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3 DAS TEORIAS POLÍTICAS E SUA RELAÇÃO COM A EFETIVAÇÃO DOS

3.1 Das Teorias Liberais

O fundamento das teorias de cunho liberal seria que o átomo possuidor de direitos é o indivíduo e não se reconhece, portanto, os direitos de grupos minoritários. Este individualismo é um traço constitutivo do liberalismo desde seus primórdios, tomando como base as teorias de Hobbes e Locke, por exemplo, ao formularem seus esboços de contrato social eles também delineiam uma imagem atomística da sociedade (Hobbes, 1997 [1651]; Locke, 1998 [1690]).

Desse modo, seu fundamento é essencialmente o bem individual, sem levar em consideração a comunidade circunscrita. O princípio basilar sobre o qual deve ser construída a sociedade é, dessa forma, a vantagem pessoal — a preservação da vida, no caso de Hobbes (1997), ou da propriedade, no caso de Locke (1998), ambas ameaçadas pela ausência de poder coercitivo imperante no estado de natureza.

Observe-se que, para ambos, a igualdade, considerada como existente no estado de natureza, está na raiz dos conflitos. Para que a convivência entre humanos seja harmônica, há a necessidade de introduzir a noção de desigualdade, especificamente com a introdução de uma instituição superior: o soberano absoluto, como em Hobbes, ou de magistrados que monopolizam o direito de julgar e punir, como em Locke. Rousseau (1988 [1755]) todavia, surge para quebrar esse paradigma ao elencar que é a desigualdade que gera conflitos, afastando a ideia de embates entre indivíduos isolados (guerra de todos contra todos) e implicando o surgimento de novos atores sociais: grupos com interesses distintos.

Com base nos ensinamentos desses notáveis, surge um esboço inicial da teoria dos direitos individuais, com ênfase na liberdade e propriedade. Nesse sentido, as ideias liberalistas concebem em caráter negativo de tais direitos. Aqui, o Estado os satisfaz por um abster-se, por um não atuar, há, então, uma verdadeira área de inibição da atuação estatal. É importante elencar que, de fato, no campo fático de alguns direitos sua satisfação pode-se dar pela abstenção do Estado, a exemplo da liberdade física, no entanto outros direitos como o da igualdade não se satisfazem com sua mera proclamação formal no texto constitucional, sendo necessário fornecer um caráter mais substancial aos mesmos ao entregar meios para exercê-los.

fundamento central o indivíduo, do qual decorre o argumento de que o ser humano possui direitos que lhe são inerentes; os intitulados direitos naturais. (TROPER, 2008, P.22)

Em sua acepção mais comumente conhecida na atualidade, o direito natural pode ser definido como:

O conjunto mínimo de preceitos dotados de caráter universal, imutável, que surge da natureza humana e que se configura como um dos princípios de legitimidade do direito. Os direitos naturais são inerentes ao indivíduo, devem estar em qualquer sociedade e precedem a formação do Estado e do direito positivo. (SIQUEIRA JÚNIOR,2012,P.42)

Tendo por base esse conceito, é possível estabelecer de imediato algumas distinções entre o direito natural e o direito positivo. Segundo descreve Norberto Bobbio, enquanto o primeiro é universal, imutável, tem como fonte a natureza humana, o segundo é variável no espaço e no tempo e deriva diretamente do Estado por meio da vontade do legislador. (BOBBIO,1995, P.22-23)

De acordo com tais critérios, é possível afirmar, portanto, que os direitos naturais se traduzem naturalmente como a vida, a liberdade e a igualdade que são inerentes aos indivíduos desde o momento de seus nascimentos, servindo assim como base para definir uma teoria de justiça evidentemente natural, fundada no indivíduo enquanto ser humano racional. (CASTILHO, 2011, P.25)

Nesse sentido, John Locke, um dos principais representantes da filosofia jusnaturalista moderna, embasa sua concepção de direitos naturais na noção de lei natural que precede a sua positivação pelo Estado. Tomando por base a idealização de um estado de natureza, anterior mesmo a existência do Estado, Locke justifica a necessidade da existência do poder estatal por ser este melhor capacitado de proteger as “vidas, liberdades e bens” dos indivíduos. (LOCKE,1994, P. 156)

Ainda neste aspecto, postula:

Embora os homens ao entrarem na sociedade renunciem à igualdade, à liberdade e ao poder executivo que possuíam no estado de natureza, que é então depositado nas mãos da sociedade, para que o legislativo deles disponha na medida em que o bem da sociedade assim o requeira, cada um age dessa forma apenas com o objetivo de melhor proteger sua liberdade e sua propriedade (pois não se pode supor que nenhuma criatura racional mude suas condições de vida para ficar pior), e não se pode jamais presumir que o poder da sociedade, ou o poder legislativo por ela instituído, se estenda além do bem comum; ele tem a obrigação de garantir a cada um sua propriedade [...].(LOCKE,1994, P.159)

Todavia, é certo que com o decorrer do tempo a filosofia jusnaturalista voltou atrás em suas posições ao considerar essencial a congruência entre os direitos naturais e o direito positivado pelo Estado. Os representantes contemporâneos dessa corrente jusfilosófica entendem que o alinhamento entre o direito estatal e o direito natural é a base jurídica

consistente e necessária para a manutenção de uma ordem social espontânea e harmoniosa entre os indivíduos.(VELOSO,2005,P. 57-58)

Nesse sentido, conclui Miguel Reale:

O Direito Natural pode ser concebido, in abstracto, como um conjunto de princípios éticos e racionais que inspiram e norteiam a evolução e as transformações do Direito, e que, sem serem redutíveis às categorias do Direito Positivo, banham as matrizes da positividade jurídica. Tal modo de entender o Direito Natural deve pressupor, porém, a sua compreensão como algo de transcendental (no sentido kantiano deste termo), e não de transcendente, em relação ao Direito Positivo: é, em suma, o conjunto das condições lógicas e axiológicas imanentes à experiência histórica do Direito, ou, por outras palavras, corresponde às “constantes” estimativas de cuja validade universal o homem se apercebe na história e pela história.(REALE, 2000, P.97)

Em consonância com a posição de Reale, afirma Max Möller:

O fato de que estas normas necessárias que devem condicionar o direito são hierarquicamente superiores às normas comuns – estas formuladas mediante o acordo social e pelo poder político – está presente em todo o pensamento jusnaturalista, e consiste na atribuição de uma finalidade ao direito: a correção ética e adequação a normas que lhe são anteriores e superiores. A função do direito natural, dessa forma, será a de determinar quais normas podem converter-se em direito, atuando como critério de validade para todo o direito positivo. Por outro lado, suas determinações são fonte de direito para todas as pessoas; não podendo ser apropriadas pelo poder político.(MÖLLER, 2011, P.56)

Essa simbiose entre esses dois tipos de direitos é tão fundamental na teoria moderna dos direitos naturais que serve inclusive de embasamento para o chamado “direito de rebelião” - uma garantia do povo contra o governo que ultrapasse os limites de sua atuação, qual seja a proteção aos direitos naturais dos indivíduos. (LOCKE, 1994, P.225)

Foi justamente esse fundamento teórico jusnaturalista que serviu de base para as declarações de direito esculpidas nos EUA e na França no século XVIII durante seus processos revolucionários. Enquanto no plano filosófico, a noção de direitos naturais vinha ganhando adeptos e representantes, estas duas nações foram as pioneiras na aplicação desta filosofia como alicerce dos seus novos governos. (BOBBIO, 1995, p. 42)

O liberalismo se apresenta, assim, como um modo de pensar a dimensão política do homem na modernidade e se consolida nos dias de hoje como fundamento de legitimidade de alguns valores basilares dos direitos humanos, como a propriedade e a liberdade individuais, os direitos subjetivos, a defesa de um governo constitucionalmente limitado e os direitos humanos como concepção universal inerente a qualquer indivíduo. Isto posto, a cidadania liberal resulta da nomeação de direitos por documentos jurídicos estatais de modo que o seu valor normativo é apreciado como meio para a realização das liberdades fundamentais. Por este entendimento, o cidadão é designado como indivíduo portador de direitos e, de forma

instrumental, a cidadania é um meio pelo qual o indivíduo faz valer esses bens jurídicos e a sua condição de titular dos mesmos, sobretudo, frente ao Estado. (RAMOS, 2006, p.78)

Todavia, há que se considerar que tal teoria não só coloca os direitos de primeira geração em situação privilegiada em relação aos demais como também induz a uma concepção passiva de direitos humanos como uma concepção natural ao indivíduo não sendo necessária qualquer ação política para exercê-los, a não ser para evitar excessos estatais.(FREITAS, 2004, P.285)

Ainda nesse sentido, pode-se começar a entender a ideia de acordo com essa teoria, de que o Estado, encarregado de realizar políticas públicas de acesso a direitos pela minoria, deveria ser diminuído diante da idealização de que todas pessoas nasceriam dotadas dos direitos naturais mesmo em uma sociedade em que não se tem uma igualdade de oportunidades.

Um dos grandes nomes do liberalismo, Robert Nozick, chegou mesmo a escrever em sua obra Anarquia, Estado e Utopia, um texto que advoga contra a atuação estatal em prol de políticas públicas que contribuíssem para a distribuição da riqueza em um mundo onde anualmente milhões de crianças e adultos morrem ou padecem enfermidades por causas que se poderiam evitar, em grande parte, por meio de mínimas medidas redistributivas. (BORÒN, 2000: 170-173)

Todavia, apesar da posição privilegiada dada a Nozick pela direita, ele se arrependeu de algumas de suas posturas (Nozick, 1993,P.32) e, para horror dos fanáticos do mercado, acabou mesmo por sustentar limites morais às liberdades pessoais e a obrigação dos indivíduos de contribuir materialmente para com a sociedade (Nozick, 1997, P. 227).

Nesse sentido, convém salientar que sua tese central é a de que:

“(...) um Estado mínimo, limitado às estreitas funções de proteção contra a violência, o roubo e a fraude, garantia do cumprimento de contratos, etc., justifica-se (...) qualquer Estado mais extenso violaria o direito das pessoas de não ser obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica (...) O Estado mínimo é inspirador, assim como correto” (Nozick, 1991: 7)

Deste modo, para Nozick, os únicos limites morais se concretizam na pessoa outros homens e o que lhes pertence legitimamente, de sorte tal que uma pessoa será mais livre quanto mais possua. Isto significa que a distribuição de bens seria, ao fim, uma distribuição de liberdade (Cohen, 1995: 58-59). Considerando esta lógica, esperar-se-ia que, dado que todos os homens em princípio merecem sua liberdade, Nozick apoiasse algum tipo de redistribuição de bens, ao menos no estilo do Rawls. Entretanto, rejeita o conceito mesmo de distribuição, por entendê-lo coercitivo, negador de dignidade. Para Nozick, nenhuma pessoa ou grupo de pessoas

poderia se propor a regrar o que se deve fazer, nem tampouco obrigar alguém a ser melhor ou a ajudar a seus congêneres (Nozick,1991, p.7)

A princípio, esta amplitude dos direitos à liberdade e propriedade podem soar positivas, mas em um mundo como o que Nozick (1991) propõe os títulos de propriedade são indisputáveis e absolutos, os direitos aparecem como restrições e estão marcados pela mesma propriedade, e, finalmente a população não é cidadã, mas súditos de uma “agência de proteção estatal”. Não há, portanto, espaço para desenvolvimento de direitos sociais e se perdem os tradicionais laços solidários e no qual cada um se interessa apenas por sua própria margem de lucro.

No mesmo sentido, ainda advinda das ideias de Nozick (1991), surge ainda a teoria utilitarista, a partir de uma concepção que continua a valorizar a esfera privada, local de exercício das liberdades que devem ser defendidas da intromissão estatal, conforme a clássica argumentação de Benjamin Constant. Há, nesse ínterim, uma espécie de junção entre o liberalismo propriamente dito e o utilitarismo, uma corrente que se estabelecerá de pleno direito no final do século XVIII, mas cujas raízes podem ser rastreadas pelo menos até o próprio John Locke (Dunn, 1969, p. 250). Para o utilitarismo, a base de toda ação individual é a maximização da satisfação pessoal, de forma que os interesses individuais são dados como naturais.

Há, nitidamente, uma desconsideração, portanto, do caráter coletivo e universal das políticas públicas afirmativas do Estado, pois mais importante que realizar direitos sociais para a comunidade, seria realizar as próprias aspirações pessoais da classe dominante.

Outra ideia de justiça que pode restringir a prestação adequada do direito fundamental, quando levada à prática, é o libertarismo, a qual será exposta ainda a partir das ideias de Nozick (1991). Para essa corrente de pensamento, de número pequeno mas lobby nada desprezível, o Estado não é obrigado a garantir os direitos sociais, pois seu papel é garantir os contratos e reprimir os ilícitos, de forma que todo o resto deve ser tratado naturalmente pelo livre mercado.

Nesse sentido, se nota nas teorias de cunho liberal a forte influência jusnaturalista ao trazer que os direitos são naturais e inerentes a todos os homens, criando a ilusão de que não é necessário uma luta ativa por sua implementação, mas apenas uma preocupação em limitar os absolutismos estatais. Ademais, traz-se ainda uma noção muito forte de liberdade individual que, enquanto ajudou a implementar direitos humanos de primeira geração nos primeiros esboços de codificação a esse respeito, com ênfase nos direitos de liberdade e propriedade, dificulta a implementação de direitos de cunho social, visto que prioriza a realização dos objetivos pessoais do indivíduo de acumulação de riquezas. (RAMOS, 1997, P. 231)

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