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Capítulo 04: Vivências dos residentes: Análise

4.2 Temas da Análise

4.2.1 De diferentes pontos de partida

Apesar das DCN (2002) e de toda a movimentação sobre a formação dos profissionais de saúde no Brasil, atualmente a formação do fisioterapeuta tem produzido tímidas discussões nesta área. Em suas narrativas, os depoentes trouxeram elementos importantes sobre o papel do fisioterapeuta na atenção primária, contradições, desafios e percepções desse campo de trabalho.

Diante disso, alguns colaboradores apontaram que a formação do fisioterapeuta continua centrada na clínica, no modelo biomédico curativo e medicalizante. Compreendendo a prática clínica como da assistência e do olhar técnico pensado na doença e no corpo. Para superar esta prática clínica Cunha (2004) propõe a construção da clínica ampliada na perspectiva de mudanças da atenção individual e coletiva para atingir a singularidade dos sujeitos. Esta concepção também está presente no modelo de atenção, cujas práticas valorizam a consulta médica especializada e a concepção de saúde é vista como a ausência de doença, e desta forma pouco resolutiva na Atenção Primária.

“Eu acho que a maioria dos cursos ainda é extremamente voltada para a clínica” (Suellen).

“O fisioterapeuta não é formado para trabalhar na atenção básica... minha formação foi voltada para que eu fosse uma profissional de ambulatório... acho que por isso também que o fisioterapeuta apanha tanto para começar a trabalhar em equipe...” (Camila).

De fato, percebe-se que o trabalho do fisioterapeuta em relação ao cuidado individual está focado na reabilitação e no tratamento, que por serem constituídos sobretudo por tecnologias duras, muitas vezes são insuficientes para o cuidado em saúde na atenção primária. Em contrapartida a esse modelo biomédico, alguns colaboradores se referiram ao modelo da clínica ampliada na atenção primária, segundo o qual o trabalho do fisioterapeuta deveria ser pautado no trabalho com os coletivos de modo que as equipes permaneçam junto à comunidade, especialmente no tocante às ações de promoção à saúde e prevenção de doenças.

“... eu vejo a fisioterapia dentro da atenção primária... uma lógica de capacitação de equipe, de mudança de modelo de atenção, de outros olhares para saúde que não é só focado na doença” (Suellen).

Para a sociedade, o cuidado ainda é predominantemente estabelecido pela relação médico-usuário, porém nos processos de mudança do modelo de formação e de atenção é importante o fortalecimento do trabalho multiprofissional na ESF como foi possível notar a partir do relato de Camila.

“É uma coisa que está tão enraizada que a gente acha que o médico é tão fundamental. E é fundamental, como o fisioterapeuta, como o enfermeiro, como o psicólogo, como o nutricionista, que são outros profissionais da equipe que estão na saúde” (Camila).

Portanto, vários elementos destacados pelos depoentes trazem reflexões acerca do papel do fisioterapeuta na atenção primária, de produzir novos sentidos e transformações no mundo do trabalho, nos modos de cuidar, de sair da “caixinha” do saber especifico, das relações e do trabalho em equipe.

A supervalorização das especializações tem sido uma barreira no desenvolvimento profissional na formação acadêmica, não é condizente com o exercício profissional no SUS e com a realidade dos processos de cuidado. Tendo em vista que as necessidades das pessoas são múltiplas e complexas, uma forma de superar esses obstáculos é investir em processos educacionais de formação de trabalhadores de saúde na dimensão do SUS.

“Acho que o profissional fisioterapeuta é muito tecnicista ainda. E que está distante das discussões atuais do SUS, das discussões que estão sendo realizadas. Em muitos momentos vejo que é um interesse no mercado de trabalho” (Ametista).

A respeito do fisioterapeuta na atenção primária, Débora indica que existe um desconhecimento da população, das equipes e dos próprios fisioterapeutas sobre a atuação nesse campo de trabalho, que são apontados como entraves para esses profissionais.

“... a dificuldade de compreensão, tanto por parte dos profissionais como da própria população, da atuação do fisioterapeuta nesse nível atenção, que geralmente é visto voltado apenas para a reabilitação e essa era uma das principais dificuldades de atuação durante a residência” (Débora).

“Eu percebo que de modo geral, falta conhecer o que o fisioterapeuta faz. Percebo que o fisioterapeuta em muitos casos é artigo de luxo, é difícil de chegar neles na rede, a oferta é pequena” (Camila).

“Eu acho que existe uma contradição muito grande de atuação do fisioterapeuta no país. Falta um consenso entre a própria classe e os diferentes tipos de gestão. E outra coisa... são estes concursos e processos seletivos desqualificados” (Sophia).

Há poucos profissionais inseridos na rede pública, principalmente nas USF. Percebe-se que a demanda da população é por serviços especializados. A partir dessa demanda, o fisioterapeuta acaba ofertando mais atendimentos curativos e reabilitador. Embora a implantação dos NASF tenha impulsionado a entrada do fisioterapeuta na atenção primária e ampliado o número de profissionais na rede, ainda é preciso ampliar o número de concursos e ofertar mais vagas.

Assim, para Ametista, “A inserção do fisioterapeuta na atenção primária está muito

incipiente”. A mesma levanta questionamentos acerca do trabalho e do papel do

fisioterapeuta na atenção primária “Em que momento eu sou um profissional que poderia atuar mais na assistência?”, “Em que momento eu sou apoio?”.

O mercado de trabalho para a Fisioterapia vem se expandindo no país, possibilitando ao fisioterapeuta ressignificar suas práticas, principalmente no que diz respeito ao atuar em um novo arranjo representado pelo apoio matricial. Contudo, os fisioterapeutas tem pouca experiência nesta prática de gestão, que faz parte do processo de trabalho dos profissionais do NASF.

Barbosa et al (2010) observaram que o fisioterapeuta é o profissional mais solicitado na ESF, devido a grande demanda reprimida por esta área e pelo número que pacientes com agravos decorrentes de doenças crônicas, mas indicaram a formação assistencialista, os atendimentos individuais com práticas isoladas e a falta de integração com as equipes de SF como pontos que dificultam a atuação desse profissional na equipe do NASF. A carga horária de 20h, juntamente com o grande número de equipes que devem fazer o apoio matricial, impede o desenvolvimento de uma atenção integral.

É interessante observar que há contradições na fala de Marina quanto à exposição de que o fisioterapeuta na atenção primária não faz o atendimento clínico individual. Parece não estar clara a função desse profissional na atenção primária, e há um direcionamento para ações em matriciamento e na gestão.

...às vezes fica meio confusa a atuação do fisioterapeuta. Ás vezes a gente acha que tem que atender, tem que fazer... eu acho que seria muito mais fácil eu ver o paciente, avaliar, atender e fazer a fisioterapia quanto a questão mais individual mesmo, mas eu gosto bastante do fisioterapeuta na atenção primária, porque acho que consegue contribuir em muitas outras questões (Marina).

Camila faz uma análise crítica da sua formação apontando fragilidades na estruturação curricular do seu curso de graduação. Para ela, havia uma segregação entre teoria e prática e uma polarização do aprendizado, as quais a faziam questionar que tipo de profissional se tornaria. Na maioria dos cursos de graduação, o estudante tem uma aproximação com a prática somente nos últimos semestre de curso, o que o impede de vivenciar o lado profissional. Alguns colaboradores mencionaram que existem lacunas na formação, mas que têm ocorrido avanços no sentido da inserção de alunos no cenário do SUS e na formação de novos sujeitos que tenham “capacidade de aprender, não apenas para adaptarmos à realidade, mas, sobretudo, para transformar, para nela intervir, recriando-a” (FREIRE, 1996, p. 69).

Ingressar na residência talvez tenha sido a oportunidade de encontrar “um espaço aberto a múltiplas possibilidades de criação e invenção” (SILVA, CABALLERO, 2010). Essa invenção não foi garantida pela formação tradicional “recebida" pelos colaboradores durante a graduação, o que se refletiu no desejo destes de cursarem uma residência, que seria um possível potencializador de transformações, para então “navegar por mares nunca dantes navegados”3.