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III. “A Justiça Vem de Deus”

3.2. Maternidade, ou como ser mãe num presídio

De acordo com o Departamento de Penitenciária Nacional/Ministério da Justiça (DEPEN/MJ), as unidades prisionais femininas no Brasil apresentam problemas semelhantes às unidades masculinas, tais como: as instalações precárias e insuficientes para a população carcerária existente; projetos educacionais não atrativos e sem a articulação necessária com o ensino profissionalizante; oportunidades restritas de atividades remuneradas no presídio; assistência jurídica ineficiente, embora prevista por lei. A estas questões ― gerais e bastante evidentes ― acrescento que há algo diferente entre o espaço prisional feminino e o masculino: a questão da vida familiar.

Quando entram no sistema penitenciário as mulheres comumente perdem, junto com a liberdade, a vivência da maternidade. Este é um dos aspectos que melhor demarcam a restrição delas enquanto encarceradas, pois, além de precisarem gerenciar toda a sua vida dentro do presídio (manutenção da cela, espaço para dormir, alimentação independente da cozinha do presídio) precisam, também, lidar com as cobranças, os comentários e até mesmo o progressivo distanciamento de seus filhos. Longe da maternidade idealizada, há aquelas que já entram no sistema deixando filhos lá fora e há quem já entre grávida, situação particularmente delicada dentro do CRF.

Durante o período em que a pena está em vigor, o que observei no CRF é que as mulheres são sistematicamente afastadas dessa dimensão de suas vidas e isto ocorre de dois modos específicos: 1) quando grávidas, ficam restritas a uma única cela no pavilhão das presas provisórias, e quando saem para dar à luz ou “ter bebê”, como dizem, preferem ficar sem ele, pois o CRF não possui um lugar específico para acolher os recém-nascidos; 2) quando já possuem filhos ainda pequenos (até 7 ou 8 anos) são desaconselhadas a pedirem para um familiar, normalmente a avó materna, levá-los em dia de visita.

Embora a LEP seja bastante clara sobre o direito da mulher exercer sua maternidade durante e depois da gravidez (art. 14,§3º), com benefícios estendidos ao recém-nascido, e berçário para os filhos das detentas (art. 83, §2º), o CRF ainda não implementou estes espaços, embora o governo do estado reconheça na própria história do CRF que este seria uma aspecto importante em seu funcionamento:

A Lei nº5769, de 9 de maio de 1993 autorizou a criação do Centro de Reeducação Feminino, inaugurado em 10 de julho de 1998, para recolhimento de mulheres infratoras, um de seus diferenciais era o de criar condições pra que as internas permanecessem com os filhos em fase de amamentação. (PARÁ, 2010:6)

Entre as 12 entrevistadas, 10 possuem, pelo menos 1 filho70 e a distância dos mesmos foi, ao longo da pesquisa, um dos temas mais abordados. O nascimento e/ou permanência de crianças no interior da prisão é percebido pelas mulheres como algo que extrapola a sua sentença, uma vez que, como dizem, “acaba que eles (os filhos) vão ter que vir pra cá e cumprir pena com nós”. Mas, este é um discurso que circula sutilmente através da assistência

70 No que se refere a quantidade de filhos ou filhas, as interlocutoras tem diferentes situações. Vejamos: Paty 05,

Dina e Ana Carolina possuem um filho ou filha cada; Scheila Melo, Patrícia Pilar e Zita, são mães de dois filhos cada; Eliana e Pitchula tem três filhos cada (entre meninos e meninas); Scheila Carvalho e Mãe, possuem seis filhos cada e Marina Lima e Cinderela não possuem filhos. Algo semelhante é referido por Soares & Ilgenfritz (2002) quando apontam para o cenário onde 83,6% das presas no Rio de Janeiro possuem filhos e deste percentual, apenas um reduzido número (não especificado pelas autoras) possuem contato com os filhos.

social ou das agentes que acompanham as grávidas para o médico, para a realização de exames e em outros momentos.

Elas (as agentes) vivem dizendo para não trazer ele não que vai ser só sofrimento. Que elas vão ter que fazer revista no menino e a senhora sabe, né?! Já é difícil pra mim saber que minha mãe vai ter que sentar na cadeirinha71 pra fazer a revista: pensa ter que fazer isto na criança! Pior! (CINDERELA, entrevista em 22/06/2010)

A idéia de que é preciso afastar os filhos delas para não prejudicar seu desenvolvimento, para não causar-lhes vergonha, para não expô-los ou ter que explicar o porquê da obrigatoriedade de estar naquele local foram os motivos levantados para justificar o reduzido número de mulheres que recebem visitas dos filhos. Um dos professores da casa penal assim se posicionou quanto aos espaços do CRF e a necessidade de oferecer algo melhor às detentas e seus filhos:

É o próprio sistema que é feito pra não funcionar porque aqui, no caso do CRF, a gente sabe que existem pessoas que acham besteira ofertar outras coisas para as meninas, que elas não vão se regenerar mesmo. Mas, eu acho que não! Eu pedi pra diretora uma sala dessas aí que estão desativadas pra fazer uma brinquedoteca pra quando as crianças vierem aqui, as mães terem um espaço legal pra ficarem com elas, mas ela não pôde liberar porque tá pensando em transformar estas salas em celas que estão faltando. (PROFESSOR, entrevista em 05/04/2010).

No CRF, a sexta-feira pela manhã é o dia destinado para a visitação de crianças, onde as mulheres teriam tempo para dedicar-se à vivência da maternidade. Entretanto este dia é, como se diz, “dia de semana”, o que, aliado a pouca atratividade, já que não existem atividades que se possa desenvolver com as crianças ou espaços reservados para este fim ― especialmente para os menores ― acaba contribuindo para o progressivo afastamento entre mãe e filhos.

À medida que o convívio familiar vai se distanciando, as mulheres vão se percebendo como menos importantes na vida dos filhos e, depois destes, da própria mãe que é sempre uma figura presente durante a estadia na casa penal. Não raro, as reclamações são em torno da angústia de querer trazer os filhos para mais perto e do arrependimento de terem feito algo que as distanciou da convivência com os mesmos:

71 A cadeirinha, como é chamada no CRF, é o lugar onde as mulheres que visitam o presídio precisam sentar

sem as roupas “de baixo” para que seja feita, por uma agente, a revista ginecológica e, deste modo, garantir que nenhum objeto ilegal entre no CRF.

Olha, eu sei que fiz coisa errada e que antes eu nem dava muito valor pros meus filhos, mesmo. Eu deixava eles com minha mãe e ia embora fazer o tráfico ou pra festa mesmo. Ai, quando eu me vejo hoje aqui, sem ver nenhum deles e tudo que tô perdendo do crescimento deles, eu queria ter feito um outro caminho na minha vida. (SHEILA MELO, entrevista em 19/10/2010).

Se por um lado existe a pressão, por parte da instituição, para que a maternidade não seja mais vivida no período da sentença, podemos pensar que o mundo “do lado de fora” do presídio também contribui para tal afastamento, de acordo com Colares e Chies (2010). Para estes autores, estudiosos do encarceramento feminino no estado do Rio Grande do Sul, o afrouxamento dos laços entre mães que estão presas e filhos também pode ser compreendido, em parte, porque a construção do feminino está intimamente relacionada a uma “noção” de que mulheres distinguem-se de homens pela sua capacidade reprodutiva e pelos cuidados que estas têm no mundo doméstico.

A percepção do feminino está presa a uma noção patriarcal que tem a mulher como a diferença do homem e constituída sobre um corpo cuja sexualidade é relacionada à capacidade reprodutiva. Esse modelo é associado às representações dos papéis femininos de mãe, esposa e responsável direta pelo cuidado com a família. Serve ainda de parâmetro para medir os comportamentos femininos e classificar as mulheres segundo a proximidade ou distância dos atributos que veicula. (COLARES e CHIES, 2010: 411)

Destacam os autores que esta noção é proveniente de um modelo patriarcal, mas que nos espaços prisionais possui peso analítico, uma vez que o papel de mãe fica extremamente comprometido, haja vista que as mulheres não podem exercitar a atenção e o zelo para com a família e garantir sua presença em circunstâncias essenciais para a vida dos filhos ― afinal é esta condição de “santa-mãezinha” (DEL PRIORE, 1993): da mulher formada para cuidar de sua família, da mulher considerada “certa”, segundo as normas e costumes do Brasil colônia. É a historiadora Mary Del Priore quem fala sobre a importância de se pensar a maternidade neste período histórico:

Pensar a história da maternidade na Colônia significa examinar a condição feminina à luz das relações familiares e conjugais, dos sentimentos ou da falta deles, de leis e normas, mentalidades e usos específicos da condição social e histórica do Brasil do século XVII e XVIII. Significa também perguntar em que molduras tais maternidades eram vivenciadas: se naquelas das relações conjugais lícitas ou nas consideradas ilícitas. Mas pensar a história das mães significa, sobretudo, perceber que o fenômeno biológico da maternidade, sua função social e psicoafetiva, vai transformar-se, ao longo do período, num projeto de Estado moderno e principalmente da Igreja para disciplinar as mulheres da colônia, fazendo-as partícipes da cristianização das Índias. (DEL PRIORE, 1993:45)

À mentalidade da época colonial, consolidou-se a visão do perfil de mulher desejável, a que cumpria suas “obrigações” que estavam todas voltadas para o âmbito doméstico, a saber, a de “zelar, cuidar e educar a prole diversa, acima mesmo da licitude de sua origem” (DEL PRIORE, 1993:54). Em que pese o distanciamento histórico do momento analisado pela autora e o que ora apresento, posso afirmar que, em grande medida, esta ainda é a conduta esperada para as mulheres. Ainda mais no caso das interlocutoras de meu estudo, tal comportamento surge de forma bastante introjetado, face às falas como a de Patrícia:

Nem sei se sou mãe, porque não tenho mais filha... não tô com ela pra educar, não tô com ela pra saber se tá tudo bem ou tá doente e nem pra ensinar que tem coisas na vida que por nada no mundo a gente deve fazer. Se não posso mais nada disso, então eu tenho pra mim que eu não sou mais mãe!72 (PATRÍCIA PILAR, entrevista em

02/09/2010)

Para Patrícia, é muito forte a relação entre maternidade e o cuidado físico (“pra saber se tudo bem ou tá doente”) e, também, o cuidado moral (“nem pra ensinar que tem coisas na vida que por nada no mundo a gente deve fazer”), uma circunstância que vejo como sendo próprio de nosso contexto social, embora instituído há tempo, no período do Brasil colônia.

Existe um “esforço” da parte das agentes para mostrar as mulheres do CRF que o afastamento de seus filhos é necessário ― principalmente, lembrando que é necessário fazer a revista íntima nas crianças antes delas entrarem para fazer a visita ― e, embora seja algo garantido por lei, os espaços de convívio se tornam projeto sempre adiado por parte da instituição e o principal argumento para justificar tal adiamento é que o sistema tem um déficit de vagas que cresce a cada dia. Por isso, os espaços físicos que existem hoje no CRF e que poderiam ser destinados para a convivência entre mães e filhos são sempre destinados para a construção de novas celas, no intuito de minimizar a superlotação que o estabelecimento vive ― portanto, para mais mães longe dos filhos.

Assim, embora haja dispositivo legal para a convivência e a continuidade de laços familiares das mulheres, estes não são concretizados face a eterna deficiência do sistema em atender à demanda de vagas num sistema cujo ingresso cresce em progressão geométrica. Logo, os espaços físicos existentes são disputados sempre entre os projetos previstos na lei e a realidade que demonstra o aumento no número de encarceradas.

72 Lembro aqui que, excluindo a situação de detenta de Patrícia, quantas mães, por razões outras, não poderiam

Esse elemento ― o afastamento dos filhos e da família ― constrói para as mulheres sentenciadas uma espécie de cárcere simbólico, pois tanto a discreta imposição de não pedir a visita dos filhos ou não “facilitar” a entrada dos mesmos, quanto o sentimento de não se perceber mais enquanto mãe são construções de punições que excedem a sentença e as levam a redimensionar, quase sempre de modo negativo, sua atuação como mãe.