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III. “A Justiça Vem de Deus”

3.4. De “m.a.” ao Castigo: a justiça significada

O procedimento administrativo, que diz respeito à punição disciplinar existente nos estabelecimentos penais no Brasil, foi institucionalizado pela LEP, no Capítulo IV, seção III, subseção V, art. 59, que legisla: “praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito de defesa”. Este é o instrumento utilizado pela administração dos estabelecimentos para instituir instrumentos punitivos à pessoa condenada. Embora o texto da lei aborde o tema com a palavra “procedimento”, no contexto do CRF as agentes referem-se a esta prática como “medida administrativa” (comumente identificado entre todos no CRF de “m.a”).

A medida administrativa é evocada nos casos em que a pessoa encarcerada comete alguma falta disciplinar (desobediência às regras prisionais, motim, fuga ou tentativa de fuga, briga entre as internas) que poderá ser classificada como falta leve, média ou grave. A medida

administrativa designa o poder disciplinar à autoridade administrativa da casa penal, que deve, por sua vez (quando as faltas forem consideradas leves ou médias), indicar a que tipo de punição disciplinar a mulher condenada fica sujeita e por quanto tempo. Caso a falta seja considerada grave, esta prerrogativa passa para o juiz, que apura e institui uma punição à detenta.

Em uma das vezes que estive no CRF, pude conhecer o local designado para a execução da medida administrativa (“m.a.”). À época, outubro de 2010, a agente penal que me acompanhou me mostrou as quatro celas destinadas a este fim ― conforme registro fotográfico abaixo ― que ficavam bem longe do pavilhão das presas em regime fechado, sob a justificativa de falta de espaço no próprio pavilhão.

Foto 8: Espaço de “m.a.” da presas sentenciadas de justiça a regime fechado.

As celas encontravam-se por trás do bloco destinado às presas em regime semiaberto, mas que não tinham acesso àquela parte do presídio, pois estavam separadas por grades e uma vigilância constante ― quando havia alguma detenta ali instalada. Nesta ocasião tive a oportunidade de perguntar se era comum a utilização de “m.a” no CRF, ao que a agente me respondeu: “m.a. é a coisa mais fácil de acontecer por aqui...” e continuou:

Porque as coisas são assim: você olha essas mulheres que estão presas e pensa ‘coitada!’, e eu olho pra elas e sei tudo que elas são capazes de fazer: sei que na primeira oportunidade elas vão ‘atribular’ e vão querer meter a gente no fogo. Nem por isso penso que elas são ruins, não! Acho que se tivesse no lugar delas, faria o mesmo. Mas, meu papel aqui é outro: elas tentam de tudo e eu tenho que ficar reparando. Aí, na hora da pressão, que as coisas acontecem, a gente faz o m.a. e resolve aquela situação por aqui mesmo. (AGENTE, entrevista em 25/08/2011)

Desse modo, a utilização da medida administrativa é justificada pelas agentes por conta do que as mulheres em situação de cárcere podem fazer: a atribulação que causam pode colocar a ordem do presídio em perigo. Não posso deixar de argumentar que o discurso emitido pela agente, mas certamente elaborado e compartilhado por um grupo maior de pessoas envolvidas na vigilância carcerária, pode ser compreendido por aquilo que Becker (2008) diz ser a justificativa do grupo de impositores de regras. O autor ainda sugere que ao justificar a necessidade da sua existência, o grupo não enfatiza no discurso a importância da regra e/ou seu conteúdo, mas o fato de que seu trabalho é impor tal regra e, com isso, legitima a sua condição de superioridade e de respeito que deve despertar naqueles a quem as regras são aplicadas.

Para o autor, aqueles que trabalham na imposição de regras precisam justificar sua existência o que devem fazer em duas dimensões distintas:

Ao justificar a existência de sua posição, o impositor de regras enfrenta um duplo problema. Por um lado, deve demonstrar para os outros que o problema ainda existe; as regras que supostamente deve impor têm algum sentido, porque as infrações ocorrem. Por outro lado, deve demonstrar que suas tentativas de imposição são eficazes e valem a pena, que o mal com que ele supostamente deve lidar está sendo de fato enfrentado adequadamente. (BECKER, 2008:161-162)

Na fala anterior, quando a agente se refere à prática utilizada no CRF como “a gente faz o m.a. e resolve aquela situação por aqui mesmo” ela trata o “m.a.” como instrumento de solucionar situações-problemas no CRF, pois, por ser, neste sentido, um legítimo meio de imposição das regras não é sem propósito que sua utilização seja recorrente. E aqui identifico duas questões: a primeira referente à classificação das faltas que são consideradas, quase

sempre, como leves ou médias – mesmo aquelas que constam na lei como falta grave, como o caso do uso de celular (artigo 50 da LEP).

Disso decorre uma segunda situação ou questão: sendo leves ou medianas é prescrito na lei que a autoridade administrativa deve decidir sobre a punição a ser aplicada, ou seja, a direção do CRF institui o tipo e a duração da punição ― o que vai de encontro a LEP, pois nesta a rotina “padrão” quando uma mulher74, já condenada, comete alguma falta dentro do

CRF é dever da direção da casa penal apurar a “natureza da falta” (classificando-a em “leve”, “média” ou “grave”, como mencionei anteriormente) e, constando a gravidade da “falta”, é necessário que o juiz despache a ordem para o cumprimento de “regime diferenciado”, o que significa que a mulher será levada à cela do “m.a.”. No entanto, para que o juiz faça o despacho é necessário marcar a audiência e, nesta audiência, deverão ser ouvidos os envolvidos (incluindo aí a defesa) para que, somente depois deste trâmite, seja publicada a decisão do juiz que, em acordo com a promotoria, decide o tipo de punição.

Quando as dirigentes do CRF restringem a decisão do tipo de punição ao âmbito local abreviam o caminho burocrático narrado acima e atendem ao imperativo de manutenção da ordem, de tal modo que acreditam que estão amparadas pela lei e que cumprem o que é prescrito na mesma, ou seja, executam uma medida administrativa; por outro lado, as mulheres em situação de cárcere entendem o que acontece como punição, para além daquelas a que são submetidas ao serem recolhidas ao CRF. Para as primeiras, há o entendimento de que, “resolvendo tudo por aqui mesmo”, a justiça está sendo cumprida e para as segundas, há o “castigo” – o que excede a aplicação da pena.

Tal excesso é observado pelas detentas, não porque exista uma nova falta a expiar, mas são as condições impostas para a reparação da infração que permitem considerar os episódios que ocorrem no CRF como algo injusto. É o que nos mostra Patrícia Pilar, quando diz:

Vivo no castigo, porque lá é o lugar de quem fala mesmo. Mas elas (as agentes) sabem que eu não reclamo à toa. Eu tenho motivo pra reclamar. Da última vez que fui pra lá, passei quatro dias porque briguei com a ‘monstra’ (outra detenta), agora, me pergunta se eu tava só; não tava, não, tava cheio de ratinho comigo. Agora, a outra menina que tava na cela do lado passou um dia. E sabe por que ela tava lá? Porque estava com carregador de celular na cama, mas a agente diz que não tinha prova que era dela. (...) isso é justo? (PATRÍCIA PILAR, entrevista em 13/04/2011)

74 Refiro-me aqui a mulheres condenadas para explicar o modo como a “m.a.” deve ser realizada, mas como ela é

Patrícia Pilar põe em dúvida a objetividade na aplicação da “m.a.” feita no CRF ao questionar se há justiça no fato dela ter ficado por quatro dias na cela do “castigo”, por brigar com outra detenta e outra mulher ter passado um dia na mesma situação, por ter sido flagrada com carregador de celular (sem prova de que era dela, segundo Patrícia). Vejo, nesta e nas outras situações tratadas antes, que o processo de punição dentro do CRF é algo que toma, também, embora não apenas, evidentemente, as simpatias e antipatias como parâmetro para ser executado ― é a isto que tenho chamado de subjetividade na aplicação da pena, posto que nas circunstâncias pesquisadas há evidências, nos relatos que expus, que me fazem pensar que a classificação das faltas em leves ou médias tem o intuito de sempre enquadrá-las no que a legislação dispõe como pré-requisito para que o corpo dirigente do CRF seja responsável pela aplicação da punição.

O risco desta forma de utilização do “m.a.” é que as agentes, o corpo dirigente em geral, venha a desenvolver uma avaliação própria da situação que ocorreu ou está ocorrendo no CRF, que certamente não fica (talvez nunca seja completamente) isenta de critérios subjetivos. Como a interlocutora a seguir expressa:

As agentes são uma coisa a parte aqui dentro. Elas tanto podem servir para te ajudar sem querer nada em troca, como podem também te deixar sendo menos que o chão! Se tem alguma coisa que acontece aqui, a agente da equipe do pavilhão sabe. Ela é a primeira a saber porque ela tá ali vendo tudo...então, se tem intriga ou algum desentendimento ela resolve na hora. Só tem uma coisa: se quem tá na intriga é alguém de quem ela goste aí a outra se ferra. Se for com alguém que ela goste de atribular aí é festa pra ela (agente); com certeza tem punição! (SCHEILA CARVALHO, entrevista em 15/06/2010)

Eis aqui o cerne do que venho discutindo no capítulo, pois enquanto a instituição justifica e reproduz práticas de punição (que como se viu anteriormente, não são destituídas de uma boa dose de subjetividade) dizendo que assim fazem a justiça, para as mulheres apenadas o que acontece é um “castigo” e este é o significado dado à justiça ― esta não é percebida como um sistema instituído para regulamentar e executar uma legislação. Na verdade, é como se vivessem cotidianamente a diferença entre justiça e direito ― no sentido do corpo de leis que institui e regulamenta a vida em sociedade ― mas, não percebessem a diferença entre ambos.

A justiça pra mim é que se acontece algo pra mim, se outra pessoa fizer, vai ter o mesmo destino; seria tipo assim como te falei: se levasse em consideração porque fiz tal coisa errada e não simplesmente me jogassem aqui porque o que eu fiz tem muita gente lá fora fazendo também. Aí chego aqui e vejo tudo o que a gente passa e

só posso pensar que aqui não tem justiça. A justiça vem de Deus. (SCHEILA CARVALHO, entrevista em 19/04/2011)

Para essas mulheres, a justiça tem o peso da igualdade no tratamento, a sensação de ser igual para todos que ali estão. No entanto, não é isso que ocorre, pois, como tenho procurado mostrar, a justiça, o modo como é posta em prática pelas agentes, não impede que tratamentos diferenciados e mesmo privilégios existam no cárcere. Aliás, parece mesmo que tais diferenciações (percebidas na divisão do trabalho que tem remição e o que não têm; na refeição oferecida às mulheres e no tratamento que recebem quando cumprem medidas administrativas) são propositadamente perpetuadas, pois a partir delas uma hierarquia entre as próprias detentas vai se instituindo e garantindo, de qualquer modo, o controle do grupo dirigente sobre todas.

Nesse sentido, não há realmente uma justiça, nos termos que defini no inicio desse capitulo. O que há, e que se sobressai nas diversas circunstâncias que envolvem a vida no cárcere, é a execução do direito que, nos termos de Bourdieu (2011), é um campo jurídico onde ocorrem os conflitos e as disputas permanentes pela legitimidade de quem faz as leis. No entanto, a crítica do autor a este campo repousa no fato de que o interesse do campo jurídico não está na eficiência jurídica ou na justiça a que se pretende, mas no formalismo do direito. É a força do direito que se sobrepõe, através do normalismo, à justiça e porque respaldado no discurso da equidade no tratamento e da neutralidade na aplicação das sanções, o direito ganha status de justiça, sem o ser verdadeiramente.

Nisso é possível compreender os motivos que levam Scheila Carvalho a ter como única esperança a justiça divina, pois esta, estando acima dos homens, pode ser revestida do caráter de imparcialidade e igualdade que dela se espera. Com isto, finalizo este terceiro capitulo, acreditando ter identificado como a justiça ― não o sistema judiciário e/ou penal, mas, a idéia de justiça (na tradução aqui considerada) sob a qual todos somos regidos e esperamos ser amparados quando necessário ― se torna mais um elemento excludente no período de encarceramento e, ao mesmo tempo, dá ensejo a outras formas de punição física (quando permite a utilização de espaços inadequados para a aplicação do m.a., por exemplo) e simbólica (pelo processo de escolha de quem irá ocupar as poucas vagas existentes para as atividades que são prerrogativa para a remição da pena).

No entanto, o que as mulheres que estão no CRF como “internas” ou “detentas”, aparentemente, não possuem é a percepção de que existe uma diferença entre justiça e direito. Não compreendem que foram julgadas e, uma vez no CRF, estão submetidas não à justiça como instituição, mas que são vigiadas e punidas sob a regulação do direito. E porque vivem esta tensa ambiguidade entre o que esperam da justiça e a que se submetem pelo direito, que aguardam veementemente a liberdade, tema do próximo capítulo.