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Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles “devoraram” tudo, a “cultura” e os “homens”, e ficaram saciados e exaustos.45

Debaixo da sombra de uma eminente segunda guerra na Alemanha, Walter Benjamin já traçava em 1933 um quadro perturbador de nossa sociedade. A entrada do homem na modernidade significara a destruição paulatina da sua capacidade de experimentar o mundo, portanto, de formular a sua própria tradição. O homem moderno perdera o vínculo com a tradição, não sendo mais capaz de estabelecer uma relação análoga entre o antigo e o atual, entre o passado e o presente. Este homem moderno somente enxerga, mesmo que difuso, o futuro; mas um futuro projetado somente nas conquistas tecnológicas, longe de qualquer preocupação com o uso desta técnica. Nestes termos, temos que concordar “onde há progresso, há também as vítimas deste progresso”, para parafrasear outro filósofo frankfurtiano, Herbert Marcuse. E o pior de tudo isto é sabermos que estas vítimas resultam de uma produção racional do horror, ou nas palavras de Zygmunt Bauman de que foi “o mundo racional da civilização moderna que tornou viável o Holocausto”, ou alguém vai discordar de que as câmeras de gás ou as armas de destruição em massa foram invenções de

45 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. v.1.

São Paulo: Brasiliense, 1987, p.118.

técnicos, pesquisadores, cientistas que passaram pelos bancos das universidades espalhadas pelo mundo e encontraram incentivos dos seus países para tais empenhos.

Como se vê, o tecnicismo imperou nos últimos séculos, desprezando qualquer sinal de possíveis desvios éticos em nossa sociedade, ocultando opressões e sujeitando o homem moderno à destruição de sua experiência, não cabendo mais a ele contemplar a vida no que ela tem de mais intenso, pleno. Pelo contrário, no entender de Benjamin, uma nova regra impera na vida moderna: a de que o homem deve aprender a evitar ou interceptar os choques, ou em outros termos, acostumar-se a experimentar os choques a partir do contato com as multidões urbanas, na vivência na linha de montagem e, inclusive, na sala escura do cinema, como rapidamente foi mencionado em outro momento deste capítulo.

E a guerra moderna é um exemplo de como o homem teve que aprender rapidamente a interceptar os choques. No caso do combatente era uma questão de sobrevivência. Ter medo da morte ou de matar, ter compaixão pelo inimigo ferido, sofrer pelo amigo morto em combate são sentimentos que não combinam com a realidade do front, apesar de sabermos que são inerentes às situações de guerra. Em combate os soldados vão aprendendo aos poucos a interceptar estes sentimentos, um caminho que os leva a transporem a própria dignidade humana, como nos relata Ferdinando Palermo que, quando foi convocado para servir numa companhia de fuzileiros da FEB, era alfaiate: “todo o sentimento que eu tinha foi perdido na guerra, que destrói tudo. Ela destrói todo o seu sentimento humano, e você passa a ser um bicho. No início, a desgraça que nos cercava impressionava muito, mas com o passar do tempo, comecei a achar tudo aquilo comum. [...] Fiquei completamente desumano, perdi todo o amor que sentia pelo semelhante.”46

Mas o fato destes homens estarem submetidos a uma exigência de evitar os choques não equivale a dizer, mesmo nos termos benjaminianos, que não tiveram experiência nenhuma na guerra. Ao contrário, foram submetidos a experiências intensas de crueldade, de medo, humilhação, ódio, dor, angústia, saudade, etc, que ultrapassaram todas as barreiras da comunicação. O que Walter Benjamin tinha percebido em meados da década de 1930 era que, em geral, os ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, tinham voltado em silêncio dos campos de batalha. Assim, segundo o autor, se havia uma pobreza de experiência esta era no campo da comunicação. Não apenas pelo fato de terem sido proibidos oficialmente de contarem suas histórias de guerra, o que não era incomum, mas porque o que estes homens

46 PALERMO, Ferdinando apud MAXIMIANO, Cesar Campiani. A tarefa rotineira de matar. Nossa História. v.

2, n. 15, jan. 2005. p.29.

vivenciaram intensamente e presenciaram nos campos de batalha não podia ser (ou dificilmente seria) traduzido em palavras. E no pós Segunda Guerra Mundial não foi diferente. Que palavras usar para significar a visão de uma pilha de corpos humanos decompondo a céu aberto. “Horror?” — não era o suficiente.

Na época, o autor alemão já chamava a atenção para um outro aspecto da modernidade: a perda da nossa faculdade de contar histórias, de trocar experiências. Na sociedade pós-industrial o Narrador já era um personagem em extinção, processo que veio sendo desenvolvido concomitantemente com os avanços das forças produtivas. Segundo Walter Benjamin, o narrador é a figura capaz de sintetizar uma época em que o homem ainda experimentava sua relação com o outro e com a natureza, ou seja, a matéria da narração e sua condição de existência era a própria “experiência”. A narração foi durante séculos o instrumento da manutenção da tradição; o fato de transmitir o conhecimento e a cultura de pessoa a pessoa fazia dos narradores indivíduos importantes para a sociedade, mereciam ser ouvidos, pois eram homens que sabiam dar conselhos, eram homens sábios, segundo o filósofo alemão. Assim, se exigia do narrador uma capacidade de transformar a sua

“experiência”, e a do outro, em algo digno de ser contemplado pelos ouvintes. Não interessava à narrativa transmitir algo por si só, o “puro em si da coisa”, mas mergulhar na vida do narrador e de lá irromper como “experiência”.47

Como se vê, a narração nos remete a uma sociedade artesanal, pré-industrial, onde a sabedoria, a tradição, a experiência eram compartilhadas por meio da transmissão oral. Já na vida moderna não há tempo nem espaços que privilegiem a relação de um indivíduo com o outro, a comunicação interpessoal perde lugar para a impessoalidade dos meios técnicos. O romance, vinculado ao livro, é o primeiro indício da morte da narrativa, segundo o autor. Por excelência, a leitura de um romance (ou de um livro) é um ato solitário, em que separa o narrador (ou melhor, o escritor ou romancista) de seu público, desfavorecendo qualquer tentativa de transmissão de experiência. Então, o que resta ao leitor de romance é “a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro.”48

E o que dizer da imprensa, do predomínio da informação jornalística que ao desejar ser a ponte entre o leitor e o fato “em si” não se preocupa em transmitir e nem mesmo em habitar a “experiência” do leitor, segundo Benjamin. Se na narrativa temos as marcas do

47 BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. v.1. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.197-221.

48 Idem, p.214.

narrador, assim como no vaso da argila ficam os vestígios do oleiro, no jornal só nos restam os borrões de tintas das máquinas tipográficas, uma operação tipicamente industrial.49

Diante disto, e em consonância com o pensamento benjaminiano, poderíamos acreditar que as experiências dos ex-combatentes estariam condenadas ao esquecimento, até mesmo porque se encontravam silenciados, poucas vezes tinham a oportunidade de exercer cotidianamente (portanto, naturalmente) a sua capacidade de contar histórias. Quando retornaram dos campos de batalha poucas eram as pessoas que se interessavam por estas histórias, uma vez ou outra os familiares e alguns amigos íntimos eram os seus únicos ouvintes. Sem poder narrar e compartilhar suas experiências, o ex-combatente ia interiorizando cada vez mais os ressentimentos daquela época, como por exemplo a culpa, resultando de um modo geral em neuroses de guerra.

Mas estas experiências não estariam totalmente perdidas para Walter Benjamin desde que o homem moderno despertasse para a necessidade de retomar os vínculos com a tradição, mas não em um sentido nostálgico. “Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado”, dirá o filósofo.50 Para o autor é através da rememoração que o homem poderia fazer um movimento de retorno à origem, movimento que, aliás, só poderia ser reconhecido como uma restauração incompleta do passado. Ao procurar dialogar com a corrente historicista, Walter Benjamin descarta a pretensão destes historiadores em fornecer uma descrição exata do passado e nos alerta que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”,51 em outras palavras, a narração do passado sempre exige um alerta, pois é escrito no presente e para o presente, portanto, o historiador é o responsável por um passado sempre ameaçado pelos interesses do presente. E em se tratando das imagens do passado dos ex-combatentes veremos mais adiante que é uma constante serem submetidas ao trabalho do esquecimento, como se assim fosse possível cicatrizar as feridas que insistem no pós-guerra a permanecerem latentes em nossa sociedade.

49 Entretanto, vale destacar que para Walter Benjamin todas estas evoluções técnicas que culminaram no fim da narrativa não devem ser lidas como um retrocesso ou um avanço para a sociedade, mas refere-se ao processo como uma transformação na percepção social, uma metamorfose na relação do público com a obra de arte.

Para uma abordagem mais detalhada, ver o conceito de aura desenvolvido pelo autor em seu ensaio clássico A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Ver em Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. v.1. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.164-196.

50 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. v.1.

São Paulo: Brasiliense, 1987, p.223.

51 Idem, p.229.

Sendo assim, segundo Jeanne Marie Gagnebin, a exigência de rememoração do passado em Benjamin não pode ser lida apenas como uma mera restauração do passado, mas como “uma transformação do presente tal que, se o passado perdido aí for reencontrado, ele não fique o mesmo, mas seja, ele também, retomado e transformado.”52 Aqui dois conceitos são caros ao pensamento benjaminiano a respeito da memória: vivência e experiência. Baseado na oposição freudiana consciência/memória, o autor nos apresenta a vivência como todas aquelas impressões da vida cujo o efeito de choque é interceptado pelo sistema percepção/consciência, ou seja, tornam-se conscientes. E por estas vivências serem matérias da consciência, elas desaparecem instantaneamente, sem terem a chance de se incorporarem à

“verdadeira” memória. Já aquelas experiências, excitações da vida que jamais se tornaram conscientes devido a ação do psiquismo, são remetidas ao inconsciente onde deixam nele rastros duráveis.

Assim, para Benjamin, é a experiência que se assenta na “verdadeira” memória do homem, uma vez que a “lógica benjaminiana” obedece a seguinte ordem: quanto maior a atividade do fator choque nas impressões da vida, maior será a atuação do consciente em proteger-se contra estes estímulos; e quanto maior for o êxito desta operação, menos estas impressões serão incorporadas ao campo da experiência, conseqüentemente, corresponderão à vivência.53

Decorrente destes dois conceitos e da sua paixão pela obra e o pensamento do escritor francês Marcel Proust, Walter Benjamin formula uma nova dicotomia: memória voluntária/vivência e memória involuntária/experiência. A única forma de termos acesso às imagens do passado, de efetuarmos uma busca do tempo perdido, só seria possível por meio da memória involuntária, diria o filósofo. A memória involuntária é a única capaz de mergulhar suas raízes na experiência. Enquanto isto, a memória voluntária seria todas aquelas lembranças a que temos acesso por meio da atividade do intelecto Esta corresponderia às

“gavetas” de nossa memória que poderíamos abrir quando desejássemos, porém, o que está ao nosso alcance são somente recordações, ela não é capaz de captar as dimensões afetivas do passado.

Sob este aspecto, para Benjamin, se procuramos alcançar a dimensão afetiva e descontínua da vida, portanto, recuperar as imagens do passado, mesmo que seja por alguns instantes, então, temos que nos dirigir à memória involuntária, àquela que nos dá acesso às

52 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p.19.

53 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas III. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. v.3. São Paulo: Brasiliense, 2000 (segunda reimpressão), p.111.

experiências que temos com o mundo vivido. Assim, a busca pelo passado ou por seus fragmentos escapa ao intelecto, exige um exercício do homem em retomar a sua capacidade de perceber os signos e os sinais deste passado que surge como um relâmpago, que emerge no presente carregado de uma força marcada por emoções e afetos.

Em se tratando de perpetuar a experiência, vimos que para o autor alemão faz-se necessário que ela venha acompanhada de uma tradição a ser compartilhada e retomada na continuidade da palavra transmitida, como o conhecimento transmitido de pai para filho que encontrávamos nas “comunidades artesanais”. Daí a importância do ato de rememorar para a sociedade moderna, atividade que traz no seu cerne o reconhecimento do homem da perda de sua tradição e da necessidade de começar tudo de novo, no sentido de uma história como construção contínua. Não se trata de esquecer ou negar o passado, como desejam alguns revisionistas da história, mas de destruí-la para que possa ser recontada, que novos sentidos possam lhe ser atribuídos, principalmente no tocante àquelas vozes que foram esquecidas, silenciadas. E os ex-combatentes brasileiros da Segunda Guerra Mundial são um exemplo.

Então, o ato de rememorar assume uma conotação revolucionária que para Walter Benjamin só encontraria correlato em uma arte comprometida a executar um potencial de experiência, de crítica e de revelação (no sentido de salvação de significados ocultos). O que acredito ser possível ao compreendermos a essência dos filmes documentários: o encontro do cineasta com o mundo vivido e o outro. Ao permitir ao outro rememorar ou reler o seu passado, os seus traumas, as suas experiências, o documentário torna-se um lugar afetivo da memória. Por isto escolher filmes como Rádio Auriverde, Senta a Pua!, A Cobra Fumou e O Lapa Azul para compreendermos como sessenta anos depois a memória da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial ganha as telas do cinema, realimentando-se de significados do presente e transformando-a em alguma direção. Está em jogo aqui o compromisso ético de seus realizadores com um dever de memória.

Neste sentido, o filme documentário é uma saída para a recuperação da força da tradição oral, da figura do narrador ou do contador de história, como desejava Walter Benjamin. É por meio do documentário que podemos ter o acesso, mesmo que limitado, aos traços afetivos que compõem esta memória. É claro que isto dependerá de como o cineasta irá escolher representar o mundo vivido.

Mas é preciso esclarecer que não nos interessa identificar possíveis traços das imagens do passado nos filmes, mas compreender como estas são reatualizadas no presente, portanto, articuladas em um discurso fílmico, sempre tendo como direção as palavras de Jacy Alves de

Seixas de que “uma das funções da memória é a de atualizar as lembranças agindo [grifo da autora]”,54 o que equivale dizer que o documentarista assume em seus filmes sempre uma perspectiva de compromisso com o passado, seja ele qual for. Como exemplo podemos dizer o seguinte: é verdade que nenhuma imagem do horror da guerra é capaz de explicar o processo de destruição e desumanização daqueles homens, no máximo servem como ilustrações terríveis; no entanto, estas mesmas imagens em um documentário podem ser trabalhadas, articuladas, para que não sejam apenas lidas como imagens de arquivo dos campos da morte, mas que possam servir como uma provocação, um alerta para a humanidade de que é preciso não esquecer. Desta forma, concordo com Susan Sontag de que

Mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno. Contudo, parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que partilhamos com os outros. [...] As imagens dizem: é isto o que seres humanos são capazes de fazer — e ainda por cima voluntariamente, com entusiasmo, fazendo-se passar por virtuosos. Não esqueçam.55

Em outras palavras, o documentário nos interessa menos pelo que testemunha e registra e mais pelo como opera um discurso fílmico sobre o passado, levando sempre em consideração a sua tríade identitária: registro in loco, criatividade e ponto de vista. Aqui os depoimentos e as entrevistas dos ex-combatentes (no nosso caso) ou dos personagens sociais destes filmes não são interpretadas como imagens (e sons) únicas e verdadeiras de um passado, mas imagens (e sons) que nos dão acesso a um passado atualizado no “tempo saturado de agoras” a partir do encontro do cineasta com os atores sociais. E o que resulta deste encontro ainda não é o nosso objeto, mas sim a operação, a articulação deste passado no filme, uma obra do presente. O que procuramos é o sentido fílmico atribuído a estas imagens do passado, que justapostas ou associadas a outros elementos fílmicos (imagens de arquivo, fotográficas ou cinematográficas, reconstituições de acontecimentos, músicas e trilhas, etc) ajudam a compor “a voz” do documentário. Um indicativo do argumento do diretor a respeito do mundo vivido, portanto, de um presente que procura recuperar a

54 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemas atuais. In: BRESCIANI, Stella. NAXARA, Márcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP:

Unicamp, 2001, p.53.

55 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Cia das Letras, 2003, p.95-96.

memória viva do passado, mas agindo sobre ela. É um uso político das imagens do passado, no sentido de salvá-las do esquecimento e da negação, e da descontínua vida moderna, compreendendo que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”.56 Portanto, é uma imagem única, insubstituível do passado que se enfraquece com cada presente que não soube reconhecê-la.

Pierre Nora nos lembra que “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado” e, neste sentido, arrisco aproximar a atividade do historiador com a do documentarista, evidentemente respeitando suas especificidades. É verdade que o cineasta tem uma liberdade de criação que o historiador não tem, mas até mesmo no filme documentário esta liberdade é mediada pela ética, recordando de que se trata de um filme marcado pelo encontro com o outro, pela invasão da intimidade do outro, o que exige uma postura no olhar que se aproxima do olhar do historiador, principalmente daquele historiador preocupado em vasculhar o sensível na constituição do passado.

Segundo Bill Nichols, o encanto e o poder do documentário está em que dele não tiramos apenas prazer, mas também um sentido, uma direção do mundo. O documentário é uma representação engajada do mundo, portanto, a relação do espectador com respeito à imagem “está invadida por uma consciência da política e da ética do olhar [tradução minha]”.57 Então, o documentarista se assemelha ao historiador, é um lembrete, como nos diz Peter Burke, sua tarefa é lembrar às pessoas o que elas gostariam de ter esquecido.

Em relação ao entrecruzamento entre memória e esquecimento, temos que estes laços entre presença e ausência do passado sofrem ambos manipulações, negações que são determinadas por interesses, ressentimentos etc. Desta forma, segundo Jacy Alves de Seixas, memória e esquecimento devem ser lidas como linguagens simbólicas, portanto, carregadas de afetividade, seja positiva ou negativa, possibilitando que o passado seja não somente reconhecido, mas também construído sempre com uma perspectiva para o futuro.58

56 BENJAMIN (1985), Op. cit., p.224.

57 NICHOLS, Bill. La representación de la realidad: cuestiones y conceptos sobre el documental. Buenos Aires, Argentina:

Paidós, 1997, p.116.

58 SEIXAS, Jacy Alves de. Tênues fronteiras de memórias e esquecimentos: a imagem do brasileiro jecamacunaímico. In: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia Regina Capelari; LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. Franca, SP: UNESP; São Paulo: Olho D’Água, 2003, p.166.

Construção que aqui, para a autora, soa melhor como uma atualização do passado, sempre trazido à tona no presente como algo vivo e atual, portanto, recriado.

É sob este aspecto de uma memória afetiva e viva que considero o filme documentário uma atividade de luto. O documentário não permite que os rastros, os vestígios do mundo vivido se apaguem, sejam esquecidos. Nestes termos, para Jeanne Marie Gagnebin, a “verdade do passado” refere-se a uma ética da ação presente. Ação que se configura como uma luta contra o esquecimento e a denegação, ou em outras palavras, contra a morte e a ausência.59 Este é o compromisso assumido pelos filmes documentários, inclusive pelos aqui selecionados. Mesmo que apresentem perspectivas distintas em tratar a memória e a imagem dos ex-combatentes brasileiros, significando-os ora como heróis ora como anti-heróis, a ponto de sacrificar as reservas simbólicas eternizadas pelo discurso oficial sobre a FEB, filmes como Rádio Auriverde, Senta a Pua!, A Cobra Fumou e O Lapa Azul trabalham para que o passado da participação dos brasileiros na Segunda Guerra Mundial não desapareça ou não seja silenciado debaixo de mitos, atualmente incapazes de traduzir as experiências e a história destes ex-combatentes, como procurarei demonstrar no próximo capítulo.

Desta forma, o filme documentário nos surge como um dispositivo adequado para os rearranjos da memória, para que o passado irrompa no presente sob a forma de silêncios, pausas, hesitações, sofrimentos, uma vez que, para além das intenções do cineasta, pode-se ter acesso ao que não se deixa traduzir em palavras. O inenarrável é escamoteado entre os silêncios e os tropeços dos depoimentos, nas rugas das faces, nas vozes trêmulas e embargadas, nos olhos lacrimejados, no incômodo e mal-estar dos narradores (atores ou personagens sociais) que se faz presente diante da matéria-prima da memória: as dimensões afetivas de suas vidas em contato com o mundo. E para o filme documentário também vale a máxima de Walter Benjamin a respeito do narrador: quanto maior for a naturalidade com que os depoimentos dos atores sociais acontecem diante da câmera, mais facilmente a sua história será incorporada à experiência do espectador que, dificilmente, irá resistir a recontá-la.60

Entretanto, o caminho para as imagens do passado não se dá apenas pelo exercício de entrevistas no documentarismo, que já se consagrou como um cacoete do documentário brasileiro, tanto cinematográfico quanto televisivo, como demonstrou Jean-Claude Bernardet em 1985. Segundo o autor, depois do fascínio que o som direto provocou nos cineastas, proporcionando a descoberta da fala, da possibilidade de dar voz ao povo e etc, o

59 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado. Projeto História, São Paulo, PUC, v.17, 1998, p.219-221.

60 BENJAMIN (1985), Op.cit, p.204.