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PARTE I – DE UMA LÓGICA VIOLENTA: ARQUEOLOGIA E HERMENÊUTICA

3. NO INTERIOR DO HUMANISMO OCIDENTAL

Depois desse percurso e depois de termos explicitado quatro movimentos do acontecer da violência, pareceria que já basta, que já seja o suficiente para compreendermos tanto as raízes quanto o devir multifacético da violência. Pensamos, porém, que ainda não basta; pensamos que é preciso uma nova aproximação hermenêutica, pensamos que é preciso um movimento arqueológico de penetração no anterior da Modernidade, pensamos que não basta compreender a Modernidade para compreendermos com alguma segurança a Pós- Modernidade. Com efeito, estes são dois momentos de nossa História comum que mereceram e merecem destaque hermenêutico quer nas Ciências, quer na Filosofia, quer na Literatura ou na Arte. Mas talvez tudo o que temos passado e vimos passando, os tumores que nos habitam e vivem na iminência de eclodir nos puxem o Pensamento – e talvez até mais do que ele – na direção de raízes mais fundas, de muitos atrativos, de muitas verdades que, em realidade, fizeram ser a realidade que a humanidade mesma construiu. Parece-nos que seja preciso encarar a nossa Civilização, suas matrizes e seus fundamentos, sua lógica maior e suas

grandes mediações. Talvez, percorrendo o caminho do Ocidente, possamos encontrar as

condições de possibilidade de nossos tempos sombrios e descubramos que uma barbárie esteja

disfarçada de civilização.

Mesmo que Rousseau, Marx ou Outros tenham endereçado uma crítica radical à propriedade privada como uma das matrizes da violência que nos põem em cadeias por toda

parte (ROUSSEAU, 1987a, 1987b), eles e outros Pensadores tidos como grandes no Ocidente

não conseguiram de fato, a nosso ver e com Lévinas, desconstruir e desnudar os pilares da nossa Civilização. E isso é compreensível. Com efeito, suas compreensões e suas críticas, suas vontades de instauração e seus ideais emancipatórios sempre deixaram intactos os pilares, a lógica, a arché e o telos da mesma Civilização porque sempre se moveram na e da mesma matriz e, como tal, seus achados e possíveis levantados nunca puderam passar de revisões parciais e até mesmo de remendos críticos da Civilização mesma.

Talvez os maiores críticos no Ocidente tenham sido os aclamados mestres da suspeita – Marx, Nietzsche e Freud – por terem buscado e afirmado um outro atrás da Consciência Subjetiva provedora e organizadora do Sentido: uma Luta de Classes, uma Vontade de Poder, o Inconsciente. Mesmo nesses casos, temos ainda um prolongamento e até mesmo a radicalização do Ser-Ocidental. Os humanismos decorrentes de suas proposições interpretam o humano ainda como variações e possibilidades da mesma matriz em tempos históricos diferentes, mas, no fundo, penetrada pela mesma lógica e pelos mesmos problemas.

Parece-nos que é com Lévinas que acontece uma verdadeira, radical e ampla arqueologia do Ocidente e de seus humanismos. É que para isso é preciso ter mundo, ter experienciações, ter outras referências como horizonte interpretativo, habitar e ser habitado por outras bases e outra lógica da tessitura da vida; em suma, ter um contraponto existencial e de linguagem. O que foi que o mundo europeu disse dos índios da América? Terá Rousseau interpretado suficientemente o bom selvagem? Qual seria o dito dos vencidos nos processos infindos de colonialismo e neocolonialismo proporcionados pelos ocidentais? Certamente as concepções de homem, de mundo, de vida humana são decisivas na configuração que cada comunidade histórica procurou dar à existência concreta. E certamente há em todas as culturas ideais, referências significantes de valor máximo, a partir dos quais são tecidas as lógicas da vida em comum. Qual será a nossa, Ocidental? Abrimos um tempo, agora, para

ouvir Emmanuel Lévinas, especifica e propositadamente para ouvir.

Certamente muito se escreveu e se escreve sobre humanismo, sobretudo quando as horas, o tempo da humanidade não vai bem. Na verdade, o tema do humanismo é um território histórico do Ocidente, imensamente problemático, conflitivo, com uma infinidade de

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sobreposições, o que não é exclusivo do nosso tempo, embora o nosso tempo seja visto por Lévinas como um tempo de fim de um mundo. Neste sentido, a recolocação do problema do

humano no discurso e nas práticas conserva sempre um imenso valor, mas também diz que, se

é de novo preciso recolocar a questão do humano, é porque o homem, os homens, a vida

humana vai mal, ainda!

A obra de Lévinas – e nela a crítica ao Ocidente e seu humanismo – localiza-se em três tempos históricos: entre as duas guerras mundiais, durante a segunda guerra – quando sofreu na carne os aguilhões do nazismo – e no pós-guerra – quando faz de vez a experiência do fim do mundo ou do fim de um mundo. O ponto de partida de sua crítica é, pois, a situação de época, de violência extremada que põe em xeque os princípios, a lógica e os fins da Civilização Ocidental. Como ele diz,

A divergência entre os acontecimentos e a ordem racional, a impenetrabilidade recíproca de espíritos opacos como a matéria, a multiplicação de lógicas que se consideram mutuamente absurdas, a impossibilidade de que um Eu encontre um Tu e, consequentemente, a incapacidade da inteligência para sua função essencial são constatações que, no crepúsculo de um mundo, despertam a antiga obsessão do fim do mundo. [...] Mas, este termo expressa um momento do destino humano, momento limite que comporta por ele mesmo ensinamentos privilegiados (LÉVINAS, 1998a, p. 21)89.

O transcurso de tantas e tamanhas in-humanidades do nosso tempo – que vão da

violência mais velada ao horror – sentidas e sofridas por Uns, executadas e “bem-feitas” por

Outros, é que põe para Lévinas a necessidade de uma crítica não apenas localizada ou endereçada a um setor do acontecer da vida, mas de uma crítica radical dos humanismos do Ocidente e suas formas de saber e de realização, segundo ele, responsáveis pelos genocídios e guerras ininterruptas, do Ocidente contra os outros, do Ocidente contra os ocidentais. De fato e em abundância, temos problemas no exercício e nos fins da Ciência, problemas na Filosofia, problemas na administração e na Política, problema de massificação e anonimato,

problema de violência aberta e diluída, problema da fome em todos os rincões do planeta:

crise geral do Ocidente e de seu humanismo. Tudo indica uma fragilidade do humanismo dentro da forma de saber ocidental, a incapacidade constitutiva para assegurar os princípios de humanidade cujo humanismo se acreditou depositário.

A obra e a crítica de Lévinas procedem de um outro mundo, de uma outra maneira de experienciar, significar e encaminhar a vida humana, de uma cultura outra, abafada, silenciada pelo Ocidente – como tantas outras –, mas que permanece viva e esperando sua vez de manifestar-se e fazer ver sua luminosidade. Lévinas fala a partir do mundo bíblico judaico

centrado na Thora, nos Profetas e nas interpretações do Talmud. Ele fala desde um anterior ao cristianismo ocidentalizado, de uma lógica cujo sentido fulcral põe desde o início o interdito

tu não matarás como forma de comando, de mandamento. É porque é possível viver de outro modo, a partir de outro lugar, que também é possível ver direito se é direito o nosso modo ocidental de fazer a vida e a morte acontecer.

Para Lévinas – e isto é o grave – o humanismo greco-romano formulou o sentido do

humano de maneira errônea e também não o protegeu; o sentido do humano não pode se

esgotar em suas humanidades. As humanidades ocidentais são curtas e estreitas para fazer

valer realmente o humano. O caráter inumano (violento) dos acontecimentos do século

passado – e a continuidade neste século – conduziu a uma desconfiança profunda, dentro do

mesmo do Ocidente, de todo discurso sobre o homem, a uma espécie de anti-humanismo. No

fundo, o que está em questão é todo um projeto de cultura que resultou, na verdade, numa crise civilizatória que comprova drasticamente a fraqueza e a insuficiência das fundações desta mesma Civilização e a corrosividade humana de sua própria lógica interna.

De onde Lévinas fala, “O humanismo só deve ser denunciado porque não é suficientemente humano” (1999, p. 201). De onde ele fala, parece-lhe que “A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder” (1971, p. 37). De onde ele fala, parece-lhe que

É necessário encontrar para o homem um parentesco distinto daquele que o remete ao ser, o qual talvez permitisse pensar esta diferença entre mim e o outro, esta desigualdade, em um sentido radicalmente oposto à opressão (1999, p. 257).

A crítica lévinasiana ao Ocidente, à Filosofia Ocidental e ao humanismo decorrente mostra então toda a sua contundência. Jacques Derrida chega a afirmar que “[...] tal pensamento terá mudado o curso da reflexão filosófica do nosso tempo” (1998, p. 21)90

. O que é propriamente o Ocidente? É, sobretudo, uma forma de pensamento e uma maneira de

abordar e significar o real, identificado com o Ser. Para Lévinas, a história do Ocidente pode

ser interpretada como uma tentativa de síntese universal, uma redução de toda a experiência, de tudo o que tem sentido, a uma totalidade onde a consciência abraça o mundo, nada deixa fora dela e torna-se assim pensamento absoluto. Ser consciência de si é ao mesmo tempo ser consciente do todo. Sempre essa busca de totalização pela qual a filosofia ocidental mesma se define e contra a qual não houve – no transcurso da história – protestos significativos.

Ocidente é sinônimo de Grego:

Eu denomino grego [...] a maneira pela qual se exprime ou se esforça por exprimir em todas as regiões da terra a universalidade do Ocidente,

90 DERRIDA, Jacques. Adiós a Emmanuel Lévinas. Trad. de Julián Santos Guerrero. Madrid: Editorial Trotta,

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transpondo os particularismos locais do pitoresco, ou folclórico, ou poético, ou religioso. Linguagem sem prevenção, falar que morde sobre o real, mas sem aí deixar traços e capaz, para dizer a verdade, de desfazer os traços deixados, desdizer, redizer. Linguagem já meta-linguagem, cuidadosa e capaz de preservar o dito, as estruturas mesmas de sua língua, que se pretendem categorias do sentido (LÉVINAS, 1988, p. 158)91.

Com isto, Ocidente significa liberdade de espírito e todas as suas virtudes e boa parte de seus vícios a ela se ligam. Liberdade de espírito que significa o cuidado de tecer com a Verdade o laço maior e interno: voltar-se para o verdadeiro, mas, neste direcionar-se, agir como mestre que, diante da evidência, mantém uma suprema liberdade. Herdeiro da sabedoria grega, o ocidente possui em sua base uma relatividade histórica dos valores, pondo-os permanentemente sob sua contestação e incessante re-avaliação, bem como um trabalho sempre inconcluso de fundamentação com o consequente e incessante desdobrar-se de uma genealogia da moral (LÉVINAS, 1982c, p. 37)92.

Como filho do Ocidente, o discurso filosófico reivindica a amplitude de um englobamento ou de uma compreensão última. Ele obriga todo outro discurso a se justificar diante da Filosofia. Essa pretensão à dignidade de discurso último reaparece para a Filosofia ocidental por conta da busca de coincidência rigorosa entre o pensamento – onde a Filosofia se estende – e a ideia de realidade – onde este pensamento pensa. “Para o pensamento esta coincidência significa: não ter que pensar além disto que pertence ao „gesto de ser‟; ou pelo menos não ter que pensar além disto que modifica uma prévia pertença ao „gesto de ser‟” (LÉVINAS, 1998b, p. 94). Como decorrência, o discurso filosófico deve poder abarcar Deus, se de fato esse Deus existe e tem um sentido. Pensado, esse Deus também deve se situar no interior do gesto de ser. Daí, a Filosofia (ocidental) não é somente conhecimento da imanência, ela é a própria imanência.

Para Lévinas (1976a, p. 262),

Tudo se reduz para a cosmologia antiga ao mundo; para a teologia medieval, a Deus; para o idealismo moderno, ao homem. Esta totalização chega ao termo em Hegel: os seres não têm sentido a não ser a partir do Todo da história, que mede sua realidade e que engloba os homens, os Estados, as civilizações, o próprio pensamento e os pensadores. A pessoa do filósofo se reduz ao sistema da verdade do qual ela é um momento [...]. Mas a totalidade não dá nenhum sentido para a morte; que cada um morra por sua conta. A morte é irredutível.

O sistema hegeliano representa o acabamento do pensamento e da história do Ocidente, entendidos como giro de um destino em liberdade, a razão querendo e se exercitando como

91 LÉVINAS, Emmanuel. A l’Heure des Nations. Paris: Éditions de Minuit, 1988. 92 LÉVINAS, E. L’au dela du Verset. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982c.

penetração em toda realidade ou, pelo menos, querendo aparecer nela. Segundo a expressão lévinasiana, trata-se simplesmente de um Empreendimento inaudito! (LÉVINAS, 1976a). E mais: “A obra hegeliana, onde vêm se lançar todas as correntes do espírito ocidental e onde se manifestam todos os seus níveis, é uma filosofia ao mesmo tempo do saber absoluto e do homem satisfeito [...]. Acordo e unidade do saber” (LÉVINAS, 1998b, p. 214).

Dizendo de outro modo, a Filosofia que nos é transmitida faz retornar toda

significância – toda racionalidade – ao ser, ao gesto de ser conduzido pelos seres enquanto se

afirmam como seres, ao ser enquanto se afirma como ser, ao ser enquanto ser. Isto significa: a filosofia ocidental – salvo raras exceções, como na República ou no Fedro de Platão onde o Bem está acima do Ser – tem se realizado, o mais das vezes, como ontologia, ou seja, como uma redução do Outro ao Mesmo. Assim, “Para a tradição filosófica do Ocidente toda espiritualidade pertence à consciência, à exposição do ser no saber” (LÉVINAS, 1999, p. 164, grifo nosso).

Ora,

Afirmar a prioridade do ser por relação ao ente é já se pronunciar sobre a essência da filosofia, subordinar a relação com “alguém” que é um ente (a relação ética) a uma relação com o “ser do ente” que, impessoal, permite o alcance, a dominação do ente (a uma relação de saber), subordina a justiça à liberdade. A ontologia heideggeriana, subordinando à relação com o ser toda a relação com o ente, afirma o primado da liberdade por relação à ética (LÉVINAS, 1971, p. 36).

Com isso, a liberdade surge a partir de uma obediência ao ser: não é o homem que tem a liberdade, é a liberdade que tem o homem. Mas a conciliação dialética entre a liberdade e a obediência no conceito de Verdade implica, desde antes, a primazia do Mesmo, por onde se conduz toda filosofia ocidental e pela qual ela se define.

A relação com o ser, que se efetua como ontologia, consiste em conhecer e atingir o ente pela sua neutralização. Ela não é uma relação com o Outro enquanto tal, mas a redução do Outro ao Mesmo. É perfazendo e completando um círculo ao redor do ente que acontece a apreensão do ser do ente. Com efeito,

Tal é a definição de liberdade: manter-se contra o Outro, apesar de toda relação com o Outro, assegurar a autarquia de um Eu. A tematização e a conceptualização, inseparáveis, não são paz com o Outro, mas supressão ou possessão do Outro [...]. “Eu Penso” torna-se “Eu Posso”, uma apropriação do que é, uma exploração da realidade. A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder [...]. A verdade que deveria reconciliar as pessoas existe aqui anonimamente (LÉVINAS, 1971, p. 37).

Segundo Lévinas, a totalização ontológica só é possível pela violência executada por um sujeito luminoso que se coloca no centro do pensamento do ser, do ente, e

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transforma o diferente em insignificante, marginal, periférico, uma posse, uma sub-jugação ou uma treva. Com efeito,

O triunfo do Ser é o triunfo do senhor único que tira dos escravos sua própria voz para afirmar-se como senhor sobre eles. História de violência, de marginalização, de escravidão e de segregação total, cuja lógica interna não se detém nem mesmo na demência da destruição absoluta que atinge ao próprio destrutor em um estúpido jogo de “aprendiz de bruxo”. No fundo estão Auschwitz e a ameaça permanente de genocídio nuclear (LÉVINAS, 1999, p. 24).

Como já é possível reter pelas últimas citações, dentre os filósofos contemporâneos – que levam a efeito esse processo de totalização, essa redução à mesmidade ontológica, esse pastoreamento do Ser –, Martin Heidegger e seu Ser e Tempo é o endereço mais agudo para onde é enviada a gravidade e a força da crítica lévinasiana. Com efeito,

Heidegger encontra no pré-socratismo o pensamento como obediência à verdade do ser. [...] Heidegger, como toda história ocidental, concebe a relação com o Outro movendo-se no destino dos povos sedentários, possuidores e construtores da terra. A posse é a forma por excelência sob a qual o Outro torna-se o Mesmo, tornando-se o Meu. Denunciando a soberania dos poderes técnicos do homem, Heidegger exalta os poderes pré- técnicos da posse [...]. A ontologia torna-se ontologia da natureza, impessoal fecundidade, mãe generosa sem rosto, mátria dos seres particulares, matéria inesgotável das coisas. Filosofia do poder, a ontologia como filosofia primeira, que não põe em questão o Mesmo, é uma filosofia da injustiça (LÉVINAS, 1971, p. 37-38).

Em decorrência, a ontologia heideggeriana conduz fatalmente a uma outra potência, à dominação imperialista, à tirania. Dar prioridade ao Ser antes do Ente, à ontologia antes da metafísica, é dar passagem e lugar ao arbítrio – ao arbitrário – antes da justiça.

Segundo Lévinas, os conflitos que ocorrem nessa totalidade – fundamentalmente os conflitos entre o Mesmo e o Outro – só podem encontrar um encaminhamento de resolução na

teoria, onde o Outro é reduzido ao Mesmo, com-preendido. Concreta e historicamente, tal

redução foi efetivada pelo Estado como poder anônimo, transformado ou transfigurado em o inteligível ou na consciência ou na racionalidade; o diferente, todo o diferente é enquadrado e abolido na comunidade do Estado-nação. Isto significa:

Para a tradição filosófica do Ocidente, toda relação entre o Mesmo e o Outro, quando ela não é mais a afirmação da supremacia do Mesmo, se reconduz a uma relação impessoal numa ordem universal. A filosofia ela mesma se identifica com a substituição das pessoas pelas ideias, do interlocutor pelo tema, da exterioridade da interpelação pela interioridade da relação lógica. Os entes são conduzidos ao Neutro da idéia, do ser, do conceito (LÉVINAS, 1971, p. 87, grifo nosso).

No marco geral do Ocidente e da Filosofia tal como ficou exposto, se inscreve, como decorrência, a questão do humanismo. Na visão lévinasiana, os humanismos do Ocidente – mesmo em ocaso significativo – são os porta-vozes da razão-de-ser mesma do Ocidente e da

humanidade propugnada, do melhor do humano possível. Mas o que é o humanismo?

Em sentido geral, humanismo significa o reconhecimento de uma essência invariável chamada “homem”, a afirmação de seu espaço central na economia do Real e de seu valor dando origem a todos os valores: respeito à pessoa, em si e no outro, importando a salvaguarda de sua liberdade; afloramento da natureza humana, da inteligência na Ciência, da criação na Arte, do prazer na vida cotidiana; satisfação dos desejos sem prejuízo para a liberdade e os prazeres dos outros e, por consequência, instauração de uma lei justa, isto é, de um Estado racional e liberal, de um Estado em paz com os outros Estados e abrindo, sobretudo, aos indivíduos um domínio tão largo

quanto possível do privado, no seio do qual a lei não entra (LÉVINAS,

1976a, p. 38, grifo nosso). Já num sentido mais estrito,

[...] o humanismo significa o culto a esses mesmos princípios. A chama interior do humanismo se reanima no contato com certas obras e no estudo de certos livros onde se exprimiriam pela primeira vez e pelos quais se transmitiriam esses princípios, essas humanidades (LÉVINAS, 1976a, p. 386).

Para Lévinas, o pensamento europeu subordina até mesmo a generosidade moral às necessidades do pensamento objetivo. É que no âmbito da ação se encontra e aparece um dos maiores pilares – talvez o maior – da mesma Civilização Ocidental e, como tal, ele não pode – ou não deve – ser questionado. Todo pensamento e todo discurso, na verdade, trabalham objetivamente na defesa e engrandecimento desse pilar. Nessa tradição – que é hegemônica –, “[...] a espontaneidade da liberdade não se põe em questão. Sua limitação seria trágica e escandalosa” (LÉVINAS, 1971, p. 81-82). Em geral, a liberdade só é posta em questão se e somente se ela estiver sendo imposta a ela mesma. Mas, na verdade – como veremos longamente no Segunda Parte –, não é bem assim, ou seja, isso não é bem a verdade. Com efeito, existe um factum primeiro e decisivo que é deixado de lado em nome da liberdade mesma defendida pelo discurso do Mesmo. O factum é que eu não pude escolher livremente

minha existência. Então, eu mesmo não posso justificar o advento de mim como liberdade.

Mas, na história do Ocidente e de seus discursos sobre o humano, mesmo que a liberdade fracasse no projeto de justificar a si mesma por si mesma, a teoria política sempre procurou extrair a justiça do valor indiscutível da espontaneidade; esta deve ser assegurada pelo conhecimento do mundo e, na teoria, é ela que poria minha liberdade em acordo com a liberdade dos Outros. “Esta posição não admite apenas o valor indiscutível da espontaneidade, mas também a possibilidade para um ser racional de se situar na totalidade. Ela parte do