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1. LITERATURA E FOTOGRAFIA: um diálogo possível

1.2 MUNDOS INVENTIVOS, VICISSITUDES TRAMADAS

1.2.2 Espelho, transformação ou traço: a realidade retratada e inventada

“Mas a força das imagens fotográficas provém de serem elas realidades materiais por si mesmas, depósitos fartamente informativos deixados no rastro do que quer que as tenha emitido, meios poderosos de tomar o lugar da realidade – ao transformar a realidade numa sombra. As imagens são mais reais do que qualquer um poderia supor” (SONTAG, 2004, p. 196).

A fotografia (ao menos a jornalística e a documental) é composta por um sistema comunicacional que envolve três elementos: emissor, mensagem e receptor. Enquanto elemento comunicacional, a mensagem fotográfica se apresenta, para Barthes, como um paradoxo. Em “A mensagem fotográfica”, ensaio escrito em 1961, e que integra o livro O óbvio e o obtuso, o autor afirma que a fotografia não é o real, mas um análogo perfeito do real, e que esta apresenta uma mensagem sem código:

É bem verdade que a imagem não é o real, mas é, pelo menos, o seu analogon perfeito, e é precisamente esta perfeição analógica que, para o senso comum, define a fotografia. Surge, assim, o estatuto próprio da imagem fotográfica: é uma mensagem sem código; proposição de que se deduz imediatamente um importante corolário: a mensagem fotográfica é uma mensagem contínua (BARTHES, 1990, p. 12-13).

A fotografia, ligada diretamente ao seu análogo, disporia de uma mensagem sem código e, portanto, denotada. Para Barthes, por ser uma mensagem denotada, uma descrição desta seria impossível, em vista de que a essa primeira mensagem, uma segunda seria atribuída, com um caráter conotativo. Como resultado, obteria uma ressignificação dessa estrutura inicial, dessa mensagem inicial:

[...] de todas as estruturas de informação, a fotografia seria a única a ser exclusivamente constituída por uma mensagem “denotada” que esgotaria totalmente seu ser; diante de uma fotografia, o sentimento de “denotação”, ou de plenitude analógica, é tão forte, que a descrição de uma fotografia é, ao pé da letra, impossível; pois que descrever consiste precisamente em acrescentar à mensagem denotada um relais ou uma segunda mensagem, extraída de um código que é a língua, e que constitui, fatalmente, qualquer que seja o cuidado que se tenha para ser exato, uma conotação em relação ao análogo fotográfico: descrever, portanto, não é somente ser inexato ou incompleto; é mudar de estrutura, é significar uma coisa diferente daquilo que é mostrado (BARTHES, 1990, p. 13-14).

O paradoxo da mensagem fotográfica surge ao voltar-se para o emissor e o receptor da mensagem, e tendo como resultado uma dualidade de mensagens, consistindo, então, em uma “coexistência de duas mensagens: uma sem código (seria o análogo fotográfico) e a outra codificada (o que seria a ‘arte’ ou o tratamento, ou a ‘escritura’, ou a retórica da fotografia)”(BARTHES, 1990, p. 14). O “corte”, o ponto de vista, a tomada de câmera, no momento do clique, e o tratamento e a manipulação da imagem, na pós-produção, por exemplo, são atos que envolvem a decisão de quem fotografa, e que, portanto, pode tornar o real na fotografia como algo manipulável e variável conforme a escolha do fotógrafo.

O caráter conotativo da mensagem fotográfica diz respeito tanto às decisões tomadas pelo fotógrafo no ato fotográfico quanto à recepção da imagem pelo observador, que decifrará, interpretará e ressignificará ao seu modo essa imagem. A mensagem, enquanto denotada, “sendo absolutamente analógica, isto é, impossibilitada de recorrer a um código, sendo contínua, não cabe procurar as unidades significativas da primeira mensagem” (BARTHES, 1990, p. 15). Já a mensagem conotada, ao contrário, “comporta um plano de expressão e um plano de conteúdo, significantes e significados: obriga, assim, a uma verdadeira decifração” (BARTHES, 1990, p. 15). O autor, então, apresenta esse paradoxo na mensagem fotográfica que ora pode ser lida como uma mensagem sem código (denotada), ora como uma mensagem interpretada, ressignificada, decodificada (conotada) em sua recepção.

Alguns anos mais tarde, em 1979, Barthes volta a refletir sobre a fotografia, porém ocupando o espaço de espectador. Em A câmara clara, o autor narra a sua experiência como spectator, conforme a sua denominação, e vê a fotografia como indissociável do seu real, do seu referente:

Tal foto, com efeito, jamais se distingue de seu referente (do que ela representa), ou pelo menos não se distingue dele de imediato ou para todo mundo [...]: perceber o significante fotográfico não é impossível (isso é feito por profissionais), mas exige um ato segundo de saber ou de reflexão. Por natureza, a Fotografia [...] tem algo de tautológico: um cachimbo, nela, é sempre um cachimbo, intransigentemente. Diríamos que a Fotografia sempre traz consigo seu referente, ambos atingidos pela

mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento: estão colados um ao outro, membro por membro (BARTHES, 2012, p. 14-15).

Ao vislumbrar a fotografia como sendo inclassificável, Barthes compreende que essa desordem se dá pelo fato da captura de uma cena, a reprodução do objeto pela câmera fotográfica ocorre apenas uma única vez: “ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (BARTHES, 2012, p. 14). Outro motivo para essa desordem diz respeito ao fato de a fotografia ser sempre invisível, já que ela traz sempre o seu referente, é ele que se vê e não a foto, segundo o autor. “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos. Em suma, o referente adere” (BARTHES, 2012, p. 15-16).

Ao apreender a fotografia como indissociável do seu referente, como inclassificável e invisível, Barthes se volta para uma análise fotográfica a partir de um interesse particular que o autor mantinha por algumas fotos, já que, diante de tais imagens, algumas o tocavam, e outras faziam com que ficasse indiferente diante delas. Um de seus interesses está relacionado ao que ele chamou de studium, ligado ao campo cultural do espectador. O segundo elemento é o punctum, que, diferente do primeiro, não é buscado pelo espectador, mas que vem até ele e o atinge como uma flecha. No campo do studium, o espectador percebe e compreende o quadro culturalmente. É dessa forma, que, segundo Barthes, o espectador participa “das figuras, das caras, dos gestos, dos cenários, das ações” (BARTHES, 2012, p. 31). Para o autor, ao entrar no campo do studium e o reconhecer, entra-se também em contato com as intenções do fotógrafo, o operator. A partir da cultura, daquilo que é entendido pelo espectador, é que se forma um “contrato feito entre os criadores e os consumidores” (BARTHES, 2012, p. 33):

O studium é o campo muito vasto do desejo indolente, do interesse diversificado, do gosto inconsequente: gosto / não gosto, I like / I don’t. O studium é da ordem do to like, e não do to love; mobiliza um meio desejo, um meio querer; é a mesma espécie de interesse vago, uniforme, irresponsável, que temos por pessoas, espetáculos, roupas, livros que consideramos “distintos” (BARTHES, 2012, p. 33).

Enquanto o primeiro, o studium, é o todo, o geral, visto em uma fotografia; o segundo, o punctum, é o particular, sendo, portanto, “pontos sensíveis”, como o autor conceituou, detalhes, marcas, feridas: “punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (BARTHES, 2012, p. 33). Ao punctum cabe o “entregar-me” (BARTHES, 2012, p. 47). Já ao studium, “interesso-me com simpatia, como

bom sujeito cultural, pelo que a foto diz, pois ela fala. [...] O espetáculo me interessa, mas não me “punge” (BARTHES, 2012, p. 47).

Além disso, Barthes (2012) compara o campo de visão apreendido no cinema a um “campo cego” em que a tela não seria “um enquadramento, mas um ‘esconderijo’; o personagem que sai dela continua a viver: um ‘campo cego’ duplica incessantemente a visão parcial” (BARTHES, 2012, p. 57). Na fotografia, ao menos no campo do studium, esse “campo cego”, para Barthes, não existe: “tudo que se passa no interior do enquadramento morre de maneira absoluta, uma vez ultrapassado esse enquadramento” (BARTHES, 2012, p. 57).

Mas no punctum, esse “campo cego” é criado. Aquilo que o toca, que o punge, não está pronto ou não está como objeto central. É algo que é levado para fora do enquadramento: “o punctum é, portanto, uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (BARTHES, 2012, p. 58). Apesar de analisar esses elementos separadamente (ou a foto está no campo do studium, somente, ou a foto contém o punctum, somente) Barthes visualiza os dois elementos coexistindo em uma mesma fotografia, possibilitando uma “copresença” (BARTHES, 2012, p. 45), ainda que, segundo ele, raramente.

Associar a fotografia com o seu referente também é de interesse de Philippe Dubois, que acredita ser fundamental a relação entre o referente externo à fotografia e a mensagem por ela produzida. A fotografia, originária de um processo que envolve química e física, a ótica, e portanto, para a sua existência necessita de luz, dá-se, à fotografia, um status de real, pois a sua construção depende desse traço de real, ou seja, da própria luz. “Inimiga mortal da pintura” para Baudelaire, conforme informa Sontag (2004, p. 160), a fotografia, desde o seu surgimento e como uma nova ferramenta para apreender e representar o mundo, adquiriu o prestígio de mostrar aquilo que a pintura não era capaz de fazer, atestando, muitas vezes, a ideia de veracidade dos fatos. A discussão entre fotografia e pintura não se limita, nem se restringe somente a essa questão. Vale o resgate de uma passagem que demonstra essas divergências a partir da pintura Corrida de cavalos em Epsom (1821), de Théodore Géricault, e a sequência fotográfica Movimento de um cavalo a galope (1872), de Eadweard Muybridge:

Sucessivas gerações viram cavalos galopando, assistiram a corridas e caçadas de montaria, deleitaram-se com pinturas e gravuras que mostram cavalos desfilando, em plena carga em batalha, ou correndo atrás de galgos. Nenhuma dessas pessoas parece ter notado ‘o que realmente se vê’ quando um cavalo corre. Pinturas e gravuras esportivas usualmente mostraram-nos de pernas esticadas em pleno voo – como Théodore Géricault, o grande pintor francês do século XIX, os pintou numa famosa representação das corridas no hipódromo de Epsom. Cerca de 50 anos mais tarde, quando a máquina fotográfica foi suficientemente aperfeiçoada para obter fotografias de cavalos em rápido movimento, essas fotos provaram que tanto os pintores quanto o público estavam errados o tempo todo. Jamais um cavalo a galope se move do modo

que nos parece tão ‘natural’. Quando as pernas se erguem do chão, movimentam-se alternadamente para o impulso seguinte. Se refletirmos por um instante, concluiremos que dificilmente o animal poderia avançar de outro modo. Entretanto, quando os pintores começaram a aplicar essa nova descoberta, e pintaram cavalos correndo como realmente correm, choveram reclamações de que as imagens pareciam esquisitas, erradas (GOMBRICH, 2008, p. 27-28).

Imagem 1 – “Corrida de cavalos em Epsom” (1821), de Théodore Géricault

Fonte: Warburg – Banco Comparativo de Imagens – Unicamp. Disponível em: <http://warburg.chaa- unicamp.com.br/artistas/view/120>. Acesso em: 26 dez. 2017.

Imagem 2 – “Movimento de um cavalo a galope” (1872), de Eadweard Muybridge

Fonte: Por trás da objetiva. Disponível em: <https://andreamerico.wordpress.com/2011/05/04/uma- aposta-um-cavalo-um-fotografo-e-a-invencao-do-cinema/>. Acesso em: 26 dez. 2017.

Como senso comum, tem-se a fotografia como prova de que algo de fato aconteceu. Dubois (2012) traz como exemplo os relatos de uma pessoa que acaba de voltar de viagem e que, para impressionar, traz narrativas hiperbólicas. Já a fotografia “não pode mentir [...] a foto é percebida como uma espécie de prova, ao mesmo tempo necessária e suficiente, que atesta indubitavelmente a existência daquilo que mostra” (DUBOIS, 2012, p. 25). Dubois traz uma distinção entre fotografia e pintura:

Ali onde o fotógrafo corta, o pintor compõe; ali onde a película fotossensível recebe a imagem (mesmo que seja latente) de uma só vez por toda a superfície e sem que o operador nada possa mudar durante o processo (apenas no tempo da exposição), a tela a ser pintada só pode receber progressivamente a imagem que vem lentamente nela se construir, toque por toque e linha por linha, com paradas, movimentos de recuo e aproximação, no controle centímetro por centímetro da superfície, com esboços, rascunhos, correções, retomadas, retoques, em suma, com a possibilidade de o pintor intervir e modificar a cada instante o processo de inscrição da imagem. Para o fotógrafo, há apenas uma operação a fazer, a opção única, global e que é irremediável. Pois uma vez dado o golpe (o corte), tudo está dito, inscrito, fixado. Ou seja, não é mais possível intervir na imagem que se está fazendo. Se são possíveis manipulações [...] estas ocorrerão depois do golpe (do corte) e justamente tratando a foto como uma pintura (DUBOIS, 2012, p. 167).

Como adendo, cabe salientar que tanto as escolhas feitas pelo fotógrafo no instante do clique (a forma com que esse se posiciona diante do tema, o seu ângulo de visão, bem como o enquadramento escolhido) quanto, em tempos de fotografia digital, uma maior facilidade de retoque, tratamento ou mesmo manipulação dessas imagens, fazem com que a objetividade seja posta em jogo, contrariando, assim, o que o senso comum acredita[va] ser, como mostrado anteriormente. Em O ato fotográfico (2012), buscando analisar a ideia de real no âmbito da fotografia, bem como os modos de representação do real, Dubois parte de três perspectivas: a fotografia como espelho do real, a fotografia como transformação do real e a fotografia como traço de um real.

A primeira corrente parte da concepção da fotografia como espelho do real, visualizando-a como “a imitação mais perfeita da realidade” (DUBOIS, 2012, p. 27), ou seja, como um espelho do mundo. Esse ponto de vista, tido como o primeiro discurso da fotografia, amplamente discutido desde o surgimento do advento fotográfico, relaciona a mímesis com a própria forma de captura e registro: a sua estrutura mecânica. A partir dessa estrutura da câmera, existe a possibilidade de “fazer aparecer uma imagem de maneira ‘automática’, ‘objetiva’, quase ‘natural’ (segundo tão-somente as leis da ótica e da química), sem que a mão do artista

intervenha diretamente” (DUBOIS, 2012, p. 27). Artistas8 do século XIX, a partir da concepção

da imagem criada de forma automática e mecânica, criticaram o uso dessa indústria técnica, justamente porque o criador estaria a serviço da máquina, distanciando-se, assim, de sua criação9. A ideia de gênio criador, de obra única, sem a possibilidade de reprodução, almejada somente com a pintura, conforme os defensores da arte clássica, faz com que a crítica se volte à fotografia no século XIX, distanciando-a da obra de arte, e classificando-a como um produto da indústria.

Dentro dessa primeira concepção apresentada por Dubois, a fotografia é vista como um instrumento de uma memória documental do real, e em que não é permitido atingir a esfera do imaginário, conforme é percebido no argumento de Baudelaire ao se referir à fotografia:

Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que falta à sua memória, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscópicos, fortaleça até com algumas informações as hipóteses do astrônomo; que seja finalmente a secretária e o caderno de notas de alguém que tenha necessidade em sua profissão de uma exatidão material absoluta, até aqui não existe nada melhor. Que salve do esquecimento as ruínas oscilantes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma desaparecerá e que necessitam de um lugar nos arquivos de nossa memória, seremos gratos a ela e iremos aplaudi-la. Mas se lhe for permitido invadir o domínio do impalpável e do imaginário, tudo o que só é válido porque o homem lhe acrescenta a alma, que desgraça para nós! (BAUDELAIRE apud DUBOIS, 2012, p. 29 – grifos do autor).

Já na segunda corrente apresentada por Dubois, a fotografia é estudada como transformação do real, que consiste em mostrar a imagem não mais como cópia exata do real, mas como “uma interpretação-transformação do real, como uma formação arbitrária, cultural, ideológica e perceptualmente codificada” (2012, p. 53). Essa corrente, contrária à ideia de mímesis e espelho do mundo, ou seja, em oposição ao primeiro discurso, recebe um maior espaço nas discussões do século XX, apesar de já se apresentar em discussões ainda no século XIX, porém de modo menor e apagado, e não com tanta força e vigor como no século XX, conforme ressalta Dubois. Teóricos e críticos “sublinham que a foto é eminentemente codificada (sob todos os tipos de ponto de vista: técnico, cultural, sociológico, estético etc.)” (DUBOIS, 2012, p. 37) e, portanto, não acarreta um efeito de real, mas uma verdade interior. A partir dessa concepção, os estudos voltam-se para “discursos desconstrutores do efeito de

8 Cabe salientar que essa discussão foi mais forte em pintores classicistas e academicistas, já que muitos pintores se tornaram também fotógrafos. Além disso, os impressionistas incluíram em seus trabalhos a arte da fotografia e compartilhavam do advento fotográfico.

9 Walter Benjamin traz argumentos mais otimistas em relação à forma como a reprodução era realizada pela fotografia. Para Benjamin, em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1994), apesar da aura se perder em tempos de reprodutibilidade técnica, a fotografia possibilitava uma libertação da arte.

real” (DUBOIS, 2012, p. 41), direcionando para três perspectivas: para as teorias da percepção; para o discurso com um caráter ideológico; e para os discursos em relação aos usos antropológicos da foto, conforme será mostrado a seguir.

Sobre os elementos que são perceptíveis na fotografia, como questões técnicas e ligadas à linguagem e composição, têm-se algumas questões, amplamente discutidas no universo fotográfico e trazidas por Dubois: o mundo apresentado na imagem mostra-se conforme a escolha, a visão, o ponto de vista, o ângulo de tomada do fotógrafo. O mundo capturado e apresentado em uma fotografia dá-se a partir de uma redução (de perspectiva e de tamanho dos objetos, por exemplo) e de variação de cores (alteração de tons e/ou impossibilidade de captura de toda uma escala de cinzas em uma foto em preto e branco, por exemplo). Também tem-se a forma bidimensional da fotografia, diferente do mundo externo à imagem, que é tridimensional. Algumas técnicas possibilitam a criação de um efeito de uma terceira dimensão, como a sombra de um objeto, mas ainda assim continuará sendo um efeito criado com esse objetivo. Além disso, a fotografia está impossibilitada de capturar outras sensações senão a visual, em que se isola “um ponto preciso do espaço-tempo e é puramente visual [...] excluindo qualquer outra sensação olfativa ou tátil” (DUBOIS, 2012, p. 38).

Em relação a um caráter ideológico presente na fotografia, Dubois é categórico em afirmar que “a caixa preta fotográfica não é um agente reprodutor neutro, mas uma máquina de efeitos deliberados” (DUBOIS, 2012, p. 40), e que, portanto, não “é neutra e inocente” (DUBOIS, 2012, p. 39). Já em relação aos usos antropológicos da fotografia, novamente a questão do espelho emerge, já que surge a constatação de que “todos os homens não são iguais diante da fotografia” (DUBOIS, 2012, p. 42). Isso porque a “significação das mensagens fotográficas é de fato determinada culturalmente, ela não se impõe como uma evidência para qualquer receptor, sua recepção necessita de um aprendizado dos códigos de leitura” (DUBOIS, 2012, p. 41-42).

Tem-se, nesse segundo momento da fotografia defendida como transformação do real, portanto, a defesa de uma fotografia realidade/verdade a partir do seu interior, que é inacessível, por vezes, à câmera e ao olho fotográfico, e a própria prática do retrato fotográfico aposta e “baseia-se nesse princípio de uma realidade ou de uma verdade interior revelada pela foto” (DUBOIS, 2012, p. 43). Isso fica evidente no trecho de Conversas com Kafka, de Gustav Janouch:

Na primavera de 1921, duas máquinas fotográficas automáticas, recentemente inventadas no exterior, foram instaladas em Praga e reproduziram seis ou sete exposições da mesma pessoa em uma mesma cópia.

Quando levei uma dessas séries de fotos para Kafka, eu disse, alegre:

- Por umas poucas coroas, qualquer pessoa pode se fazer fotografar de todos os ângulos. O aparelho é um conhece-te a ti mesmo mecânico.

- Você quer dizer um engane-te a ti mesmo - retrucou Kafka, com um ligeiro sorriso. Protestei:

- Como assim? A câmera não pode mentir!

– Quem lhe disse? – Kafka inclinou a cabeça na direção do ombro. – A fotografia concentra o olho no superficial. Por isso obscurece a vida oculta que reluz de leve através do contorno das coisas, como um jogo de luz e sombra. Não se pode captar isso, mesmo com a mais nítida das lentes. É preciso tatear com o sentimento para alcançá-la [...]. Essa câmera automática não multiplica os olhos dos homens, apenas oferece a visão de um olho de mosca fantasticamente simplificada (JANOUCH apud SONTAG, 2004, p. 221-222 – grifos do autor).

Dentro da perspectiva semiótica de Charles Peirce10, a primeira concepção, trazida aqui por Dubois, da fotografia como espelho do real, estaria na ordem do ícone, ou seja, a “representação por semelhança” (DUBOIS, 2012, p. 45). Já na segunda corrente, que tem a fotografia como transformação do real, a discussão volta-se para a ordem do símbolo, em que se dá uma “representação por convenção geral” (DUBOIS, 2012, p. 45). Na terceira concepção, diferenciando-se das duas primeiras, a discussão recai para a fotografia como traço de um real, situada na ordem do índice, e, portanto, a “representação por contiguidade física do signo com seu referente” (DUBOIS, 2012, p. 45). A ideia do índice diferencia-se das outras duas (ícone e