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Os debates em torno do aborto

No documento doradeisestephanmoreira (páginas 143-147)

3. CAPÍTULO DOIS: EMPODERAMENTO DO SEGMENTO EVANGÉLICO NA

3.5 A AGENDA CONSERVADORA DO SEGMENTO EVANGÉLICO FAZENDO

3.5.2 Os debates em torno do aborto

O aborto é um tema caro aos evangélicos154 não apenas no Poder Legislativo, como também nos espaços cúlticos e nas mídias internas e externas. Desde que passaram a ter uma maior representatividade no âmbito legislativo, sempre que o assunto vem à tona, seja por meio de um algum projeto de lei ou medida proposta pelo Ministério da Saúde ou outras instituições quer do Judiciário ou do Executivo, a “bancada evangélica” se aglutina em torno do que pode vir a ser votado e procura, imediatamente, votar em bloco, evidentemente contra. Geralmente, são questões ligadas à legalização do aborto.

Para além de se articularem depressa, os deputados federais evangélicos, não raro, usam da tribuna para pronunciarem discursos contrários ao aborto, assim como elaboram projetos visando garantir o direito à vida do nascituro. Geralmente, visam à criminalização do aborto, sob a alegação do “direito à vida”, a “defesa da vida”. É necessário que se diga que quando o tema é aborto, aos evangélicos se juntam os católicos e outros religiosos, não sendo, porém, um pleito exclusivo deles.

Desse alinhamento político em torno do aborto, fazem parte, além da “bancada evangélica”, outras frentes parlamentares, como a “Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida”, a “Frente Parlamentar contra a Legalização do Aborto- Pelo Direito à Vida” e a “Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto”. Isso sem contar a Pastoral Parlamentar Católica. É necessário acrescentar que quando se trata deste tema, parlamentares de outras bancadas conservadoras, como a ruralista, se juntam às demais, como assinalado por Rafael Bruno Gonçalves155 (2016).

Os evangélicos – aliados a outros parlamentares religiosos - possuem uma grande capacidade de mobilização toda vez que alguma matéria sobre o tema é colocada em votação.

154 A aversão ao aborto por parte de uma grande maioria dos evangélicos– é tanta que chegam até mesmo a

defender, via parlamento, o nascimento de crianças concebidas mediante estupro. São favoráveis ao Estatuto do Nascituro, pelo qual “todo feto tem direito à vida”, proibindo o aborto em qualquer circunstância. Segundo Marcelo Camurça (2019b), este projeto de lei, assim como tantos outros relativos ao controle dos corpos, estão na “ordem do dia” do governo de Jair Bolsonaro. Tanto é assim que escolheu para Ministra do Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ninguém menos do que Damares Alves, “pregadora da Igreja Batista da Lagoinha”, que “defende um projeto que assegure ajuda financeira à mulher vítima de estupro que decidir manter a gravidez”, o que foi apelidado como “bolsa estupro” (CAMURÇA, 2019b). A defesa de um projeto dessa natureza é prova da “virulência contra a reivindicação das feministas de controle de seus corpos”. (CAMURÇA, 2019a, p.12).

155 O pesquisador analisa os discursos em torno do aborto na Câmara dos Deputados, tendo como foco principal a

FPE, no período compreendido entre 2003, quando foi criada esta frente, até a 54ª legislatura (2011-2015). Devido a esse recorte temporal, algumas informações contidas no artigo podem estar defasadas, mas isso, em nosso entendimento, não invalida de forma nenhuma a análise feita por ele, uma vez que sabidamente o combate ao aborto continua sendo uma questão primordial para o segmento evangélico e outros segmentos religiosos. A metodologia aplicada por Rafael B. Gonçalves é a Análise de Discurso em sua vertente francesa, utilizando autores como Dominique Maingueneau, Michel Pechêux e Eni Orlandi, principal estudiosa brasileira desta ferramenta metodológica. Ele também se utiliza da formação de “pontos nodais” (Laclau; Mouffe, 1987) pra deslindar os discursos dos prlamentares evangélicos.

Para tornarem público seu posicionamento contrário, não poupam esforços neste sentido. Como ressaltado por Gonçalves, “no fomento e divulgação de eventos como marchas e vigílias contra as novas matérias que tratam do aborto enquanto tema da saúde pública” (GONÇALVES, 2016, p. 94). Assim como na Maioria Moral americana, os ataques à descriminalização do aborto estão sempre na pauta de programas televangélicos, um dos carros-chefes das denominações evangélicas, (SILVA, 2016) e em outras mídias dessas igrejas.

De acordo com Gonçalves, toda vez que a questão do aborto aflora na Câmara dos Deputados, uma gama de “argumentos oriundos de diferentes campos, como o jurídico, científico, político e da saúde” (GONÇALVES, 2016, p. 94) são acionados. Porém, o autor esclarece que embora advindos de várias áreas, a argumentação tem um ponto em comum: “a defesa da vida desde a concepção e/ou a defesa da família, que passaria a ser destruída com a legalização e práticas como o aborto, no entendimento dos evangélicos”. (GONÇALVES, 2016, p. 95).

Dentre os discursos acionados pelos parlamentares evangélicos, segundo Gonçalves o que mais se destaca quando se trata do aborto é o de “natureza confessional” (GONÇALVES, 2016, p. 95). Ainda que mesclando discursos de outras ordens, o que prevalece é o de ordem religiosa, sendo que comumente recorrem à Bíblia, exaltando salmos e passagens que deixam subentendido “que tirar a vida do feto é uma atitude criminosa [...] Os pentecostais, assim como os católicos, alegam a santidade da vida”. (GONÇALVES, 2016, p. 95).

Gonçalves depreende, ainda, que para os parlamentares evangélicos consideram que ser cristão é necessariamente ser contra o aborto, ou seja, são virtudes indissociáveis. Além disso, alegam que ao defenderem essa posição, estão agindo em nome de uma maioria cristã. “Como representantes de Deus, do Deus do povo, outorgam-se a condição legítima de representantes ‘da maioria do nosso povo’, da ‘maioria da sociedade’”. (PIERUCCI, 1989, p.111).

Assim como no episódio da admissibilidade do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em que “em nome de Deus”, “em nome da nação”, “em nome da família brasileira”, defenderam o afastamento da petista, toda vez que o tema é o aborto, os parlamentares evangélicos “sobem na tribuna [...] na qualidade de representantes, de porta-vozes da maioria do povo”, sob a alegação que “esta ‘multidão’ já decidiu manter a postura negativa sobre o aborto”. (GONÇALVES, 2016, p. 96).

Ao realizar uma análise discursiva acerca do tema no período compreendido entre 2003 (fundação da FPE) e 2014 (54ª legislatura), Gonçalves constatou que durante os pronunciamentos as palavras-chave sobejamente repetidas foram: “aborto”, “abortamento”,

“direito à vida”, “nascituro”, “interrupção da gravidez”, “feticídio”, dentre outras, todas com algum vínculo com a temática preferencial da FPE. (GONÇALVES, 2016, p. 96-97).

Para além de analisar o conteúdo dos discursos as expressões mais utilizadas pelos deputados evangélicos, Gonçalves também se debruçou sobre momentos cruciais do debate sobre o tema, como o que discutia a proposição do Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que em 2007 - período em que o presidente da República era Luiz Inácio Lula da Silva - que manifestou-se favorável à descriminalização do aborto, considerando-o uma questão de saúde pública.

Naquela ocasião, “choveram” proposições tanto favoráveis quanto contrárias ao posicionamento do ministro. Esse momento é identificado por Gonçalves como sendo o que mais teve proposições sobre o tema, perfazendo um total de 28 delas. Segundo o autor, aquele ano foi marcado por vários acontecimentos em que o aborto esteve no epicentro das discussões, como também a Audiência Pública sobre o Aborto realizada em 27 de junho, com a participação da médica e deputada federal Jandira Feghali156 e do ginecologista e obstetra Adson França157, que se posicionaram favoravelmente, e da médica Zilda Arns158 e da ginecologista Marli Virgínia Nóbrega159, cujos posicionamentos foram contrários ao aborto.

Sem sombra de dúvidas, o que mais suscitou discussões, a maioria delas acaloradas, na Câmara dos Deputados foi o Projeto de Lei Nº 1.135 de 1991160, que trata da descriminalização

156 Jandira Feghali é deputada federal pelo Rio de Janeiro e representante do PC do B (Partido Comunista do Brasil)

desde a 49ª legislatura (1991-1995). Antes, foi deputada estadual Constituinte no Rio de Janeiro (1987-1991). Muito atuante, atualmente participa da Comissão de Seguridade Social e Família, dentre outras comissões. Disponível em: https://www.camara.leg.br/deputados/74848/biografia. Acesso em: 15 jul. 2019.

157 Adson França dos Santos tem atuação na Bahia, sendo especialista em: Sexologia, Direitos Sexuais e Direitos

Reprodutivos. Leciona no Centro Universitário Jorge Amado, UNIJORGE. Disponível em: https://www.escavador.com/sobre/6199092/adson-roberto-franca-dos-santos (informações extraídas do curriculum lattes do médico). Acesso em: 15 jul. 2019.

158 Zilma Arns era católica e fundadora da Pastoral da Criança (Curitiba-PR) e irmã do arcebispo Dom Evaristo

Arns, arcebispo emérito de São Paulo e cardeal brasileiro. Ambos lutaram ardorosamente contra a Ditadura Militar e já faleceram, respectivamente em 2010 e 2016. Ver mais em: https://www.pastoraldacrianca.org.br/dra-zilda- arns-neumann. Aceso em: 15 jul. 2019.

159 Marli Virgínia Lins e Nóbrega é ginecologista e obstetra, com atuação no Distrito Federal. Sua especialidade é

na área de fertilidade feminina. Pertence à Associação dos Médicos Católicos de Brasilia. Disponível em: http://medicoscatolicosdf.com.br/quemsomos/. Acesso em: 15 jul. 2019.

160 O PL Nº 1.135 foi criado pelos deputados Eduardo Jorge(SP) e Sandra Starling (MG), ambos do PT à época,

propondo a descriminalização do aborto, com a consequente supressão do Artigo 124 do Código Penal Brasileiro, que caracteriza como crime o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. Nenhum dos dois proponentes está no parlamento atualmente, sendo que o médico sanitarista Eduardo Jorge deixou o PT em 2002, filiando-se ao Partido Verde, pelo qual foi candidato à Presidência da República em 2014 e à vice-Presidência em 2018, na chapa encabeçada por Marina Silva, na ocasião pelo Rede Sustentabilidade. Já a professora, advogada e cientista política Sandra Starling encontra-se afastada da política partidária atualmente, tendo deixado o PT em 2010, por discordar do pragmatismo político do partido que ela ajudou a fundar e ao qual foi filiada por 30 anos. Ver mais em:

https://g1.globo.com/politica/politico/eduardo-jorge-sobrinho e https://oglobo.globo.com/politica/sandra-starling- deixa-pt-depois-de-30-anos-decisao-foi-tomada-apos-partido-determinar-a-2995996. Acessados em 15 de julho de 2019.

do aborto e que está arquivado atualmente. No intervalo analisado por Gonçalves, para além de inúmeras contendas, o PL “recebeu apensamentos, desapensamentos, arquivamentos, desarquivamentos, vistas por parlamentares [...]”. (GONÇALVES, 2016, p. 98). Levando-se em conta a radicalização de temas como este, devido ao conservadorismo que se exacerbou na atual legislatura e a premência na discussão de outros assuntos, como a reforma da previdência e seus desdobramentos. o PL, certamente, permanecerá engavetado.

Como destacado por Maria das Dores Campos Machado, com base em um survey realizado pela Pew Research Center, por meio de pesquisa qualitativa realizada em vários países do mundo, ficou constatado que no Brasil 91% dos pentecostais concordam com a afirmação de que “o aborto nunca é justificável” – questão formulada pela pesquisa -, contra 79% de católicos e outras religiões. Este mesmo survey revelou que os pentecostais apoiam mais a participação de grupos confessionais em debates públicos e consideram importante que os candidatos tenham convicções religiosas. (MACHADO, 2012, p. 37 e 38).

Diante do exposto pela socióloga, fica fácil compreender porque em outro episódio que gerou enorme polêmica, ou seja, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 da ADPF 54 que versa sobre a permissão da interrupção terapêutica da gravidez em caso de fetos com anencefalia. Embora tenha sido uma decisão extra Legislativo e propugnada pela instância máxima do Poder Judiciário, houve forte reverberação na Câmara por parte da FPE.

Em decorrência da decisão do STF, o Ministro da Saúde à época, Alexandre Padilha, autorizou a preparação dos hospitais para a realização do aborto de anencéfalos. Não tardou muito para que houvesse uma reação da FPE, a qual, em abril do ano seguinte, propôs a criação de uma “CPI do aborto”, conforme relatado por Gonçalves, acrescentando que a proposta teve a adesão da Pastoral Parlamentar Católica. (GONÇALVES, 2016, p. 100).

É preciso que se diga que se por um lado os deputados da FPE defendiam suas bandeiras anti-aborto – e outras anti ... – por outro lado, como asseverado por Machado, eram proporcionais as reações advindas de outros movimentos identitários, como os feministas e os da comunidade LGBTTI, normalmente parceiros em muitas lutas. A autora ressalta que assim como houve, sobretudo a partir da última década do século XX, um grande engajamento dos movimentos de caráter mais tradicionalistas, as últimas décadas também “foram marcadas por importantes transformações culturais que resultam em uma política de aproximação entre o estado brasileiro e os movimentos sociais que buscam o reconhecimento na sociedade”. (MACHADO, 2012, p. 33).

No entender de Machado (2012), as propostas de revisão da legislação vigente no que se refere ao aborto e a criação de novos direitos para o público LGBTTI intensificaram a tensão

já existente entre os coletivos religiosos tradicionalistas e os movimentos sociais identitários. Estes últimos se posicionaram tanto a favor da descriminalização do aborto quanto defenderam causas relacionadas ao movimento LGBTTI, como o casamento homoafetivo, a título de ilustração.

Quanto ao aborto, Machado enumera algumas vitórias, como a criação de uma comissão tripartite de Revisão da Legislação Punitiva do Aborto (2005), a realização de uma Audiência Pública sobre o Aborto em 2007 – como já referido por nós mais acima – e o lançamento de um novo Programa Nacional de Direitos Humanos, em 2009. (MACHADO, 2012, p. 33).

Com relação às demandas do público LGBTTI, a situação não foi diferente. Ocorreram inúmeros embates e algumas conquistas, como a discussão do Projeto de Lei da Câmara122/2006, que versa sobre a criminalização da homofobia, e a derrubada do projeto que ficou conhecido como “cura gay”. Sobre as contendas envolvendo representantes de ambas as partes, ou seja, dos coletivos religiosos tradicionalistas e dos coletivos sociais voltados à defesa dos direitos ligados aos direitos reprodutivos e sexuais, discorreremos a seguir.

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