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1. WRITERS’ ROOMS, HISTÓRICO E PARTICULARIDADES NORTE-

1.5 De breaking stories ao set: as etapas da escrita

“A imagem do autor isolado criando o seu precioso roteiro secretamente no meio da noite não é a vida real em uma série” (DOUGLAS, 2011, p.11, tradução minha). A equipe de roteiristas normalmente é extensa, embora haja variações no decorrer das temporadas. A dinâmica e interação entre os profissionais na Sala de Roteiristas varia também conforme o episódio, visto que independentemente da criação colaborativa presencial, cada episódio costuma ser escrito individualmente para depois ser revisado em grupo e reescrito também de forma individual por outro roteirista da equipe.

Se você for escrever para televisão, nunca vai trabalhar sozinho. Séries são como famílias, e mesmo que cada episódio seja escrito por um roteirista, o processo é colaborativo a cada passo. Roteiristas sentam ao redor da mesa para criar cada história, depois revisam as

escaletas e todos as versões dos roteiros juntos. (DOUGLAS, 2007, p.11, tradução minha, grifo meu)

As principais etapas de criação descritas pelos roteiristas em Salas nos Estados Unidos incluem: criar as tramas, os personagens e as suas interações, desenvolver a composição e o ritmo dos episódios afim de formar o arco da temporada e elaborar a escaleta, outline, de cada episódio – um documento que contenha a descrição das ações cena a cena, sem diálogos. Após estas etapas, o showrunner, ou outro roteirista- produtor que estiver liderando a Sala naquele momento, irá delegar os episódios para os roteiristas escreverem. Cada um terá um prazo determinado para apresentar um primeiro rascunho do roteiro, draft, e este rascunho – ou versão23, como chamamos no Brasil – será avaliado pela equipe de roteiristas e poderá ser reescrito por outro roteirista, ou pelo mesmo que desenvolveu a primeira versão, mas considerando todas as críticas e determinações impostas principalmente pelo produtor supervisor, produtor executivo, ou quem estiver liderando a Sala e detendo a palavra final. O trabalho de um roteirista é muito mais do que escrever um roteiro, ele parte da gênese que surge das reuniões criativas, organizando-se em etapas de desenvolvimento das histórias que sustentam toda a série. Criar os personagens, tramas e escaletas, é conceber a matéria-prima do roteiro. Em última instância, “escrever um roteiro” significa todas as etapas que precedem o ato da escrita, até a escrita do roteiro em si, suas revisões e versões.

As Salas são diferentes para cada série, elas funcionam de maneira distinta, mas as etapas que compõem o roteiro se mantém. Mais detalhadamente, a Sala de Roteiristas inicia-se pela discussão de ideias, pela criação das tramas que surgem a partir dessas ideias individuais colocadas em grupo e que se conectam com outras ideias, e, implicitamente e indiretamente, pela discussão do perfil dos personagens e suas interações – que também geram tramas. Este processo de discussão de ideias, que é fluido e espontâneo, porém não desorganizado, nas Salas de Roteiristas norte- americanas é denominado breaking stories, fazer com que unidades de ideias tornem- se histórias em um processo ao vivo, tornem-se histórias em tempo real, são histórias

23 No cinema, as diferentes versões de um roteiro são denominadas “tratamentos”. No Brasil,

normalmente, “versão” é usado para roteiros de séries de TV e “tratamento” para roteiros de filmes. Portanto, não usamos a tradução direta de draft, “rascunho”, para designar nem versão, nem tratamento.

sendo criadas e entrelaçadas em grupo24. Esta etapa antecede o desenvolvimento das escaletas. No contexto da Sala de Roteiristas, “criar histórias” é a melhor tradução que encontro para definir o ato de break a story, já que “ter uma ideia” não é uma ação suficiente para que uma história seja criada. Além disso, traduzir ao pé da letra por “quebrar histórias” me remete à destruição de uma história, não à estruturação da mesma. No entanto, ressalto que, o verbo “quebrar” é bastante comum quando empregado entre os roteiristas de TV norte-americanos, como parte do processo da escrita que antecede a redação do episódio; “quebrar cenas”, por exemplo, significa estruturar a história em cenas, realizando um beat sheet25 – uma pré-escaleta, onde já há a divisão por cenas seguida por uma curta descrição de cada uma (DOUGLAS, 2011). Ou seja, a criação decorre da junção das ideias, dispostas de forma que o conjunto possa estruturar uma história. “Criar histórias”, então, significa ter ideias e estruturá-las de maneira a ser uma história. O beet sheet é uma forma adotada para organizar estas histórias recém criadas em cenas antes das escaletas e faz parte do processo de “criar histórias”.

O conceito de breaking stories é muito interessante. Para mim, é ciência e matemática. Pensamento não-linear e solução de problemas [...] Há matemática. Há equação. História-A mais história-B resulta em algo diferente. [...] Eu sempre fui capaz de olhar para o quadro onde há várias histórias diferentes, embaralhá- las na minha cabeça e contá-las de uma maneira melhor. (MEYERS; RYAN, 2017, p.27, tradução minha)

Esta etapa de criar histórias normalmente é colocada em um quadro branco, ou de cortiça, localizado na Sala de Roteiristas (Figura 3). Em paralelo, assistentes de roteiro ou roteiristas da equipe tomam notas e registram as histórias recém criadas. As histórias dispostas visualmente em um quadro facilitará a divisão por cenas e a identificação das tramas. Mais especificamente, essas tramas irão conduzir as

24 Em uma reflexão mais pessoal acerca da tradução ideal para esta etapa, “breaking” pode também ser

pensado como um conceito de “ao vivo”, tal como há as “breaking news” – as últimas notícias, há as “últimas histórias” no sentido de criar histórias ao vivo / criar histórias em tempo real / histórias recém criadas, ou até, criando histórias, no presente contínuo.

25 “Beat 1. Uma cena ou um passo da história” (DOUGLAS, 2011, p. 251, tradução minha). “Beat: um

evento; um momento onde algo acontece. Também pode ser usado como pausa dramática.” (FINER, 2004, p. 231 tradução minha). “Beat” é uma ação e/ou acontecimento em uma cena. Imprime ritmo, conduz as cenas e conduz a história. Em uma tradução direta, beat significa batida, um termo musical inclusive. O beet sheet é a quebra das histórias em cenas, afim de conferir ritmo ao episódio. Sheet, neste caso, refere-se literalmente aos pequenos pedaços de papel pregados na parede, como demonstrei na Figura 3, da Sala de Breaking Bad. Nesses papeizinhos, estão os beats da história.

histórias, ou melhor, as histórias constituem-se em sua maioria de tramas e sub-tramas que conferem vida à narrativa e ao episódio.

Para Meyers (2017), algumas pessoas simplesmente não são boas em breaking

stories, criar e estruturar histórias, mas continuam sendo ótimos roteiristas. Isso

justifica o fato de que trata-se de uma função e que ela pode ser aprendida e treinada. Da mesma maneira que há o roteirista bom em diálogo, por exemplo, que independente de sua posição hierárquica na Sala ele se destaca por esta aptidão específica, há o story breaker, cuja definição da função é aquele roteirista bom em estrutura. Story breaker não necessariamente define um profissional “bom em criar histórias” seguindo a lógica da tradução proposta, mas sim define alguém que possui um olhar estrutural diante das muitas histórias, já que é presumido e desejável que todo e qualquer roteirista seja apto e capaz, e bom, em ter ideais e criar histórias a partir delas. “Alguns roteiristas têm um talento especial de olhar para um amaranhado de cenas misturadas e colocá-las em uma ordem dramática interessante. Estas cenas normalmente estão pregadas ou escritas em um quadro” (MEYERS, 2017, p.61, tradução minha). Mais uma vez ressalto que faz parte do método de trabalho em Sala “ver” a cena sendo criada por meio de um quadro. Nesta etapa também serão delineados os objetivos e as necessidades dos personagens, de maneira visual.

Ideias de cenas são jogadas fora. Os objetivos e atitudes dos personagens são debatidos. Assim como um escultor molda uma obra-prima do barro, a equipe de escritores constrói o seu produto a partir de ideias – quanto mais, melhor. Muitas vezes o comentário mais inócuo pode mudar toda a história. O arco inteiro da história pode ser abatido em segundos, destruindo dias de trabalho. A Sala é inconstante. (Ibid., p.35, tradução minha)

Histórias que se destroem e arcos que são totalmente reconstruídos do zero não são imprevistos em uma Sala de Roteiristas, muito pelo contrário, fazem parte do processo de criação. No vasto material oriundo de entrevistas com roteiristas- produtores norte-americanos é possível se deparar com muitos relatos pessoais do processo criativo, sobretudo no que concerne à esta primeira etapa de trabalho em Sala. Durante uma reflexão para a pesquisa de Lawrence Meyers, um roteirista define que:

Para mim, o ato de breaking story é sobre estar em um grupo de pessoas com o qual você escolheu trabalhar como um time, um time que trabalha bem em conjunto sem se apunhalar pelas costas. O que acontece é que você está na sala e você está criando histórias, e sim,

é um trabalho mecânico, mas o que você quer é que os roteiristas não estejam só abertos, mas que estejam dispostos a morrer para trazer suas almas para este trabalho. É incrível o que acontece em sala. É a pura combinação entre bussines e arte. Você diz “Ok, temos que criar a história, mas ao mesmo tempo trazer emoção para ela, rápido.” (KATIMS in MEYERS, 2017, p.147, tradução minha). Quando a palavra final do showrunner encerra esta primeira a etapa, momento onde as histórias com suas tramas estão fechadas, a Sala de Roteiristas segue adiante: tudo agora se transformará em outlines, escaletas, sendo uma por episódio. Há Salas onde as escaletas são muito detalhadas, com minuciosas indicações de diálogos e ações específicas; no entanto, há Salas que preferem trabalhar com escaletas mais curtas, visando a possibilidade de um maior detalhamento e “liberdade” criativa na etapa da escrita do roteiro. A forma de trabalhar na etapa da escaleta também varia conforme a série, algumas equipes de roteiristas desenvolvem a escaleta em Sala, projetando uma tela de computador em um telão visível à todos, e as cenas são editadas ao vivo pela equipe. Outras Salas de Roteiristas adotam a forma individual de desenvolver a escaleta, ou seja, é delegado à cada membro da equipe um episódio em um determinado prazo. Após este período, os roteiristas retornam à Sala e apresentam as suas escaletas para uma revisão em grupo, ou, uma revisão individual, feita por algum roteirista superior – editores de história, produtores, produtores- supervisores, e, muitas vezes pelo próprio showrunner. A etapa da escaleta é, claramente, a fase que mais se difere entre as Salas. Depende muito do estilo de trabalho do showrunner, do cronograma, do tamanho da Sala e do formato da série em si26. Muitos autores veem a escaleta como um roteiro sem diálogos, mas ela é considerada por todos um documento útil para organizar as cenas, perceber os beats, os plot-points - pontos de virada, e identificar possíveis problemas estruturais na história. Em suma, a escaleta nunca deixará de ser um documento com a descrição das cenas dispostas em ordem e é a fase que antecede diretamente a etapa da escrita do roteiro, ou seja, a escaleta irá se expandir ao roteiro.

O processo de criar histórias e de desenvolver as escaletas dos episódios de uma temporada pode durar três meses. Com a escaleta finalizada e aprovada pelo

showrunner, um roteirista vai para casa e volta depois de três semanas com uma

26 Como já abordei anteriormente, as Salas de séries cômicas tradicionalmente são mais extensas,

contam com um maior número de roteiristas na equipe, em virtude da criação de piadas e do próprio ritmo da sitcom (situação cômica) que se dá em esquetes. O processo criativo de uma série dramática assemelha-se mais aos casos citados neste subcapítulo.

primeira versão do roteiro. Esta versão será examinada e o roteirista deverá fazer mais uma ou duas revisões (PATTEN in KALLAS, 2016). Se o roteiro não estiver bom, na visão do showrunner, a partir da terceira versão do episódio ele poderá ser reescrito por outro roteirista, normalmente, um roteirista-produtor superior à ele. Caso não haja a necessidade de reescrevê-lo, o episódio será somente revisado e lapidado pelo

showrunner antes de ser produzido e levado ao set. Mas o roteiro não se finaliza aí. O

roteiro está em todos os detalhes da produção do episódio, implícito em toda a série e não será considerado finalizado por ser uma obra em processo. “A boa escrita é aquela que é passível de mudança até o fim” (WINTER in KALLAS, 2016, p.229). Por fim, o roteiro poderá ser reescrito durante as filmagens, já que a indústria televisiva norte-americana prevê a presença de um roteirista no set. “Esse é um dos fatores mais importantes por trás do sucesso do drama na TV americana, talvez ainda mais que o conceito de sala de roteiristas. O fato de os roteiristas estarem no set permite uma escrita melhor” (KALLAS, 2016, p. 229, grifo meu). Logo o roteirista aprende que escrever para a televisão é mais sobre o processo, do que sobre o produto. Na TV, muitos elementos do conceito inicial da história mudam até a sua forma final. (MEYERS, 2017).