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1. LITERATURA E FOTOGRAFIA: um diálogo possível

1.3 ABORDAGEM DO TEMPO EM INSTANTES FOTOGRÁFICOS E

1.3.1 Deslocamentos e “jogos” temporais

“As mariposas dançavam, aturdidas, em redor dessas fontes de luz. Pareciam emergir das paredes, pedaços de cal que se destacavam dos muros e esvoaçavam enlouquecidos. Meu pai dizia que essas mariposas tinham sido, em vidas anteriores, borboletas diurnas que se apaixonaram pela sua própria beleza. Como castigo pela sua vaidade foram expulsas da luz do dia. Era por saudade do Sol que elas se suicidavam de encontro aos candeeiros. Os vidros das lamparinas eram o seu derradeiro espelho” (COUTO, 2015, p. 137).

A fim de trazer uma maior clareza em relação ao domínio da narrativa e evitar, assim, uma confusão que pode ser gerada pela ambiguidade de sentidos do termo em questão, Gérard Genette ([s.d.], p. 23) propõe uma distinção em torno do termo “narrativa”. Inicialmente, o teórico apresenta três noções distintas: a narrativa significando “o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de

acontecimentos”; a narrativa como “sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objecto desse discurso, e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição, etc.” ([s.d.], p. 24); e um terceiro sentido em que a narrativa determina um acontecimento, o “acto de narrar tomado em si mesmo” ([s.d.], p. 24). A partir dessa distinção do termo “narrativa” e dos seus diferentes significados, Genette apresenta, em relação a esse domínio, uma tríade da narratologia: a história, a narrativa e a narração:

[...] denominar-se história o significado ou conteúdo narrativo (ainda que esse conteúdo se revele, na ocorrência, de fraca intensidade dramática ou teor factual), narrativa propriamente dita o significante, enunciado, discurso ou texto narrativo em si, e narração o acto narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar (GENETTE, [s.d.], p. 25).

Tem-se, pois, a história como sendo o próprio acontecimento, os fatos, o mundo que se situa dentro do texto. Como narrativa, a forma como esse mundo é mostrado, o próprio texto; e narração, o relato, o próprio ato de contar. Assim, tendo como objeto de estudo a narrativa e o seu discurso, Genette resgata a divisão proposta por Todorov, na qual classifica em três categorias os problemas da narrativa, do tempo, do aspecto e do modo: “a do tempo, ‘onde se exprime a relação entre o tempo da história e o do discurso’; a do aspecto, ‘ou a maneira pela qual a história é percebida pelo narrador’; a do modo, isto é, ‘o tipo de discurso utilizado pelo narrador’” (GENETTE, [s.d.], p. 27). Porém, Genette propõe uma ampliação dessas categorias:

[...] as que estão ligadas às relações temporais entre narrativa e diegese, e que arrumaremos sob a categoria do tempo; as que estão ligadas às modalidades (formas e graus) da “representação” narrativa, logo aos modos da narrativa; aquelas, finalmente, que estão ligadas à forma pela qual se encontra implicada na narrativa a própria narração [...], ou seja, a situação ou instância narrativa, e, com ela, os seus dois protagonistas: o narrador e seu destinatário [...] esse termo é o de voz (GENETTE, [s.d.], p. 27).

Um dos elementos que será abordado diz respeito ao tempo no âmbito da narrativa. Esse elemento apresenta algumas implicações, como a velocidade ou a duração da narrativa e da história, bem como a ordem dos fatos, tanto na história quanto na narrativa, diferenciando-se, assim, o tempo da narração do tempo da história. Segundo Genette ([s.d.], p. 31), a narrativa é “uma sequência duas vezes temporal [...]: há o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do significante)”. A duração da narrativa pode-se dar em um tempo diferente da duração da história, ao mesmo tempo que poderá conter um maior número de detalhes, de descrições, como se as ações ocorressem ao mesmo tempo em que se narra, como também pode excluir algumas informações, encurtando o tempo da história. Trata-se,

justamente, de unir esses diferentes tempos, já que “uma das funções da narrativa é cambiar um tempo num outro tempo” (GENETTE, [s.d.], p. 31). E há diversas formas de contar uma história, com ordens e velocidades distintas:

Teoricamente, com efeito, existe uma gradação contínua desde a velocidade que é a da elipse, em que um segmento nulo de narrativa corresponde a uma qualquer duração de história, até à absoluta lentidão que é a da pausa descritiva, em que um qualquer segmento do discurso narrativo corresponde a uma duração diegética nula (GENETTE, [s/d], p. 93).

Inicialmente, ver-se-á como pode ser apresentada a velocidade do tempo e a duração da narrativa; para, em seguida, trazer-se a ordem dos fatos na história e na narrativa. Em relação à velocidade e à duração, pode-se ter, no interior de uma narrativa, diferentes formas de abordar a passagem do tempo. Já que a duração da história, ou seja, o tempo transcorrido na narrativa (horas, dias, meses, anos) difere de sua extensão, que é verificada quantitativamente, através dos números de linhas, parágrafos, páginas, pode ocorrer uma condensação do tempo, bem como pausas, com longas descrições, ou como se o tempo da narrativa apresentasse uma semelhança com o tempo da história. Analisando os ritmos da narrativa proustiana, Genette destaca uma variação temporal, ou seja, há uma “amplitude das variações, que vai de 190 páginas para 3 horas a 3 linhas para 12 anos, ou seja (muito grosseiramente) de uma página para um minuto a uma página para um século” (GENETTE, [s.d.], p. 92). Partindo de uma divisão apresentada por Genette, uma obra literária pode apresentar quatro formas diferentes de movimento narrativos: a elipse, a pausa descritiva, a cena e o sumário:

Essas quatro formas fundamentais do movimento narrativo, a que doravante chamaremos os movimentos narrativos, são os dois extremos [...] elipse e pausa descritiva e dois intermediários: a cena, na maioria das vezes “dialogada” [...] que realiza convencionalmente a igualdade de tempo entre narrativa e história, e [...] narrativa sumária, ou, de forma abreviada, sumário: forma de movimento variável (GENETTE, [s.d.], p. 94).

Em relação à elipse, tem-se o “grau máximo de aceleração, uma vez que anos podem ser condensados numa ausência de narração” (REUTER, 1995, p. 89). Aqui, alguns acontecimentos podem ser excluídos para dar lugar aos fatos mais relevantes para a história. Contrária à elipse, encontram-se as pausas descritivas, que “desenvolvem o que é apreendido num curto instante ou das intervenções do narrador que não correspondem aos acontecimentos” (REUTER, 1995, p. 89-90). Há a presença de uma lentidão, onde fatos breves podem ser apresentados de uma forma extensa, contados em minúcias. Conforme o nome sugere, há o surgimento de uma pausa em meio à história narrada, para dar atenção a algum detalhe. Na

pausa, “alguns momentos ‘nulos’ ou muito breves da ficção podem ser alvo de uma narração às vezes longa” (REUTER, 1995, p. 89-90).

Já o sumário, apresentando uma proximidade com a elipse, “condensa e resume, com poucas palavras ou algumas linhas, ele corresponde a um tempo às vezes longo da ficção” (REUTER, 1995, p. 89). Na narrativa sumária, a velocidade da narrativa é acelerada e a duração é menor que a duração da história. Já o recurso da cena busca mostrar os fatos conforme eles ocorrem, produzindo “a impressão de uma igualdade entre tempo e ficção e tempo da narração” (REUTER, 1995, p. 89). Cria-se uma ilusão de que o fato ocorre diante do leitor, e através de diálogos das personagens, tem-se a sensação de que o tempo percorrido para ler os diálogos aproximam-se do tempo que as personagens levaram para manter essas conversas.

Já em relação à ordem dos fatos dispostos na história e na narrativa, tem-se a narração dos acontecimentos apresentada em uma ordem em conformidade ao ocorrido ou de maneira contrária a essa ordem:

Estudar a ordem temporal de uma narrativa é confrontar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história, na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode ser inferida deste ou aquele indício indirecto (GENETTE, [s.d.], p. 33).

A forma como os fatos serão dispostos não necessariamente precisa ocorrer conforme os eventos se sucederam na história. Seguir uma ordem cronológica, linear, de acordo com a ocorrência dos fatos pode ocorrer, assim como não se fazer necessariamente obrigatória. Para a compreensão da ordem temporal, considerem-se as denominações apresentadas por Genette, que consistem nas chamadas anacronias, que podem se dar por retrospecção, por analepses, ou por antecipação, por prolepses. Por anacronia, tem-se, segundo Genette ([s.d.], p. 34), as “diferentes formas de discordâncias entre a ordem da história e a da narrativa”. Portanto, o entendimento, por anacronia, é a de que a ordem da história e a ordem da narrativa apresentam discrepâncias. Essas discordâncias em relação à ordem dos fatos podem ser por retrospecção ou por antecipação. Ao narrar um fato que ocorre em um tempo anterior, tem-se uma anacronia por retrospecção ou analepse. E pode ser utilizado para esclarecer algo que ocorreu anteriormente. Quando o narrador antecipa algum acontecimento, que cronologicamente só ocorreria mais tarde, tem-se uma anacronia por antecipação ou prolepse. Assim, segundo Genette, conceitua-se prolepse como sendo:

[...] toda a manobra narrativa consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior, e por analepse toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em que se está, reservando o termo geral de anacronia para designar quaisquer formas de discorâncias entre as duas ordens temporais (GENETTE, [s.d.], p. 38).

O teórico Yves Reuter, em Introdução à análise do romance (1995, p. 93), salienta que a escolha por determinada ordem temporal (ou pelo ato de enfatizar determinadas ordens) pode resultar em “jogos”, já que “os jogos com a ordem podem também ‘imitar’ as atribulações de um percurso psíquico segundo as reminiscências (histórias de vida ligadas à psicanálise) ou contestar a objetividade do real e a cronologia do romance clássico”.