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De irmãos de armas a inimigos: o anticomunismo, herança maldita

Dizem que o inimigo conhecemos na ponta da espada. Este era o lugar que o comunismo e os comunistas ocupavam para os militares, sem sombra de dúvida. Tanto que no próprio trabalho de enquadramento da memória da FEB, realizado pelos militares a partir de 1964, em meio à apropriação de sentimentos oriundos de 1944/45, mais um ingrediente foi acrescentado: o anticomunismo. Entretanto, o ódio e o rancor dos militares para com os comunistas não nasceram em 1964, a origem é mais remota.

A verdade é que entre os próprios militares sempre houve grupos de esquerda que defendessem o progresso e a igualdade social, enquanto uma direita ou extrema-direita, pouca afeita às idéias democráticas, preferisse a conservação dos privilégios sociais. Segundo Moraes, as idéias de direita nem sempre foram predominantes nas Forças Armadas, houve momentos em que a “esquerda militar” se fez presente, como por exemplo:

215 SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.264.

Os positivistas que proclamaram a República após terem lutado pela Abolição, os “jacobinos” que a consolidaram com Floriano Peixoto, os

“tenentes” que sempre estiveram na vanguarda da luta contra a carcomida e corrupta República oligárquica, os oficiais nacionalistas e democratas dos anos 50 que deixaram impressa sua trajetória na evolução política de nosso país.216

No entanto, para o autor, a presença da esquerda fora marcante entre os militares até o golpe de 1964, quando houve um enorme expurgo político-ideológico sem precedentes nas Forças Armadas, o que contabilizou mais de 1200 militares expulsos dos quadros da Marinha, Aeronáutica e Exército, como já dito anteriormente.217 Na verdade, a perseguição à

“esquerda militar” e, em especial, aos militares comunistas — interpretados como uma ameaça à própria hierarquia militar — teria se intensificado somente a partir de 1964, acredita Moraes. Por outro lado, a corrida contra a “ameaça vermelha” já tinha sido iniciada há mais de trinta anos. Mas foi somente com o golpe que as Forças Armadas tiveram armas “legais”

para extirpar de seus quadros um verdadeiro câncer, no seu entender.

Inspirados em um certo caráter nacionalista, os militares sempre foram o grupo social mais receptivo às propostas anticomunistas no Brasil, segundo Rodrigo Patto Sá Motta.

Embalados pelas matrizes do anticomunismo (o catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo), os militares combatiam o “perigo vermelho” em defesa da Pátria e da nação. Esta aproximação dos militares ao sentimento anticomunista pode ser explicada pelas próprias características da instituição militar. Para o autor, primeiramente, nos meios militares já havia uma tendência natural em respeitar o status quo e refutar qualquer tentativa revolucionária ou de ruptura da ordem; e, como defensores da ordem, viam-se no dever de preservar a integridade nacional; por fim, devido ao forte respeito pela hierarquia militar, temia-se o que de fato uma revolução poderia provocar nas estruturas das Forças Armadas.

No entanto, segundo Motta, foi o levante comunista de 1935 que fortaleceu ainda mais o anticomunismo entre os militares, uma vez que adicionou uma tonalidade cinzenta ao imaginário anticomunista: os militares revolucionários que tomaram em armas naquele episódio foram acusados de traírem os seus pares e a instituição militar, além de serem

216 MORAES (1991), Op. cit.; p.19-20.

217 Ver RIDENTI (1993), Op. cit., p.206-219; ALVES (1987), Op. cit., p.56-66; GASPARI (2002), Op.cit., p.131; 180-181.

acusados de terem assassinado alguns companheiros de farda enquanto dormiam. Logo, incorporava-se ao imaginário anticomunista o sabor da traição, seguida da covardia.218

E os militares sempre fizeram questão de rememorar este episódio. A partir de 1936, a vitória sobre a Intentona Comunista entrou para o calendário cívico das Forças Armadas, sendo comemorada anualmente nos quartéis. Recordava-se, então, o dia da “traição” como uma forma de renovar os votos contra o comunismo, além de incorporar nas novas gerações de militares os valores do sentimento de anticomunismo. “O que a memória oficial pretendia comemorar, portanto rememorar nas celebrações da ‘Intentona’, era a vitória das Forças Armadas brasileiras sobre o inimigo da pátria, o comunismo ‘sórdido e traiçoeiro’.”219

E este trabalho de rememoração da Intentona Comunista de 1935 pelas Forças Armadas é um exemplo de como sentimentos como a humilhação e a traição atravessam os tempos e deságuam em ressentimentos de diversos agoras. Desde o ano seguinte ao levante os militares vêm “comemorando” a data de 27 de novembro na tentativa de que os brasileiros não esqueçam deste “infausto acontecimento”, mantendo sempre “acesa a vigilância contra as traições e as ignomínias comunistas”, nas palavras do general Ferdinando de Carvalho que em 1981 reuniu no livro Lembrai-vos de 35 — uma publicação da Biblioteca do Exército — as Ordens do Dia da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e Alocuções proferidas de 1936 a 1980 por ministros da Guerra, presidentes e representantes das três armas em homenagem às

“vítimas da Intentona”. Segundo o autor a obra procura “espelhar o sentimento nacional [grifo nosso]” de autoridades brasileiras que nestes últimos 45 anos “tiveram oportunidade de externar a repulsa brasileira à infâmia de 35 e o respeito e admiração por aqueles que foram sacrificados pelos comunistas.”220

Mas foi a partir dos anos de 1960, intensificada mais tarde com o golpe militar, que a instrumentalização do sentimento de anticomunismo ganhou força. Em vários documentos deste período é possível encontrar discursos que marcam a relação entre a vitimização e a

218 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002, p.36-37.

219 Ibidem, Idem, p.120. Em relação ao levante, Motta procura demonstrar que no inquérito dirigido pelo Delegado Bellens Porto não há nenhuma menção a assassinatos em massa, menos ainda a vítimas trucidadas em pleno sono. O que se pode afirmar, a priori, é que ocorreu um ato de violência contra os padrões da ética militar. Há testemunhas que indicam que de fato houve a execução de um oficial legalista, o Tenente Benedito Bragança, que se encontrava preso e desarmado por um oficial comunista que o mantinha sob guarda no interior de um veículo. Já as invenções anticomunistas dão conta de que cerca de 450 militares teriam morrido durante o conflito, sendo que as estimativas mais verossímeis indicam um número que varia entre 60 e 100 vítimas fatais, mas de ambos os lados. Ver MOTTA (2002), Op. cit., p.81-82.

220 CARVALHO, Ferdinando de. Lembrai-vos de 35! Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981, p7.

crueldade de 1935 e a ameaça de “comunização” do Brasil e, conseqüentemente, a nova ordem configurada pela “revolução de 1964”.

Em 1961 sob o governo Goulart, o então Ministro da Guerra general João Segadas Vianna, ao homenagear os “heróis” brasileiros vitimados em 1935, fazia alusões ao inimigo interno da nação: “O inimigo, que em 1935 ameaçou a Pátria, permanece atuante, usando novas técnicas de desagregação e se apresentando sob as mais insidiosas e traiçoeiras facetas”.

O ministro aproveitava a ocasião para sugerir os ingredientes que mais tarde seriam fundamentais para a efetivação da contra-revolução dos militares; já se dava ali uma certa orquestração dos interesses da caserna. Dirigia-se aos soldados brasileiros convocando-os para a defesa das instituições políticas, morais e cristãs do Brasil, pois somente assim honrariam a memória daqueles que tombaram pela “legalidade em 35”:

Soldados do Brasil! A fim de vencermos o solerte inimigo no terreno em que ele se apresentar, cumpre-nos manter uma vigilância constante, ser solidários com as demais forças empenhadas nessa luta de sobrevivência , apresentar uma reação pronta a qualquer de suas ações e, finalmente, conservar a nossa União. Confio em que o Exército verá unidas suas aspirações e abafadas as rivalidades porventura existentes ante uma idéia que é a dos supremos interesses da Pátria contra o inimigo comum cuja ideologia renega todos os valores morais e espirituais [grifos nossos]

que regem nossa sociedade democrática.221

Já em novembro do ano seguinte, o general Amaury Kruel era o novo Ministro da Guerra do governo Goulart, fruto das conturbadas trocas ministeriais. Kruel refere-se ao comunismo como uma doutrina desumana que busca “dominar o mundo e escravizar o homem, para gáudio de uma pequena minoria ambiciosa e sedenta de mando”, uma vez que

“liberdade, crença, direitos individuais e tantas outras conquistas da civilização ocidental são expressões sem significado na linguagem do comunismo materialista, que não abrigando a idéia do ser humano, nega tudo que possa concorrer para dignificá-lo”.222 Reiterava, assim, a convocação para que os soldados brasileiros fossem fiéis aos “sentimentos de humanismos”

que sempre teriam orientado a nação, defendendo a integridade e a independência do país.

221 VIANNA, João Segadas. apud CARVALHO (1981), Op.cit., p.359-360.

222 KRUEL, Amaury. apud CARVALHO (1981), Op.cit., p.364.

Em 1963, outro Ministro da Guerra de João Goulart, o general Jair Dantas Ribeiro, evocava mais uma vez o “coração nacional, cuja estrutura cristã é inteiramente imune ao ódio e aos extremismos” para que mantivessem a vigilância permanente contra as aventuras comunistas. No entanto, não demoraria muito para que os militares materializassem o ódio ressentido de décadas em perseguições, prisões e atos de extremo radicalismo anticomunista.

Para Ribeiro, a “História” sempre nos tinha ensinado que a política somente poderia se desenvolver a partir das consultas às vontades e aspirações populares; entretanto, acreditava o ministro, era verdade que houve ocasiões em que as multidões foram “iludidas por líderes ambiciosos e inescrupulosos” e conduzidas a praticarem a destruição e a baderna, tudo isto como forma de extravasar os seus recalques e desejos reprimidos Assim, é esta mesma multidão furiosa, incentivada pelo rancor que depois se entrega aos ditadores totalitários, segundo o ministro, sendo conduzida “inexoravelmente ao roteiro do cerceamento das liberdades individuais e públicas, privando-a de direitos conquistados em evoluções naturais e aniquilando-lhe a vontade.”223

No entanto, Dantas Ribeiro desaconselhava em seu discurso o povo brasileiro a ter o ódio como fator de ação política. Talvez não imaginasse, mas logo o governo que ele servia seria substituído por um regime que agiria com o ódio como combustível para ameaçar e punir aqueles eleitos inimigos da ordem e da Pátria, deixando recordações amargas e feridas difíceis de serem cicatrizadas na sociedade brasileira.

Sete meses depois do golpe, as homenagens aos soldados mortos em 1935 se tornariam definitivamente o evento da celebração e da evocação dos ressentimentos de ódio, intolerância, rancor, humilhação que moviam a prática anticomunista dos militares. Na Ordem do Dia de 27 de novembro de 1964, os ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica do recente governo Castello Branco, respectivamente o vice-almirante Ernesto de Melo Baptista, o general Arthur da Costa e Silva e o major-brigadeiro Nelson Freire Lavenère-Wanderley, conjuntamente referem-se ao comunismo como uma ameaça constante, desde a Revolução Russa de 1917, às “estruturas cristãs” dos nossos corações nacionais (leia-se,

“internacionalistas”). Os ministros lembram que os comunistas na primeira tentativa em 1935 foram direto para a luta armada, que acabou sendo frustrada; já sob uma nova tática que implicava em “infiltração progressiva em postos-chaves, através de uma paciente doutrinação e da corrupção”, os “vermelhos” — no entender dos autores — viram-se iludidos em 1963 e início de 1964 de deterem o poder, o que não se concretizou devido terem sido “derrotados

223 RIBEIRO, Jair Dantas. apud CARVALHO (1981), Op.cit., p.376.

pelas forças vivas da Pátria”. Assim, todas estas referências dos ministros militares às batalhas vitoriosas contra o comunismo no país tinham um único sentido. Fazer uso daquele momento de rememoração para convocar o povo brasileiro a participar do que eles acreditavam ser uma nova guerra

Mas, sua atividade subversiva não cessou: agora, se reveste da forma de guerra psicológica, que visa a desmoralizar a obra restauradora de 31 de março e a comprometer o atual Governo perante a opinião pública.

Portanto, o comunismo, seja qual for a forma por que se apresente, é contrário aos legítimos interesses nacionais. Eis porque, nas situações de crise, como as de novembro de 1935 e de março de 1964, ou face à atuação nefasta de seus adeptos, o povo brasileiro encontrará, sempre, suas Forças Armadas unidas e vigilantes. É o cumprimento de sua missão suprema, no quadro da Segurança Nacional, a qual não pode e não deve repousar, apenas sobre as Forças Militares. É tarefa, também, de dirigentes, trabalhadores, estudantes e donas-de-casa, de magistrados e legisladores. Pois a ninguém é dado usufruir a liberdade e a democracia gratuitamente. Cabe a todos colaborar na manutenção e aperfeiçoamento destas.224

Começando a arquitetar a Doutrina de Segurança Nacional, os militares mostravam que a idéia de cidadania passava a ser sinônimo de vigilância, em que a participação na democracia estava subentendida na vigia da família, do trabalho, da empresa para que não se transformassem em “células comunistas” e “infectassem” a sociedade brasileira que caminhava para o seu desenvolvimento.

Ainda em 1964, em uma Alocução do Representante das Forças Armadas, o general Pery Constant Beviláqua insistiu que a tarefa de rememorar 1935 era um dever de todos para que o país não fosse condenado a reviver “a hedionda intentona comunista”. Aqui o comunismo aparece como um mal que interrompe a caminhada da humanidade em direção à plenitude da dignidade, representada no direito de ser dono do seu lar, de seguir a profissão de sua preferência, de pensar e expor suas idéias livremente entre outras coisas, nas palavras do autor. Em um discurso preenchido de referências a Platão e principalmente ao filósofo francês, fundador da sociologia moderna, Auguste Comte, o general discorre sobre a justiça social, colocando-a como uma prioridade de qualquer estadista ou governante. Prega que sem

224 BAPTISTA, Ernesto de Melo; SILVA, Arthur da Costa e; LAVENÈRE-WANDERLEY, Nelson Freire.

apud CARVALHO (1981), Op.cit.; p.380.

a justiça social o comunismo vingaria em países subdesenvolvidos como o Brasil da época, como já havia ocorrido em outras localidades, por isto, a intervenção dos militares ser tão necessária no país. E a “Revolução de 31 de Março” traduzia este sentido de justiça social, acreditava Beviláqua.

Toda a alocução do general visava, ao evocar a memória dos mortos de 1935, colocar o recente golpe militar como a melhor decisão tomada pelo povo brasileiro naquela ocasião conturbada, uma vez que o país se via diante da ameaça de uma revolução comuno-sindicalista. Na visão do autor, antes da instituição do regime militar, eram notórias as ações dos comunistas para tomar o poder e a governabilidade do Brasil, o país vivia sob o “câncer da indisciplina social”, partidos políticos eram substituídos por sindicatos de trabalhadores que, por sua vez, eram substituídos “por órgãos espúrios dominados por comunistas ativos – CGT, PUA, CPOS, Fórum Sindical de Debates etc”. Segundo o general os novos instrumentos da ação subversiva do Comunismo Internacional eram as Centrais Únicas de Trabalhadores, no Brasil conhecido como Comando Geral dos Trabalhadores (CGT); assim, os comunistas visavam conquistar na América Latina o sindicalismo brasileiro, tendo em vista a importância política, econômica e territorial do Brasil; neste sentido, alertava o general: “O conhecimento desse plano, de irrefutável comprovação pelos fatos, permite bem compreender o desenrolar dos acontecimentos [o golpe militar] que presenciamos e prever que o futuro da Nação depende da derrota definitiva dos pelego-comunistas sindicais do Brasil.”225.

No intuito de justificar o golpe, o general percorre em seu discurso todos os acontecimentos que o precederam, como o Comício das Reformas de Base, na Central do Brasil em 13 de março daquele ano e o comparecimento do Presidente João Goulart no Automóvel Clube para receber uma homenagem dos sargentos. Eventos que foram interpretados pelos militares como atividades subversivas e de quebra da hierarquia e da disciplina militares. No entanto, vendo supostamente ameaçada a “liberdade democrática” do país, os militares trataram logo de dar uma resposta aos comuno-sindicalistas; porém, não estavam sozinhos. Nas palavras de Beviláqua,

[...] as Forças Armadas do Brasil, oriundas do Povo e com ele irmanadas, sintonizando sua própria consciência com a consciência democrática

225 BEVILÁQUA, Pery Constant apud. CARVALHO (1981), Op.cit.; p.386.

nacional, atenderam apelos surgidos de todos os recantos do País, entre os quais avultaram as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, feitas pelas mulheres brasileiras, de rosário em punho, em edificantes manifestações de bravura cívica e de fé.226

Desta forma, a intervenção militar em 1964 ganhou ares de salvação e de compromisso das Forças Armadas com a Pátria, chegando ao ponto do autor alegar que preferiam que o presidente Goulart governasse até o último dia do seu mandato, mas que

“infelizmente ele próprio tornou isso impossível”. Sendo assim, o golpe militar passou a ser sinônimo de restabelecimento da legalidade, restauração da hierarquia e da disciplina militares, além de “conter o processo fatal de bolchevização do País”. Uma “resposta presente” aos heróis de 1935.

No mesmo tom anticomunista, a Ordem do Dia do Exército de 1966 apresenta-nos mais uma vez o golpe como uma resposta à tentativa dos comunistas em tomar o poder nos anos de 1963 e 1964, ao se infiltrarem no governo Goulart; também faz alusão à guerra psicológica iniciada pelos subversivos no intuito de desmoralizar o regime instituído. O ministro da Guerra marechal Ademar de Queiroz, autor do documento, relembrando daqueles que “tão destemidamente souberam, com sacrifício da própria vida, honrar as tradições cristãs e democráticas de nossa Terra e manter incólume a nossa Soberania” reafirmou o sentido e o destino da “Revolução”: a Unidade das Forças Militares. Materializava-se, assim, a ameaça que desde os primeiros anos do século XX se fez presente na caserna: a quebra da hierarquia militar. Então, segundo o ministro, cabia aos soldados de Caxias

Para que não tenha sido em vão o sacrifício dos que lutaram contra a insurreição comunista de 1935; para que outros não precisem mais pagar, com seu sangue generoso, o direito de continuarmos a ser livres, impõe-se que todos nós militares: estejamos sempre vigilantes para impedir a infiltração, nas Forças Armadas, da intriga ou das idéias subversivas; — repudiemos, com energia, aqueles que nos querem dividir, pois a nossa unidade é a força da nossa força e com ela se funde o próprio destino da Revolução de 31 de Março.227

226 BEVILÁQUA, Pery Constant apud. CARVALHO (1981), Op.cit.; p.389.

227 QUEIROZ, Ademar de. apud. CARVALHO (1981), Op.cit.; p.400.

Mas foi em 1968, momento conturbado tanto para o cenário nacional quanto para o internacional, com o auge das manifestações estudantis, que o ministro do Exército general Aurélio de Lyra Tavares, resolve transferir a cerimônia antes realizada no Cemitério de São João Baptista para o monumento erguido na Praia Vermelha, objetivando alcançar uma participação mais efetiva da população nas solenidades. Em seu pronunciamento, com mais reserva, o ministro preferiu investir no compromisso do Exército Brasileiro em homenagear

“a memória dos saudosos e bravos camaradas”, ao invés de repetir os tons anticomunistas predominantes nos discursos referentes ao novembro de 1935. A própria homenagem era para o Exército uma maneira de deixar viva a “lição de fidelidade ao dever para com a Pátria”: lutar e morrer pela sua liberdade.228 Já em 1969, com a repressão instituída pelo Estado como uma forma de assegurar a ordem, o então Ministro do Exército general Orlando Geisel, irmão do general Ernesto Geisel, que seria presidente anos mais tarde, aproveitava da data para fazer um diagnóstico do contexto nacional e internacional em que o comunismo encontrava terreno fértil e os mecanismos mais apropriados para lançar os

“vermes” que corromperiam as instituições sociais e a tradição:

Através dos processos modernos de comunicação do pensamento, tenta [o inimigo comunista] promover as hipnoses coletivas, para que a ação da minoria audaz se imponha ao meio social, deturpando as aspirações da massa e conduzindo-as em sentido contrário dos seus reais e legítimos ideais. Pelo terror, pelo homicídio e pelo assalto ao patrimônio público e privado, procura enfraquecer as resistências físicas e morais da Nação e desacreditar a família, a autoridade, as Forças Armadas e o Governo. É este o quadro que se observa em todas as nações livre do mundo; quando o comunismo internacional se vale das dificuldades da hora presente e do estado de tensão das sociedades modernas, gerado pelo pós-guerra, pelo impasse nuclear, pela expectativa de uma hecatombe mundial e pelo descompasso entre o vertiginoso progresso técnico-científico e a reduzida capacidade de prover a subsistência dos crescentes contingentes humanos.

A propaganda subversiva visa a cria, assim, uma aparente prevalência dos valores materiais sobre as forças espirituais do homem.229

228 TAVARES, Aurélio de Lyra apud CARVALHO (1981), Op.cit.; p.428.

229 GEISEL, Orlando apud. CARVALHO (1981), Op.cit.; p.436.

Em 1975, durante o governo de Ernesto Geisel, os movimentos subversivos comunistas já estavam sob controle, a luta armada acabara, a velha bandeira da ameaça comunista se esfarrapara. O Brasil caminhava para uma abertura política lenta e gradual. No entanto, os militares mais radicais não desejavam o fim da ditadura, ainda persistiam no combate ao comunismo. Neste cenário, o ministro do Exército general Sylvio Frota, homem da “linha dura”, aproveitava para reafirmar o anticomunismo diante de seus comandados durante a solenidade militar em homenagem aos mortos de 1935. Segundo as palavras do ministro os militares de 1964 foram dignos dos heróis de 1935, uma vez que “estávamos prestes a cair em nova emboscada comunista. As greves diárias, as agitações estudantis manipuladas por estudantes profissionais [...] a inversão hierárquica dissolvente da disciplina e precursora do caos, retratavam uma sociedade ameaçada da destruição pela anarquia”.230 Para Frota, a “Revolução de 31 de Março” viera extirpar definitivamente da nossa sociedade a

“ameaça vermelha”, no entanto, era necessário o governo manter-se em alerta, tendo em vista que

Nos últimos onze anos de lutas, em que os Governos da Revolução têm dado o melhor de sua inteligência e esforço, para a reconstrução deste grande País, ressurgem constantemente, nos espíritos em alerta, as preocupações com as atividades subversivas. Os marxistas [...] buscam infiltrar-se em quase todos os setores da vida pública brasileira para desmoralizar os postulados cristãos que adotamos e respeitamos, desagregar a nossa sociedade pela dissolução de sua moral e de seus costumes, quebrar nossa fé religiosa, desacreditar nossas instituições e solapar nosso desenvolvimento, no que lhes interessa.231

Ou seja, o comunismo ameaçava todas as conquistas morais, políticas e econômicas da “Revolução de 1964”, ao ponto de ludibriarem os “jovens inexperientes e idealistas”, buscando “transformar criminosos em vítimas e incriminar autoridades”, ressaltava Sylvio Frota. O ministro já vislumbrava as conseqüências da abertura política para os militares:

enquanto o regime concedia a anistia aos subversivos, “perdoando-os”, o povo não faria o mesmo com os militares quando estes abandonassem o poder; aos militares cairia toda a

230 FROTA, Sylvio apud. CARVALHO (1981), Op.cit.; p.482-483.

231 Ibidem, Idem, p.483.