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4.1 UM NARRADOR E SUA LINGUAGEM

4.1.4 Das questões da linguagem

Entretanto, não são somente as críticas que tornam o discurso narrativo interessante. Há, em Memorial do convento, uma linguagem diferente, que não leva em conta os símbolos gráficos que distinguem os diálogos nos textos escritos tradicionais, apesar de traçar diferentes falas em discursos diretos. A alteração,

estranhamente fluida, ocorre quando uma voz passa a vez à outra, sem aviso prévio, confundindo um pouco a leitura inicial, porém, tornando-a ágil, porém compreensível, depois da adaptação necessária. A construção do diálogo se dá, assim, sem a necessidade de travessões, pontuações e muitos espaços, unicamente com a letra maiúscula a marcar o início das falas. E, apesar de expressar-se bem, com clareza durante toda a obra, expondo suas opiniões e ironias, o narrador, em diversos momentos, não tenta mediar os diálogos, ou o faz de maneira bastante sucinta, imiscuindo-se entre as falas apenas para indicar de quem é a vez, e deixa as personagens falarem livremente. Nesses momentos, é como se a história se desenrolasse diretamente, sem o crivo do narrador, que volta a interferir ao contar os acontecimentos.

Voltou Blimunda para casa, ceou com os cunhados e o sobrinho, Então o Baltasar não veio, disse um deles, Nunca na vida hei de perceber que saídas são estas, disse o outro, Gabriel é que não abriu a boca, é ainda moço demais para falar estando gente mais velha [...] (SARAMAGO, 2011, p. 327).

Não mediar os diálogos não significa, no entanto, que este narrador deixe de se imiscuir nos pensamentos de seus personagens, assumindo uma postura ora heterodiegética, ora homodiegética, sem jamais perder, contudo, a liberdade de expressar livremente suas opiniões e reflexões ao longo da narrativa. Na passagem abaixo, nota-se que ele narra um fato da intimidade de Baltasar e Blimunda e logo tergiversa para assuntos de seu presente que nenhuma relação têm com a estória, refletindo sobre o uso ou não de uma palavra no período da narrativa:

Mas também não faltam lazeres, por isso, quando a comichão aperta, Baltasar pousa a cabeça no regaço de Blimunda e ela cata-lhe os bichos, que não é de espantar terem-nos os apaixonados e os construtores de aeronaves, se tal palavra já se diz nestas épocas, como se vai dizendo armistício em vez de pazes (SARAMAGO, 2011, p. 87).

Em outro momento, também está ele a descrever um episódio entre el-rei e seu guarda-livros, quando a crítica se faz presente e ele considera todo o prejuízo que a construção do convento trouxe a Portugal, seja pelo aspecto material, seja pelo aspecto humanitário, já que vidas se perderam neste processo, mas a estas ninguém dará importância. Reflete o narrador:

Mas em Lisboa dirá o guarda-livros a el-rei, Saiba vossa majestade que na inauguração do convento de Mafra se gastaram, números redondos, duzentos mil cruzados, e el-rei respondeu, Põe na conta disse-o porque ainda estamos no princípio da obra, um dia virá em que quereremos saber, Afinal, quanto terá custado aquilo, e ninguém dará satisfação dos dinheiros gastos, nem faturas, nem recibos, nem boletins de registro de importação, sem falar de mortes e sacrifícios, que esses são baratos (SARAMAGO, 2011, p. 133).

Em outros momentos, o narrador onisciente torna-se narrador- personagem, ao dar voz diretamente ao outro, tomando, momentaneamente, a perspectiva do personagem que vivencia os fatos que ele estava a narrar há apenas alguns instantes. Tudo ocorre em um só parágrafo, como que para reforçar as alterações de perspectiva:

Grita o povinho furioso impropérios aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão é uma serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso vai se curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o espetáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira e Sousa, sem mester nem benefício, mas que do Santo Ofício declarava ser qualificador, e sendo secular dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo tempo que fazia proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão assim, [...] por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfêmias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda [...] adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto, que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis (SARAMAGO, 2011, p. 50-51).

Vê-se claramente a liberdade da voz narrativa e a liberdade proporcionada aos personagens, talvez para que não haja limitações para a sua própria. Sua livre vontade permite-lhe, inclusive, em pleno decurso da narrativa histórica, conhecer a presença do leitor, apesar de não se dirigir explicitamente a ele – como o fez o narrador de Guerra dos Mascates, de José de Alencar. Ele apenas se apercebe dessa presença expectadora e logo lança uma crítica a sua imparcialidade: “[...] se achar que não tem o caso supremas dificuldades é porque não levou esta pedra de Pêro Pinheiro a Mafra e apenas assistiu sentado, ou se limita a olhar de longe, do lugar e do tempo desta página” (SARAMAGO, 1999, p.

249). Dessa forma, não só se apercebe de sua presença como deixa clara a liberdade do leitor em interagir com o passado.

Assim, a um só tempo, quebra o ritmo da obra, lançando-a ao exterior do fluxo narrativo, ao encontro daquele que esperava apenas assistir, e ainda comprova, mais uma vez, sua capacidade de subverter a narrativa, seja ela ficcional ou histórica.