• Nenhum resultado encontrado

Definição e estrutura da norma de direitos fundamentais

PARTE III Os direitos fundamentais

2. Definição e estrutura da norma de direitos fundamentais

Sob o pressuposto de que os direitos fundamentais de um determinado Estado são aqueles erigidos ao patamar da positivação constitucional, os parâmetros exegéticos para atualização de sentido, na realização destes direitos, devem partir de uma análise estrutural da respectiva norma437.

De fato, Alexy define como norma de direito fundamental não somente aquela expressa diretamente no texto da Lei Fundamental, contudo também as normas que denomina “implícitas”438, sendo certo que, na acepção do autor, tanto uma como outra devem possibilitar uma fundamentação de direito fundamental “correta.” A distinção consiste em que, nas normas de direito fundamental explícitas, esta fundamentação decorreria do próprio texto constitucional em que se insere a respectiva norma, o que não se verificaria em relação às normas denominadas “implícitas”439.

Na doutrina pátria, Sarlet utiliza por base a definição de Alexy, no entanto, tem o cuidado de, em face da constatação de uma “fundamentalidade” formal e outra material, não

437 Segundo Alexy, a dogmática dos direitos fundamentais, enquanto disciplina prática, aponta , em última instância, para a fundamentação racional dos juízos de ‘dever-ser’ de direitos fundamentais concretos. E, a racionalidade da fundamentação exige que, desde as definições dos direitos fundamentais, aos juízos de ‘dever-ser’ de direitos fundamentais concretos, sejam acessíveis, na maior medida possível, a controles intersubjetivos, o que pressupõe clareza sobre a estrutura das normas de direitos fundamentais, assim como acerca de todos os conceitos e formas de argumentação relevantes para a fundamentação jusfundamental (ALEXY, 1997, p. 39).

438 Conforme a definição de normas de direito fundamental “adscriptas” por Moreso (MORESO, José Juan. Conflictos entre principios constitucionales. In: NEOCONSTITUCIONALISMO(S). Madrid: Trotta, 2003, p. 114-115). Note-se aqui que normas de direito fundamental “implícitas” não equivalem a normas não escritas, porquanto estas últimas não guardam relação de “precisão” com o texto da Constituição. Relação de precisão corresponde a uma conexão com o texto constitucional havida quando da necessidade de se aplicar determinada norma de direito fundamental ao caso concreto (ALEXY, op. cit., p. 65-70).

deixar escapar a abertura material dos direitos fundamentais, expressamente consagrada em nosso direito constitucional positivo, capitaneada pela norma insculpida no art. 5º, §2º, da CF/88:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo)440.

Importante enfatizar, nesse seguimento, a relevância da abertura do catálogo dos direitos fundamentais aos chamados direitos fundamentais implícitos, não expressamente positivados, como recurso hermenêutico quanto à extensão do âmbito de proteção e do campo de incidência de determinado direito fundamental já expressamente positivado441.

Voltando-se à análise de Alexy, se a definição do conceito de normas de direito fundamental exige que se atribua a estas uma fundamentação de direito fundamental correta, pressupõe a distinção havida entre norma e texto normativo, já referida na primeira parte deste estudo (item 2.2.1)442. Na disciplina dos direitos fundamentais, os enunciados normativos são identificados pela respectiva positivação no texto da Constituição. Em uma outra categoria, teríamos as normas de direito fundamental “implícitas”, cujo conceito seria encontrado observando-se as demais disposições vinculantes443.

Apesar de o conceito de norma de direito fundamental, apresentado por Alexy, valer- se da distinção entre enunciado normativo e norma444, o juspublicista enfatiza, quanto ao emprego que Müller faz da sua teoria normativa estruturante aos direitos fundamentais, o fato de assentar-se na vinculação entre a teoria da norma e a teoria da aplicação do Direito. Desta forma, à tese de Müller, Alexy contrapõe a distinção entre o conceito de norma, a relevância normativa e o fundamento de uma norma, sem o que não se obtém um quadro claro da

440 SARLET, 2001, p. 82.

441 Ibidem, p. 94. Todavia, Sarlet chama a atenção, quanto aos limites do conceito material de direito fundamental, no que concerne à posição hierárquica das normas de direito fundamental interno em face dos direitos fundamentais de origem internacional, não sendo aceitável, apesar da respectiva posição equivalente, o sacrifício de um dos direitos quando em rota de colisão (Ibidem, p. 139).

442 ALEXY, 1997, p. 73 443 Ibidem, p. 74 444 Ibidem, p. 76.

fundamentação jurídica. Atende mais aos ditames do Estado Democrático de Direito, diferenciar entre o que o legislador impõe como norma e o que o intérprete apresenta como razões para uma determinada interpretação, do que estabelecer uma fidelidade à lei, oriunda do conceito de norma445.

Quanto à estrutura da norma de direito fundamental, Alexy confere, à distinção entre regras e princípios, a base da fundamentação jusfundamental e a chave para solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais, sem a qual não encontraremos parâmetros para a questão dos limites, das colisões e do papel dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico446.

A estrutura interna da Constituição engloba um conjunto de normas, diferenciadas em princípios e regras447, cuja distinção é, na sua origem, qualitativa, desde a tradição germânica448, na medida em que fundamentam jurídica e axiologicamente a interpretação e a aplicação do Direito449.

Na lição de Pérez Luño, as normas que versam sobre direitos fundamentais podem se encontrar positivadas segundo dois sistemas: 1- cláusulas gerais; ou, 2- casuístico; podendo- se, ainda, encontrar a combinação mista destes dois sistemas nas Constituições. No sistema das cláusulas gerais, os direitos fundamentais aparecem formulados como princípios ou valores, enquanto, no sistema casuístico, as normas de direito fundamental comportariam a forma de normas específicas que concretizam e pormenorizam o alcance dos respectivos direitos450.

445 ALEXY, 1997, p. 78. 446 Ibidem, p. 81.

447 Sobre distinção entre princípios e regras, relevante a obra de ÁVILA, 2006, p. 22 et seq.

448 Resumidamente, Larenz, que traz a definição de Esser, segundo a qual o princípio jurídico é descoberto no caso concreto e constitui uma "fórmula que sintetiza uma série de pontos de vista que, nos casos típicos, se revelaram adequados. Isto quer dizer que <<se o caso é atípico, ou se sobrevém uma modificação ainda que mínima, dos critérios culturais de valor que historicamente deram vida ao princípio, a solução pode vir a ser precisamente a contrária>>" (LARENZ, 1983, 162-163).

449 CANNARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução de A. Menezes Cordeiro. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. 96-97: Os princípios necessitariam, para sua realização, da concretização, que exige o emprego de valorações singulares de conteúdo material próprio. Por não serem capazes de aplicação imediata, faz-se imprescindível, segundo o autor, no processo de normatização ou de consolidação normativa, a intermediação de valores autônomos.

Na doutrina anglo-saxônica, sobressai-se a contribuição de Dworkin no que concerne à forma de aplicação dos princípios e regras: as regras resolver-se-iam à moda do “tudo ou nada” (all-or-nothing fashion), diante da hipótese da subsunção; enquanto os princípios devem ser cotejados pressupondo-se uma dimensão de peso (dimension of weight or importance). Na colisão entre regras, perquire-se acerca da invalidade ou não de uma delas. Por outro lado, em se considerando os princípios, essa sistemática não se verifica, porquanto, da colisão dos princípios envolvidos, não se pode afirmar a invalidade de quaisquer deles, senão que a relação é de preponderância (maior peso) 451.

A partir desse ponto, Alexy considera que os princípios jurídicos enquadram-se na condição de mandados de otimização, incluindo-se na espécie das normas, uma vez que consistem em proposições deônticas que encerram um ‘dever-ser’. Estes mandados de otimização, contudo, dependem de condições reais e jurídicas para o seu atendimento, na medida em que podem ser cumpridos em diferentes graus. As possibilidades jurídicas, assim, serão aferidas no confronto dos princípios e regras opostos. Ao contrário, as regras não contemplam seu cumprimento em vários graus, mas contêm determinações no âmbito do que seja fática ou juridicamente possível. Portanto, em sendo válida a regra, somente pode ser cumprida ou não. Com efeito, enquanto o conflito entre regras se resolve no plano da validade, o conflito entre princípios somente poderá ser resolvido pela aferição da respectiva prevalência de um dos princípios envolvidos em meio às circunstâncias reais (de fato) 452.

Alexy identifica o caráter prima facie dos princípios jurídicos, tendo em vista ordenarem que algo deva ser realizado em maior ou menor medida possível, considerando as possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios apresentam, segundo o autor, razões que podem ser substituídas por outras razões opostas, de acordo com as circunstâncias em que se encontram inseridos. Não determinam como se deva resolver a relação entre uma determinada razão e outra oposta, carecendo, então, de um conteúdo de determinação com relação aos princípios contrapostos e às possibilidades fáticas. Ao contrário, as regras contêm uma determinação no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar no que diz respeito a estas possibilidades (jurídicas e fáticas), o que conduziria à sua invalidez, do contrário, valendo o que elas ordenam453.

451 DWORKIN, Ronald. Taking rights siriously. Cambridge, Massachusetts: Harvard University, 1997, p. 24-28 452 ALEXY, 1997, p.86 et seq.

A partir do exposto, Alexy conclui que os princípios, como as regras, são considerados razões em relação às normas. Contudo, os princípios, por se referirem a possibilidades do mundo real e jurídico, caracterizam razões prima facie, enquanto as regras caracterizam razões definitivas. Configuram razões definitivas na medida em que são razões para um juízo concreto de ‘dever-ser’, que cumpre ser pronunciado, e não permite exceções. Se este juízo concreto, por seu conteúdo, torna alguém destinatário de um direito, então, teremos um direito definitivo. Em contrapartida, os princípios seriam somente razões prima facie, em virtude de as decisões sobre direitos pressuporem uma determinação de direitos definitivos, sendo que a via percorrida, a partir do direito prima facie – princípio -, ao direito definitivo, passa pela determinação de uma relação de preferência. Mas a relação de preferência, de acordo com a lei de colisão, constitui o estabelecimento de uma regra454.

Se os princípios são mandados de otimização (Alexy), porque exigem uma aplicação, em maior ou menor medida, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas verificadas, isso importa que o aplicador do Direito deve observar a realidade social e os princípios e regras concorrentes, incorporando-os à sua argumentação455. Os princípios constitucionais configuram Direito <<dúctil>>, ou elástico, por natureza, demonstrando-se incisivos e flexíveis a um só tempo, demandando uma metodologia interpretativa não eminentemente dedutiva (como a subsunção, própria do positivismo), mas que se paute pela ponderação dos demais princípios e valores envolvidos456. Essa técnica ponderativa, a seguir analisada, possibilitará, dado o caráter elástico dos princípios jurídicos, a atualização do sentido e alcance das normas constitucionais no processo de concretização, mediante a influência dos valores sociais vigentes e a mensuração do grau de satisfação ou sacrifício dos bens jurídicos em jogo e dos outros direitos concorrentes.

A realidade posta em contato com os princípios jurídicos, vivifica-se, fazendo com que os fatos a ela pertinentes incorporem valor, adquirindo uma intrínseca qualidade jurídica. Esse ‘ser’, iluminado pelos princípios jurídicos, não contém, em si, o seu ‘dever-ser’, mas exige uma tomada de posição jurídica (do legislador, do julgador, da administração e dos

454 ALEXY, 1997, p. 101-103. 455 FIGUEROA, 2003, p.179.

demais intérpretes do direito)457. Por essa forma, tem-se que os princípios desempenham um papel ou função propriamente constitucional, isto é, constitutiva do ordenamento jurídico458.

De fato, na presença dos princípios, a realidade exprime valor, e o plano jurídico encontra o plano axiológico459. Isso faz com que o Direito, pelos princípios, parta da realidade, porém a ela retorne, no sentido de ser-lhe referida460, esclarecendo, segundo Zagrebelsky, o caminho histórico que a Constituição está em condição de percorrer, todavia, permanecendo inalterada em sua formulação textual461.