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PARTE I – DE UMA LÓGICA VIOLENTA: ARQUEOLOGIA E HERMENÊUTICA

2. NAS RAÍZES HISTÓRICAS DA VIOLÊNCIA

2.2. À Pós-Modernidade

2.2.2. Na Violência em Movimento Ascendente

2.2.2.1. Pelo Enraizamento da Indiferença

O movimento ascendente da violência começa nos existentes, na interioridade e na exterioridade dos existentes. E, ali, ele se aglutina nas múltiplas formas da indiferença, nas suas condições e na sua efetivação. Em primeiro lugar, como primeira condição da indiferença, o silenciamento do questionamento. Todos os Autores que nos apoiam aqui são unânimes quanto a esse fenômeno. Mas a formulação de Castoriadis, citada por Bauman, parece-nos decididamente contumaz. Ela diz assim:

[...] o problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de questionar-se. [...] O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano. [...] Questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos (CASTORIADIS, apud BAUMAN, 1999a, p. 11).

Depois que o neoliberalismo conseguiu se tornar hegemônico nas quatro esferas supracitadas, depois que os Estados deixaram de ser de Bem-Estar, depois que os vínculos e laços sociais e comunitários foram profundamente corroídos, depois que cada existente se viu individualizado na tarefa de dar conta da totalidade de Si contando só consigo mesmo, depois de o indivíduo ser reduzido à mercadoria consumidora de mercadoria e de ser reduzido em

sua cabeça, depois de tudo isso e possivelmente mais, não é a toa que venha o silêncio do

questionamento. Mas aquilo que parece efeito engendra muitos efeitos, ou seja, produz todos aqueles efeitos que Castoriadis põe sob a rubrica da dura moeda corrente do sofrimento

humano e que leva junto a conivência de todo aquele e de toda aquela que parou de se

questionar.

Parar de questionar-se significa em concreto laissez-faire, laissez-passer la mort(deixa andar, deixa passar a morte). A ausência de questionamento, sobretudo sobre o nosso modo de vida, reforça o individualismo, dificulta a construção de novos laços humanos, descarta as possibilidades de resistência às determinações institucionais violentas, desiste da política das causas comuns e deixa livre curso à lógica mundial intrinsecamente excludente e, como tal, violenta. Parar de questionar-se é, para a condição humana, como um rio que destrói o seu leito porque devora todas as suas margens. O questionar-se é que põe margens para distinguir o que é violento e localiza o leito de alguma humanidade no serpenteado do rio. Repitamos a seguinte pergunta, como amostra de questionamento: Como construir subjetividades se „as pessoas querem fugir à necessidade de pensar em nossa condição infeliz‟?

Em segundo lugar, a raiz-indiferença, ela mesma. Esse fenômeno é simplesmente trágico para a vida humana; e ele pode tanto vir antes quanto depois do silenciamento do questionamento, mas, de qualquer modo, os dois sempre andam juntos. Na voz de Bauman (1998b, p. 95): “[...] existe um ensurdecedor silêncio, essa esmagadora indiferença, esse desnorteante alheamento, o „lavo as minhas mãos‟”. A indiferença quer dizer que as coisas que dizem respeito aos Outros existentes não me tocam, não me ferem, não me importam. A indiferença é virar o Rosto ao Rosto, é deixar escorrer sangue no Rosto e na interioridade de outrem sem remeximento na própria interioridade e nas mãos; ela é uma ataraxia (ausência de perturbação da alma) estóica às avessas. A indiferença quer dizer que não há morada em mim para aqueles que estão fora de meus desejos, interesses e objetivos; ela só pode habitar aquele que já vive um alto grau de individualismo como mentalidade e como forma de vida. Indiferente é aquele que criou calos grossos em sua sensibilidade de tal sorte que as dores e mesmo os gritos lancinantes vindos de fora, de perto ou de longe, têm como contra-ponto ouvidos moucos para ouvir, olhos fechados para não ver e mãos escondidas para nada fazer.

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Indiferente é aquele que consegue “[...] preservar a serenidade da alma no meio de um mundo de violências e iniqüidades” (CHALIER, 1993, p. 51).

A indiferença parece tão passiva, impassível, mas ela é, na verdade, profundamente destrutora. Ela é o começo do fim da moralidade em qualquer existente porque ela exclui a possibilidade do nascimento do mandato moral (commandement). Na esteira do grito lévinasiano, hoje em dia, o mandato ético é silenciado no mais fundo e íntimo da interioridade humana. E sem moralidade, como pode advir um sujeito propriamente humano? Se ninguém “fizer viver”, todos já estamos condenados, mesmo que consigamos permanecer vivos. A indiferença, instrumentalmente, é um bom caminho para deixar passar mais morte.

Com a indiferença pode começar ou estancar o questionamento no existente, com indiferença não há saída para visitar os Outros existentes, com indiferença tanto faz que o rio tenha água para os existentes se saciarem ou sangue humano, com indiferença o que há de instituições pode se acabar e pode tomar o rumo que quiser; o “sacro império” do individualismo de quem é indiferente aos Outros diz que tudo pode ser consumido pela lógica da mercadoria. Indiferença é o modo de ser de um existente psicotizante, de cabeça reduzida, bem nomeado por Dufour; quando os Outros já não existem para mim, talvez possa sobrar um pedaço de um Eu!

O terrível é que a indiferença está virando coisa geral. Bauman pontua:

Em nossos tempos, deslegitimou-se a idéia de auto-sacrifício; as pessoas não são estimuladas ou desejosas de se lançar na busca de ideais morais e cultivar valores morais. [...] A nossa era é era de individualismo não- adulterado e de busca de boa vida, limitada só pela exigência de tolerância [...] como indiferença (1997, p. 7).

A importância perigosa da indiferença moral torna-se particularmente aguda em nossa sociedade racionalizada, científica e tecnologicamente eficiente; com os meios que temos, a ação humana pode ser efetivada à distância e a uma distância sempre crescente do lugar da moralidade, que é a proximidade; a distância da ação põe também a responsabilidade pela ação à distância, no sentido de que ninguém se compromete a responder por seus efeitos violentos. As ações à distância, mediadas pela ciência e pela tecnologia, tornam-se

adiaforéticas, isto é, moralmente indiferentes. Mas, se a violência do adiaforético é retirada da

vista, ela não é retirada da existência: o silêncio diante da desumanidade organizada faz continuar a matança organizada. Não foi assim no Holocausto? Não é assim hoje? Vencer a indiferença, traumatizar o indiferente talvez venha a ser um outro começo pelo meio da vida humana. Só para quem quiser, a indiferença pode dar o que pensar! Mas deixemos isso para adiante.

Na esteira, ou provavelmente no berço da indiferença, um terceiro fenômeno. Com efeito, “Ninguém prepara o caminho para os outros, ninguém espera que os outros venham em seguida” (BAUMAN, 1998b, p. 122). Trata-se do vácuo relacional que se realiza em cada existente, como a experiência não simplesmente sentida de estar só, mas a experiência de solidão ontológica, isto é, de ser só e saber-se efetivamente sozinho. O vazio de alguém em nós por nós: pode haver maior aliado das lógicas colonizadoras do que este vazio? E como estamos todos em barcos individuais, salve-se quem puder, pois a correnteza mundial é grande e os remos são poucos. Vamos para o precipício do vazio existencial juntos, mas, paradoxalmente, separados!

Daí os fenômenos da apatia, da resignação, da desolação, de obediência aos comandos imorais. É certo que nossa passividade nos deixa inertes enquanto prisioneiros nas malhas de uma rede econômica – e pelo menos em parte política – que recobre todo o planeta; mas também é certo que boa parte dos existentes parece participar do mesmo campo e considera o estado atual das coisas como seu estado natural, como o ponto exato onde a história

precisaria chegar. Ou ainda, retomando outro ponto crucial já expresso, mas agora em

movimento ascendente: “O que é visado hoje pelo mercado é essa parte privada que escapou, há quase três séculos, do sistema da representação política, essa „outra parte‟ que nada, desde as Luzes, veio calibrar, essa parte que se refere ao domínio da „pertença a si mesmo‟” (DUFOUR, 2005, p. 184). É que nos tornamos e nos deixamos ser colaboradores, in existentia e in massa, de quem nos colonizou, possivelmente até de vez. Talvez muitos existentes sejam já incapazes de experienciar até mesmo a solidão de Si mesmos. Isso é boa mercadoria humana!

De um modo bem sintético, podemos dizer que enfim o behaviorismo, mais simples porque radical – ao estilo de John Watson – triunfou economicamente e psicologicamente: sob os estímulos das necessidades criadas de consumo de mercadoria pela lógica e pela propaganda neoliberal, nós conseguimos como resposta um indivíduo – ou melhor, um existente – que se define como mercadoria e consumidor de mercadoria. Mas também triunfou sobre a moralidade e sobre a política: ao estímulo do individualismo e do bem-estar a

todos os preços, nós temos a resposta da hemorragia moral e da apatia política, sobretudo

pelo comportamento da indiferença. Somos de um tempo em que há uma mercadoria para cada desejo, sendo que a mercadoria já (antes) vem estimulando o nascimento de infindáveis desejos (que vêm depois, mas devem vir). Com Bauman (2003, p. 117): “Para criar valor, basta criar uma intensidade suficiente de desejo”. Temos mais meios para criar mercadorias do que efetivas necessidades; é preciso criá-las, sempre bem novas, para serem consumidas

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individualmente. Daí se compreende porque vivemos numa cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.