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1. LITERATURA E FOTOGRAFIA: um diálogo possível

1.3 ABORDAGEM DO TEMPO EM INSTANTES FOTOGRÁFICOS E

1.3.2 De um tempo isolado a um tempo perpetuado

“[...] a fotografia me diz a morte no futuro. O que me punge é a descoberta dessa equivalência. Diante da foto de minha mãe, eu me digo: ela vai morrer: estremeço” (BARTHES, 2012, p. 87). “Na Fotografia, a imobilização do Tempo só ocorre de um modo excessivo, monstruoso: o Tempo é obstruído. [...] a própria essência de uma interrupção. [...] não somente a Foto jamais é, em essência, uma lembrança, [...] mas também ela a bloqueia, torna-se rapidamente uma contralembrança” (BARTHES, 2012, p. 84).

Há na fotografia, em sua construção e em um sentido técnico, formas de retratar a passagem do tempo. Para controlar a luz que entra pela lente da câmera, recorre-se ao chamado triângulo da fotografia: abertura do diafragma (tamanho da abertura da lente/objetiva), velocidade do obturador (tempo de exposição) e ASA/ISO (sensibilidade do sensor). Na regulagem desses elementos, pode-se criar efeitos diferentes em uma imagem e, quando se trata de gerar efeitos de tempo, pode-se recorrer ao congelamento do movimento ou decidir por borrá-lo, dependendo das velocidades de obturador escolhidas no instante fotográfico:

Velocidades de obturador baixas e exposições mais longas podem retratar o movimento de objetos pelo quadro, criando borrões etéreos que seguem movimento do assunto. Quando um item está imóvel e outros estão se movendo, exposições longas criam uma diferença fascinante entre o único objeto imóvel e as correntes visíveis de movimento em torno dele. Velocidades de obturador altas [...] já produziram imagens únicas que param o tempo e nos permitem analisar fenômenos até então não registrados, como a passagem de uma bala através de uma fruta ou o estouro de um balão. [...] o assunto é congelado em um mundo dinâmico e borrado. O fascínio que a maneira como a câmera parece parar o tempo exerce é inesgotável (PRÄKEL, 2013, p. 121).

Além das configurações técnicas no equipamento fotográfico, que possibilitam congelar, enfatizar ou borrar o tempo, a forma como os elementos fotografados serão dispostos na imagem também possibilita a criação de efeitos de movimento, de passagem do tempo e/ou

de estaticidade. São exemplos as curvas dispostas em diagonal, que criam efeitos de movimento, ou ainda o lugar em que os objetos estão dispostos no enquadramento.

Barthes descreve uma situação vivenciada por ele e que serviram de motivações para uma reflexão teórica sobre fotografia. Em uma noite de novembro, e logo após a morte de sua mãe, o autor encontra-se diante de fotografias em que ela aparecesse retratada. Ao visualizar determinadas imagens, Barthes percebe que não se deparou com fotos “boas”, nem tecnicamente bem construídas, muito menos que possibilitassem mostrar determinada face ou alma que ele gostaria de enxergar nos retratos de sua mãe. Em uma imagem, que ele chamou de “Fotografia do Jardim de Inverno”11, algo lhe toca. Com base nessa situação, o autor retoma

uma discussão no campo da fotografia. Há aqui um retorno à essência, ao princípio formador da fotografia, ao seu referente. É a referência que fundamenta a fotografia e que confirma, de fato, que algo existiu, segundo o autor. Com essa situação particular, e esse retorno, Barthes formula a ideia do tempo presente e do tempo passado, ambos manifestados em uma única fotografia.

Além disso, um novo punctum12 surge, agora não somente como ferida, mas como o

próprio tempo. Ao ver a foto de sua mãe, ainda criança, Barthes estremece ao perceber que ela morrerá. Através da fotografia, o autor percebe que a morte se dará no futuro, mas já, então, retratada em seu passado e viva em seu presente. O fotógrafo que retratou sua mãe deu uma sobrevida a esta imagem, a “Fotografia do Jardim de Inverno” fixou a verdade, a verdade para Barthes: “a sobrevida dessa imagem deveu-se ao acaso de uma foto tirada por um fotógrafo do interior, que, mediador indiferente, ele próprio morto depois, não sabia que o que ele fixava era a verdade – a verdade para mim” (BARTHES, 2012, p. 100). Assim como esse fotógrafo, retratista de sua mãe, outros fotógrafos também viriam a capturar essa “morte” que, conforme aponta Barthes, é produzida na busca pela conservação da vida: “todos esses jovens que se movimentam no mundo, dedicando-se à captura da atualidade, não sabem que são agentes da Morte” (BARTHES, 2012, p. 85).

11 Trata-se de uma imagem em sépia datada de 1898. Sua mãe, com cinco anos de idade, junto de seu irmão, com sete anos, encontram-se em meio a folhagens do jardim de inverno com teto de vidro, na casa em que a mãe de Barthes nascera. “Essa fotografia reunia todos os predicados possíveis de que se constituía o ser de minha mãe” (BARTHES, 2012, p. 66). No entanto, essa fotografia não é mostrada por Barthes em seu livro e a justificativa disso se dá justamente porque: “Não posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno. Ela existe apenas para mim. Para vocês, não seria nada além de uma foto indiferente, uma das mil manifestações do ‘qualquer’; ela não pode em nada constituir o objeto visível de uma ciência; não pode fundar uma objetividade, no sentido positivo do termo; quando muito interessaria ao studium de vocês: época, roupas, fotogenia; mas nela, para vocês, não há nenhuma ferida” (BARTHES, 2012, p. 70).

12 O tempo como punctum, segundo Barthes: “Sei agora que existe um outro punctum (um outro ‘estigma’) que não o ‘detalhe’. Esse novo punctum, que não é mais de forma, mas de intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (‘isso-foi’), sua representação pura” (BARTHES, 2012, p. 87).

Na teorização barthesiana, há nas fotografias um esmagamento do tempo. Passado e presente se fundem em um só tempo. O “isso-foi”, caracterizado como o novo punctum, junta- se ao “isso é”. Em fotografias antigas ou históricas, esse punctum se faz presente e pode ser observado como um tempo esmagado: “nela há sempre um esmagamento do Tempo: isso está morto e isso vai morrer” (BARTHES, 2012, p. 88). Esse tempo passado presente na fotografia também traz consigo em um só tempo o real, categorizado como o “isso foi”, que confirma que algo de fato aconteceu, ao mesmo instante que traz consigo a verdade, pois “isso é”:

[...] a imobilidade da foto é como resultado de uma confusão perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que eterno; mas ao deportar esse real para o passado (‘isso foi’), ela sugere que ele já está morto (BARTHES, 2012, p. 74).

Diferente da pintura, por exemplo, em que algo pode ser criado, construído e representado da maneira que melhor convém ao pintor, sem a necessidade de veracidade, na fotografia “jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há uma dupla posição conjunta: de realidade e de passado” (BARTHES, 2012, p. 72). Barthes afirma, então, que a fotografia não faz rememorar o passado, ela não restitui o que é abolido, mas ela atesta que aquilo que se vê na imagem realmente existiu:

O noema da Fotografia será então: ‘Isso-foi’ [...] isso que vejo encontrou-se lá, nesse lugar que se estende entre o infinito e o sujeito (operator ou spectator); ele esteve lá, e todavia de súbito foi separado; ele esteve absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto já diferido (BARTHES, 2012, p. 72-73).

Roland Barthes, em A câmara clara, além de uma proposta conceitual em torno do spectator e operator e do studium e do punctum, conforme trazidos anteriormente, propõe pensar a questão de tempo retratado na fotografia. O autor, então, situa a fotografia em dois momentos: o tempo presente, ou seja, o momento do clique, o instante captado, e o tempo passado, referindo-se ao tempo detido, à memória. Com esses dois tempos situados em uma mesma fotografia, Barthes conclui que a fotografia é a própria morte, pois há uma memória viva daquilo que um dia existiu. Lembre-se que Barthes introduziu essa ideia de morte ao tempo fotográfico justamente ao analisar uma fotografia de sua mãe, ainda criança, e a seguinte constatação é colocada diante da imagem: “ela está morta”.

A proposta apresentada por Dubois (2012) também ocupa um espaço na discussão em torno do tempo na fotografia. A questão temporal fotográfica é trazida pelo autor como um “golpe”, como um “corte temporal” que corta a continuidade do tempo. O instante fotográfico,

o momento do clique é exatamente o instante em que o tempo é capturado, em frações de segundo, e congelado, tornando-se estático. Paralisa-se, portanto, o tempo contínuo. Fora do quadro, o tempo continua o seu ritmo, o seu fluxo. Continua a passar. Porém, no exato momento em que a cortina do obturador é fechada, em que o instante é fisgado pela câmera, tem-se um golpe, um corte no tempo, e uma imagem que “interrompe, detém, fixa, imobiliza, destaca, separa a duração” (DUBOIS, 2012, p. 161). Nesse instante é instaurado “uma espécie de fora do tempo” (DUBOIS, 2012, p. 163). O tempo contínuo transforma-se, no ato fotográfico, em outro tempo, paralisado, estático:

Como tal, indissociável do ato que a faz ser, a imagem fotográfica não é apenas uma impressão luminosa, é igualmente uma impressão trabalhada por um gesto radical que a faz por inteiro de uma só vez, o gesto do corte, do cut, que faz seus golpes recaírem ao mesmo tempo sobre o fio da duração e sobre o contínuo da extensão. [...] A foto aparece dessa maneira, no sentido forte, como uma fatia, uma fatia única e singular de espaço-tempo, literalmente cortada ao vivo. Marca tomada de empréstimo, subtraída de uma continuidade dupla. Pequeno bloco de estando-lá, pequena comoção de aqui-agora, furtada de um duplo infinito (DUBOIS, 2012, p. 161 – grifos do autor).

Em “O golpe do corte – A questão do espaço e do tempo no ato fotográfico”, Dubois (2012) apresenta algumas observações ligadas ao instante fotográfico e o tempo. Uma dessas reflexões em relação ao corte temporal diz respeito a uma temporalidade paradoxal presente. Paradoxal pois, ao mesmo tempo em que se tem uma ruptura no tempo contínuo, através de uma fração de segundos fixada e congelada em uma imagem, transformando-se em um outro tempo, tem-se também um outro tempo em conjunto com este: a perpetuação do objeto fotografado; da situação retida, capturada do seu referente situado em um tempo contínuo, transformado em “instante perpétuo: uma fração de segundo, decerto, mas ‘eternizada’, captada de uma vez por todas, destinada (também) a durar, mas no próprio estado em que ela foi captada e cortada” (DUBOIS, 2012, p. 168). Segundo o autor:

[...] o fragmento de tempo isolado pelo gesto fotográfico, a partir do momento em que é capturado pelo dispositivo, tragado pelo buraco (pela caixa) negro(a), passa de um só vez, definitivamente, para o “outro mundo” [...] Abandona o tempo crônico, real, evolutivo, o tempo que passa como um rio, nosso tempo de seres humanos inscritos na duração, para entrar numa temporalidade nova, separada e simbólica, a da foto: temporalidade que também dura, tão infinita (em princípio) quanto a primeira, mas infinita na imobilidade total, congelada na interminável duração das estátuas (DUBOIS, 2012, p. 168 – grifos do autor).

Há, nessa passagem de tempo, do real transpassado pela lente e congelado, eternizado, uma transposição temporal. Uma transposição que, segundo Dubois (2012), não apresenta perda, mas que ocorre de uma maneira positiva no ato fotográfico:

O ato fotográfico implica, portanto, não apenas um gesto de corte na continuidade do real, mas também a ideia de uma passagem, de uma transposição irredutível. Ao cortar, o ato fotográfico faz passar para o outro lado (da fatia); de um tempo evolutivo a um tempo petrificado, do instante à perpetuação, do movimento à imobilidade, do mundo dos vivos ao reino dos mortos, da luz às trevas, da carne à pedra (DUBOIS, 2012, p. 168).

Enquanto Barthes, ao ver uma fotografia de sua mãe ainda criança, constata que Ela está morta!, Dubois decreta: “cortar o vivo para perpetuar o morto”13, ou ainda: “salvá-lo do

desaparecimento fazendo-o desaparecer” (DUBOIS, 2012, p. 169). No entanto, em direção oposta a essas discussões, encontram-se, ainda na época do surgimento da fotografia, bem como em tempos de aperfeiçoamento técnico, fotógrafos sendo contratados para deixar para a posteridade um único retrato de um ente querido, mesmo esse já estando morto. O princípio disso estava inserido na ideia de fotografar o morto para mantê-lo vivo, para eternizá-lo. Para Sontag (2004, p. 85), a fotografia é “o inventário da mortalidade. Basta, agora, um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia póstuma”. Pois bem, Barthes ouvira, certa vez, em um café, a seguinte frase: “Olhe como são apagados; hoje em dia, as imagens são mais vivas que as pessoas” (BARTHES, 2012, p. 106).