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PARTE I – DE UMA LÓGICA VIOLENTA: ARQUEOLOGIA E HERMENÊUTICA

2. NAS RAÍZES HISTÓRICAS DA VIOLÊNCIA

2.2. À Pós-Modernidade

2.2.1. Na Violência em Movimento Descendente

2.2.1.1. De uma lógica global

Comecemos com o problema da Globalização, num caminho de longe para mais perto do movimento descendente. Com efeito, para Bauman (1999a, p. 67),

O significado mais profundo transmitido pela idéia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo.

Isso significa que, se não há ninguém sentado à mesa e tudo acontece de modo espontâneo e até mesmo avulso, não há também ninguém que se encarregue pela responsabilidade dos resultados finais. Essa natureza desordenada dos processos sociais mundiais acontece acima dos territórios modernamente coordenados pelo poder institucionalizado dos Estados soberanos. Com isto,

A nova “desordem mundial”, apelidada de “globalização”, tem um efeito realmente revolucionário: a desvalorização da ordem. [...] No mundo que se globaliza, a ordem se transforma no índice de falta de poder e subordinação (BAUMAN, 2008a, p. 48-49).

Esse percurso extraterritorial de um poder desordenado se impõe a todas as pessoas do planeta, sobretudo em seus efeitos, e se realiza através de forças anônimas que ninguém em particular consegue deter ou controlar. Os mercados financeiros globais, essas forças anônimas, operam num espaço extraterritorial, transmutam as economias supostamente nacionais em economias porosas e impõem suas leis e preceitos ao planeta. A globalização nada mais é que “[...] a extensão totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida” (BAUMAN, 2008a, p. 239). Os Estados não têm recursos suficientes nem liberdade de manobra para suportar a pressão – pela simples razão de que “[...] alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em colapso” (BAUMAN, 1999a, p. 73).

Isso funciona de um modo relativamente simples de entender: o Capital é mundial e é livre, está acima das legalidades internas dos Estados, não quer barreiras. Ora, se um determinado Estado tenta barrar ou impor condições administráveis de circulação ao capital extraterritorial ou transnacional, tal Estado é punido pelos mercados mundiais e sua economia impotente é exposta pelas empresas também transnacionais encarregadas de medir os índices de riscos; normalmente o primeiro efeito de punição é a retirada de assistência dos bancos mundiais. Daí a importância da fragmentação política nos Estados e a importância de Estados fracos, para não haver oposição real ao livre mercado.

Bauman, em Comunidade, rediz essas características da globalização e acrescenta outras decisivas. Com efeito,

[...] globalização significa que a rede de dependências adquire com rapidez um âmbito mundial – processo que não é acompanhado na mesma extensão pelas instituições passíveis de controle político e pelo surgimento de

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qualquer coisa que se assemelhe a uma cultura verdadeiramente global. Bem entrelaçado com o desenvolvimento desigual da economia, da política e da cultura (outrora coordenadas no quadro do Estado-nação) está a separação

do poder em relação à política; o poder, enquanto incorporado na circulação

mundial do capital e da informação, torna-se extraterritorial, enquanto as instituições políticas existentes permanecem, como antes, locais. Isto leva inevitavelmente ao enfraquecimento do Estado-nação; não mais capazes de reunir recursos suficientes para manter suas contas em dia com eficiência e de realizar uma política social independente, os governos dos Estados não têm escolha senão seguirem estratégias de desregulamentação: isto é, abrir mão do controle dos processos econômicos e culturais, e entregá-los às “forças do mercado”, isto é, às forças essencialmente extraterritoriais. O abandono daquela regulação normativa, outrora marca do Estado moderno, torna redundantes a mobilização cultural/ideológica da população, outrora estratégia principal do Estado moderno, e a evocação da nacionalidade e do dever patriótico, outrora sua principal legitimação: não servem mais a qualquer propósito perceptível. O Estado não mais preside os processos de

integração social ou manejo sistêmico que faziam indispensáveis a

regulação normativa, a administração da cultura e a mobilização patriótica, deixando tais tarefas (por ação ou omissão) para forças sobre as quais não tem jurisdição. O policiamento do território administrado é a única função deixada nas mãos dos governos dos Estados; outras funções ortodoxas foram abandonadas ou passaram a ser compartilhadas e assim são apenas em parte monitoradas pelo Estado e por seus órgãos, e não de maneira autônoma (2003, p. 89-90, grifo nosso).

A globalização tem tudo a ver com o que se chama comumente de pós-modernidade. Com efeito, no tempo da modernidade que Bauman chama de pesada, havia um compromisso entre capital e trabalho, compromisso que se autofortificava pela mútua dependência entre ambos. Isso quer dizer que os trabalhadores dependiam de empregos para terem o sustento e o capital dependia de trabalhadores para sua reprodução e crescimento. Nesse tempo, a fábrica era tanto a residência do capital quanto do trabalho, lugar de aumento do capital e o lugar das esperanças e sonhos dos trabalhadores. Ora,

Essa situação mudou e o ingrediente crucial da mudança é a nova mentalidade de “curto prazo” que veio substituir a de “longo prazo”. [...] “Flexibilidade” é o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho significa fim do emprego, [...] trabalhar com contratos de curto prazo, contratos precários, cargos sem estabilidade (BAUMAN, 2003, p. 35-36). Isso quer dizer que a modernidade se fez liquefeita, fluente, espalhada e executa o rompimento entre capital e trabalho, ou melhor, o capital rompe sua dependência por relação ao trabalho através de uma liberdade de movimento jamais sonhada. Sem ninguém para opor resistência e podendo se locomover abertamente, desvinculando-se de regras referentes aos processos do trabalho, instaura-se globalmente um regime de dominação que “[...] mostra-se cada vez mais violento e imprevisível, aumentando desse modo a vulnerabilidade das regiões, das nações e dos grupos sociais subordinados e oprimidos” (SANTOS, 2008, p. 192). Isso implica simplesmente o abandono da justiça social como referente último da convivência

social. E assim, “A desregulamentação, que resulta na anarquia planetária, e a violência armada se alimentam mutuamente, assim como se reforçam e revigoram mutuamente” (BAUMAN, 2007a, p. 14). E as instituições locais, o que acontece com elas? Ora, elas se sentem e se experienciam como se estivessem em luta numa guerra que não podem vencer, tendo que – na prática – subordinar a política social à política econômica transnacional.

Com seu jeito direto de reagir, Forrester (1997, p. 136) sentencia:

Se a ferocidade social sempre existiu, ela tinha limites imperiosos, porque o trabalho oriundo das vidas humanas era indispensável para aqueles que detinham o poder. Ele não o é mais; pelo contrário, tornou-se incômodo. [...] Jamais o conjunto dos seres humanos foi tão ameaçado na sua sobrevivência. [...] Pela primeira vez, a massa humana não é mais necessária materialmente, e menos ainda economicamente, para o pequeno número que detém os poderes e para o qual as vidas humanas que evoluem fora de seu círculo íntimo só têm interesse, ou mesmo existência, de um ponto de vista utilitário. Ou seja,

Está instalada a era do (neo) liberalismo, que soube impor sua filosofia sem ter realmente que formulá-la e nem mesmo elaborar qualquer doutrina, de tal modo estava ela encarnada e ativa antes mesmo de ser notada. Seu domínio anima um sistema imperioso, totalitário em suma, mas, por enquanto, em torno da democracia e, portanto, temperado, limitado, sussurrado, calafetado, sem nada de ostentatório, de proclamado. Estamos realmente na violência da calma (FORRESTER, 1997, p. 45).

O lucro continua pairando por sobre a totalidade da vida, das esferas do acontecimento humano e as penetra de tal forma que se torna um pressuposto tão evidente que não entra no rol daquilo que ainda precise ser justificado. Tudo é organizado, previsto, proibido e suscitado em razão dele, que dessa maneira parece inevitável, como que fundido à própria condição da vida, a ponto de não se distinguir dela. As operações de lucro são feitas à vista de todos, mas nem por isso a lucratividade é vista por todos.

A forma como o neoliberalismo transnacional se ativa implica que

Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida. Para obter a faculdade de viver, para ter meios para isso, eles precisariam responder às necessidades das redes que regem o planeta, as redes dos mercados (redes econômicas privadas, transnacionais). Ora, eles não respondem [...]. Sua vida, portanto, não é mais “legítima”, mas tolerada (FORRESTER, 1997, p. 27).

Nisto Forrester converge plenamente com a posição de Dufour (2005, p. 24): “[...] o advento da pós-modernidade não deixa de ter relação com o advento do que hoje evocamos com o nome de neoliberalismo”. Para Dufour, a partir da década de sessenta do século passado, o novo capitalismo descobriu e impôs uma maneira muito menos constrangedora e menos onerosa de garantir a sua continuidade com ampliação de domínio: não mais continuar

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a reforçar a dominação segunda que produzia sujeitos submissos (das instituições sobre os indivíduos, como nas fábricas), mas quebrar as instituições e assim encarregar-se plenamente da dominação primeira, de maneira a obter indivíduos dóceis, precários, instáveis, abertos a todos os modos e todas as variações do mercado.

Para o neoliberalismo, o importante é que as mercadorias circulem. Para isso é decisivo que nenhuma instituição – sobretudo com referências culturais e morais – se interponha entre os indivíduos e as mercadorias. É certamente isso que faz dele um neo- liberalismo. Não é difícil compreender o cantado discurso de que é preciso não apenas menos Estado, mas menos de tudo o que poderia entravar a circulação da mercadoria, numa relação direta entre controle sem empecilhos da economia e domínio universal dos indivíduos.

Bauman (2008a, p. 72-73) indica o desdobrar-se dessa lógica:

As sociedades que um dia lutaram para que seu mundo se tornasse transparente, à prova de perigos e livre de surpresas, agora encontram suas capacidades de atuação atadas aos anônimos mutáveis e imprevisíveis de forças misteriosas, como as finanças mundiais e as bolsas de valores, ou observam de maneira impotente, sem serem capazes de fazer muito, o contínuo encolhimento do mercado de trabalho, a crescente pobreza, a irrefreável erosão da terra arável, o desaparecimento das florestas, os crescentes volumes de dióxido de carbono no ar e o aquecimento do planeta. As coisas – sobretudo as mais importantes de todas – estão “escapando ao nosso controle”.

Isso leva a um definhamento e diluição da vontade política, conduz a uma descrença de que algo significativo possa ser feito coletivamente, traduz-se em corrosão da ação solidária que poderia alavancar uma mudança radical no estado das relações humanas.

Quem controla as sociedades é um certo setor do planeta, com a racionalidade que acabamos de expressar e que Boaventura Santos chama de a racionalidade do Norte; daí que o liberalismo, a globalização, a pós-modernidade são as faces bem sucedidas de um determinado localismo que se globalizou. “Vivemos num mundo de localização, tanto quanto vivemos num mundo de globalização” (2008, p. 195). A globalização que parte do Norte faz dos outros localismos a globalização dos vencidos: os vencidos se igualam globalmente ao permanecerem locais sob os efeitos devastadores da globalização do Norte que, ao que ainda parece, vai de vento em popa como se fosse inexorável.

Enquanto isto, mas dentro disto,

Roubar os recursos de nações inteiras é chamado de “promoção do livre comércio”; roubar famílias e comunidades inteiras de seu meio de subsistência é chamado “enxugamento” ou simplesmente “racionalização”. Nenhum desses feitos jamais foi incluído entre os atos humanos passíveis de punição (BAUMAN, 1999a, p.131).