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Das tradições ausentes

No documento Ar te e saúde: (páginas 141-144)

O filme tem uma segunda porta de entrada, que denomino de ausência da tradição. Tal perspectiva é sugerida por duas situações: a) a trajetória do ci-nema chinês contemporâneo; e b) a fala dos personagens na abertura do filme (�– Não grite, você vai acordar os mortos�) e o diálogo entre os protagonistas, o casal Tao e Taisheng, ao final do filme (�– Estamos mortos?�; ao que o outro responde: �– Não, isso é apenas o começo.�).

Jia Zhangke pertence a uma geração de cineastas que surgiu ao final da década de 1990 e ficou conhecida como �sexta geração�. O diretor com-partilha das ideias dos jovens cineastas que preconizavam uma produção cinematográfica underground e que, após junho de 1989,1 decidiram trabalhar na ilegalidade na China comunista. Esse modo de produção visava à inde-pendência financeira e à liberdade de temática e de linguagem. Sem verbas oficiais, os filmes resultam num tratamento temático e estilístico que recusa a instrumentalização do cinema como propaganda da China. São características do grupo: um cinema realista, com mistura de linguagens de ficção e docu-mentário, o trabalho com não atores e um desejo por filmar a cidade.

Assumindo o papel de movimento de contestação, as experiências desse cinema underground têm em Jia Zhangke um representante cujos fil-mes podem ser entendidos como �embate com o presente�. Tomando essa afirmação como fio condutor, o �embate com o presente� em The World faz desaparecer um elemento que parece constituir um tema central em películas significativas da cinematografia chinesa: em diferentes linhagens cinematográficas é possível ver referências nas narrativas ao problema da tradição e da modernidade como forma de abordar as mudanças que a China

1 O movimento é uma resposta à repressão do governo comunista à manifestação em Beijing de jovens estudantes que reivindicavam abertura política. O episódio, que ocorreu em maio de 1989, ficou co-nhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial.

experimenta de modo acelerado. Essa representação pode ser percebida em expoentes do novo cinema chinês, como Banhos (1999), de Zhang Yang, ou é vulgarmente expressa no cinema-espetáculo, em filmes como O

Clã das Adagas Voadoras (2004), de Yimou Zhang.

A tradição, como observa Piotr Sztompka (1998, p. 116), pode ser pensada a partir de diferentes critérios. Vínculo íntimo en-tre passado e presente, envolve a existência continuada do passa-do no presente em lugar de apenas indicar que o presente se origina no passado. Tradição significa herança, aquilo que é remanescente do passado, a totalidade dos objetos e ideias que são originários do pas-sado e que não foram destruídos, abandonados, esquecidos, danifica-dos. O conceito é visto também a partir de critérios mais restritivos, como fragmentos qualificados da herança que não apenas sobrevivem e permanecem, mas também mantêm íntima e forte ligação com o pre-sente (ibid., p. 117). Podem ser objetos ou ideias, nesse caso crenças, símbolos, normas, valores, regras, credos, ideologias, que são efetiva-mente percebidos e incorporados de modo a influenciar pensamentos e condutas, e tirar seu significado e legitimidade do caráter de passado.

As tradições estão sujeitas a mudanças, quando as pessoas selecio-nam e conferem, ou não, sentido a um aspecto em detrimento do outro; elas podem ser revitalizadas ou, ainda, ser inventadas por um processo espontâ-neo, voluntário, de camadas da população ou por mecanismos de imposição praticados, por exemplo, por aqueles que estão no poder para servir a seus objetivos políticos (Sztompka, 1998, p. 118).

No filme The World,poucos são os elementos da narrativa que reme-tem às tradições chinesas ou à reinvenção dessa tradição. As cenas, que na sua maior parte ocorrem nos limites do parque temático, apresentam o cotidiano de personagens aprisionados num tempo que parece destituído de passado e futuro, e que pode ser exemplificado na noção de �tempo errático� mencionada por Gurvitch, �um tempo de incertezas e de contin-gência acentuada em que o presente prevalece sobre o futuro e o passado� (apud Harvey 1984, p. 205). Os personagens executam atividades banais,

são perfomers que trabalham nos espetáculos e nas coreografias de

apre-sentação dos monumentos e vigilantes do parque.

Com a morte de um personagem por acidente de trabalho na cons-trução civil e, ao fim do filme, a morte do casal Tao e Taisheng, traba- lhadores do parque, envenenados por um vazamento de gás no quarto de um

conjunto habitacional, o cineasta apresenta algo que persiste das crenças e valores da China.

A morte é um aspecto complexo do pensamento chinês. O culto aos antepassados, a existência de uma vida após a morte são parte de uma complexa tradição de luto e enterramento da China antiga.2 Importa entender que, de maneira geral, opera no imaginário chinês a crença de um continuum entre os dois mundos, o mundo material e o �país dos mortos� (Granet, 1990, p. 10). A �queima de papéis� é um elemento dessa tradição de con-tinuidade entre mundos incorporado pelo cineasta: os parentes queimam objetos, pertences, papéis, que representam o dinheiro, para que possam ser usufruídos no �país dos mortos�.

A tradição aqui sugere uma possibilidade de vitória da fraqueza sobre a força. Sabemos que os ritos funerários chineses foram proibidos pelo Partido Comunista, que introduziu a cremação dos corpos. Para a sociedade chine-sa, a morte significa o lugar do recomeço, e é aqui que o cineasta introduz o vínculo com o passado. Mais do que compreender as mudanças das tradi-ções, Sztompka afirma que perguntar sobre o porquê da existência delas é fundamental: �Que necessidades e exigências universais da vida social e hu-mana devem ser satisfeitas pelas tradições? Em que circunstâncias históricas elas se tornam mais prementes?� (1998, p. 123). Seguindo a enumeração de Sztompka sobre as funções da tradição, posso imaginar que a morte, com seu sentido de recomeço, tal como a entendo representada no filme The

World, propicia �fuga das insatisfações, descontentamentos e frustrações da

vida contemporânea� (ibid.).

O parque temático é o cenário principal do filme. Há ainda outras locações: oficina de costura, hospedaria, estação de trem, boate, vistas pa-norâmicas da cidade, canteiro de construção civil, quarto de hotel, hospital, conjunto habitacional, salão de festas. As interações entre os personagens que ocorrem nesses cenários são definidas por situações marcadas pelo con-trole, vigilância, desencontros amorosos, desejos frustrados e alguma alegria.

A fala de um personagem do filme A chinesa (1967), de Jean-Luc Godard, sobre complexos turísticos como lugares de lazer da burguesia for- sobre complexos turísticos como lugares de lazer da burguesia for-nece uma imagem útil para representar o parque O Mundo: um campo de

2 Há documentos clássicos sobre os ritos funerários no O Livro dos Rituais (Liji) de Confúcio. Essa complexa tradição é apresentada num trabalho clássico de Marcel Granet, �La langage de la douleur, d’après le rituel funéraire de la China classique� (1922), sobre o desenvolvimento de uma linguagem da dor e sua relação com uma ordem inteligível do universo, através do estudo de rituais do luto na China feudal.

concentração. Essa imagem arrasta o espectador para perceber um ambien-te militarizado, um cotidiano vigiado, de vidas programadas para cumprir a melancólica rotina dos espetáculos, os trabalhadores que fazem a segurança das réplicas dos monumentos em uniformes militares e a vigilância sobre os trabalhadores do parque. Tal percepção é reforçada por uma câmera de poucos movimentos e pela rotina repetitiva das atividades dos trabalhadores do parque.

A ausência de liberdade, o confisco do passaporte para as imigrantes que trabalham no parque, a ocidentalização dos personagens, a câmara que enquadra discretamente uma sacola Yves Saint Laurent, a estilista que fo-lheia uma revista estrangeira de moda da qual extrai a inspiração para o de-senho das roupas, a migração rural-urbana e a penosa inserção numa nova ordem cultural, as precárias condições de moradia, o acidente de trabalho na construção civil, a prostituição feminina, a conflituosa sexualidade das jo-vens, a comunicação e uma expectativa de recepção de mensagens através dos aparelhos da Motorola, a �fuga� do país para Belleville, um bairro chinês de Paris, e cenas de contentamento suscitadas pela memória e pelo desejo de uma vida afetiva, expresso no compartilhar dos retratos dos filhos, nos planos de casamento e na amizade – a exemplo do delicado encontro entre os personagens Tao e Ana – completam para o espectador uma visão ácida da vida na China contemporânea.

No documento Ar te e saúde: (páginas 141-144)