva no sentido de instaurar esta nova ordem, sob a direção de um líder carismático. Em Canudos, Antônio Conselheiro e na Tapera, Zé Martins.

Por não se sujeitar ao novo regime, Zezé Martins passou a conceber – na visão dos representantes do governo republicano – um mau exemplo para a população negra, pois muitos abandonaram as fazendas para segui-lo.

Zezé foi considerado um revolucionário na escala local, pois implantou uma comunidade baseada numa estruturação sócio-política própria, negava toda as leis republicanas e defendia a monarquia. A recusa do novo modelo assumiu o caráter de idealização de um reino de paz, justiça e fraternidade, baseado no conceito sertanejo de monarquia. Assim, para Queiroz (1977), o messianismo leva à recusa e alienação do mundo e à criação de uma nova comunidade que acredita na transformação sobrenatural do mundo e na identificação do passado como a "idade de ouro".

Por isso, todas as questões de ordem pessoal dos membros da Comunidade tinham que passar pelo crivo do Zezé: era ele quem definia as relações de casamentos, as atividades religiosas, os padrinhos das crianças que nasciam, as festas e todo o comportamento social do grupo. Era preciso

fazer o que ele queria. Minha mãe contava que quando uma moça ia chegando nos 15 anos, logo ele arranjava um casamento. Todos tinha que casar dentro da comunidade. Ele expulsava os que porventura alguém gostasse de uma pessoa que não fosse daqui. Zezé era uma pessoa boa, mas todo mundo tinha que obedecer a ele. (grupo focal 1 da Tapera, em 18/02/2008)

De acordo com a oficina de memória da comunidade, foi possível compreender que Zezé Martins foi/é considerado um grande homem dotado de características que são valorizadas, não físicas, mas espirituais, psíquicas e intelectuais. Assim, através da sua personalidade e da defesa de uma idéia, exercia influência sobre os demais. Convém acrescentar que ele tinha qualificações superiores às dos seus liderados: sabia ler e escrever, e estudou até o quarto ano de seminário. A idéia que defendia – uma Monarquia como o reino dos negros, em oposição à República – representava um governo ilegítimo: acreditava que o governo dos homens fazia leis injustas, era arbitrário e contrário à justiça de Deus; por isso, devia ser combatido. A estratégia de combate encontrada foi criar uma “comunidade alternativa”. Sendo assim, saía com seus seguidores para pregar na feira livre municipal que acontecia aos sábados na cidade de Irará e na sede dos povoados em dias de festa, principalmente na Caroba, Santo Antônio, Bento Simões, Quaresma e Retiro. Os seguidores consideravam Zezé intérprete dos seus desejos. Assim, para Ianni (1972, p. 191),

Por trás da aparente resignação que acompanha a reza, a procissão, a romaria e o movimento messiânico, está o desencantamento face às condições presentes de vida. E

esse descontentamento tende a manifestar-se de modo mais ou menos inesperado e insólito, quanto mais difíceis ou críticas se tornem as condições sociais e econômicas de existência. Isto é, provavelmente o messianismo é a primeira manifestação coletiva desesperada diante de uma situação de carência extrema.

Antes de doar as terras, Zezé estabelecia algumas regras, dentre elas: as terras jamais poderiam ser vendidas, ou seja, tornaram-se alienáveis; todos tinham que seguir os seus mandamentos e suas leis. Assim, ele oficializava a doação no cartório mediante cláusula citada, e a terra se transformava em um bem comum.

Florestan Fernandes destaca que a Abolição operou-se sem qualquer garantia de inserção do negro no mercado de trabalho livre: o negro liberto, geralmente, não encontrava opções nas cidades; então, uma opção mais segura de convívio com a “nova” sociedade colocava-se no não afastamento da antiga fazenda, uma vez que as oportunidades oferecidas para negros e mulatos após a Abolição estavam longe de garantir dignidade e possibilidades de ascensão social. Por conta disso, muitos encontraram nas idéias de Zezé uma oportunidade de fuga da situação a que estavam submetidos.

O exercício do poder pressupõe a afirmação da existência de indivíduos livres socialmente. Nesse caso, o acesso à terra possibilitou acesso à suposta liberdade. Porém, os sujeitos encontravam-se numa liberdade alienada – requisito essencial para atuarem, com seu trabalho, de maneira determinada, no complexo jogo de reprodução da vida em sociedade. Nesse sentido, eles podem ter saído do cativeiro da escravidão para se tornarem cativos da estrutura político-econômica e social ditada por Zezé Martins; contudo, com elementos identitários próprios.

Diante disso, vale salientar que antes da Lei de Terras, de 1850, quando ainda havia terras livres e sem impedimentos à ocupação, não era necessário lutar por sua posse. A luta começa a ser imprescindível quando o camponês, incluindo o ex-escravo, se vê, de alguma forma, impedido de ter acesso à terra, de tirar dela o seu sustento e o de sua família e de manter sua condição de camponês.

Enquanto vigorava a escravidão no Brasil, não era difícil encontrar longas extensões de terras devolutas, pois a própria terra pouco valia; o que valia eram os escravos (Martins, 1981). Ter muitos escravos, mais do que ter muita terra, era sinônimo de poder. Mas esta situação começou a mudar com a extinção do tráfico negreiro, em 1850; já era previsto o fim da escravidão e com ele a necessidade de impedir a livre ocupação das terras devolutas.

Acredita-se que as doações de terra com registro em cartório e a sua conseqüente divisão no modelo da propriedade privada foram estratégias de controle social utilizadas por Zezé Martins, visando a agregar o maior número de escravos sob o seu comando, dando a eles a idéia de liberdade. Neste contexto, os negros migraram da condição de escravos para proprietários de terra, o que representou, pelo menos no entendimento do grupo, a condição de se inserirem no processo produtivo de forma mais autônoma.

Vale salientar que os escravos eram destituídos de qualquer tipo de bem. Deste modo, a posse da terra era um caminho para uma possível ascensão social, pois viviam submissos a uma estrutura política pautada na força dos coronéis e a propriedade da terra definia o prestígio e o poder dos indivíduos. Assim sendo, os que não a possuía eram dependentes econômica e politicamente, além de socialmente inferiores.