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PARTE II AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS

3.1 Mutações constitucionais por interpretação

Se tomarmos a matéria na acepção de Hesse, as mutações constitucionais e seus limites somente podem ser claramente apreendidos com base na normatividade da Constituição, quando a compreensão da alteração de conteúdo da norma é entendida como modificação “no seu interior”, e não como eventos desenvolvidos externamente à Lei Maior. Para Hesse, as normas que integram o direito constitucional não se constituem somente em mandados abstratos que, alheios à realidade, se contrapõem a esta de forma desconexa. Somente quando o direito constitucional é realizado pela e na conduta humana, alcança a realidade de uma ordem vivida e torna-se conformador da realidade histórica, cumprindo sua função na vida da comunidade341 .

A norma não pode, do ponto de vista da sua realização, ser tomada alijada da realidade, mas esta, em suas respectivas circunstâncias, afetada pelo mandamento da norma, já a compõe. Considerando que as modificações da realidade social adquirem relevância dentro do âmbito normativo, então, a modificação de conteúdo de dada norma constitucional

338 JELLINEK, 1991, p. 51.

339 VERDU, 1991, p. LXXIV-LXXV. 340 JELLINEK, op. cit., 56-57. 341 HESSE, 1992, p. 99.

somente poderá se dar no interior do marco traçado pelo texto, e a fixação deste marco passa a ser uma questão de interpretação342.

A exegese do texto constitucional, como limite das mutações constitucionais, não se esgota na relação entre Direito e realidade constitucional, que encontra sua expressão na estrutura da norma, mas também reside nas funções constitucionais que envolvem, como anteriormente visto, de um lado, a constituição e preservação de um Estado eficaz e operante; e, de outro, a atuação estabilizadora, racionalizadora e limitadora do poder na vida da comunidade.

Neste sentido, considera-se mutação constitucional interpretativa aquela realizada por órgãos próprios do Estado (interpretação orgânica, realizada pelo Legislativo343, Executivo344 e Judiciário345) e pelos demais segmentos sociais participantes da exegese constitucional (interpretação não-orgânica), que, de forma direta ou indireta, complementam, desdobram e tornam efetivas as normas constitucionais. Assim entendido, os diferentes métodos interpretativos, considerados os limites da sua atuação, podem conduzir, em maior ou menor amplitude, a alterações de significado, sentido e alcance das disposições constitucionais, sem que advenha alteração na letra do respectivo texto346.

342 HESSE, 1992, p. 101.

343 Essa forma de mutação constitucional interpretativa consiste na “atividade desenvolvida pelo órgão, dotado de poder legislativo, que busca o significado, o sentido e o alcance da norma constitucional para o fim de, fixando-lhe o conteúdo concreto, completá-la e, conseqüentemente, dar-lhe aplicação”(FERRAZ, 1986, p. 65). Neste caso, o comando imperativo para essa atuação é recebido da própria Constituição. Essa atividade consiste na atribuição de desdobrar o sistema proposto pela Constituição, interpretando-a de modo a conferir sentido concreto à linguagem do constituinte, decidir e determinar o curso da criação e da aplicação subseqüente da norma constitucional. Tem-se, pois, a expedição de atos normativos com escopo à aplicação das disposições constitucionais. No magistério de Cunha Ferraz, as mutações constitucionais legislativas fundar-se-ão diretamente na Constituição, constituindo-se em mister constante e precípuo do poder legislativo em aplicar a Lei Maior (Ibidem).

344 Cuida-se de espécie de interpretação orgânica, exercida precipuamente pelo Poder Executivo, sem descartar a atuação dos demais poderes quando exercem atribuições administrativas para atender às suas necessidades internas. Opera-se mediante a expedição de atos, resoluções, ou disposições gerais ou não. Abrange atos de finalidade administrativa e política que tenham por escopo a aplicação da Constituição (Ibidem, p. 147-148). Pode se dar de forma direta: aplicando diretamente as disposições constitucionais; ou indireta: explicitando disposições infraconstitucionais para a "fiel execução" da lei (art. 84-IV,da CF/88) (Ibidem, p. 152).

345 Limitamo-nos aos esclarecimentos constantes nas notas retro, quanto às mutações constitucionais por atos dos poderes legislativo e executivo, para restringir a análise aqui realizada às mutações constitucionais operadas pelo poder judiciário em atenção à objetividade do nosso estudo e em respeito à relevância e amplitude do exame do tema quanto aos demais poderes, o que, por si só, poderia ensejar obra distinta.

346 Ibidem, p. 53-57. Importante observar a referência da autora quanto aos autores que não admitem a interpretação (ou qualquer outro processo) de mutação constitucional, citando Li Bassi. Em referência a Canotilho, enfatiza que o autor não admite mutações constitucionais pela via da interpretação, apesar de conceber mudanças de sentido das normas constitucionais em decorrência da evolução da realidade social, desde que não contrariem princípios estruturais políticos e jurídicos da Constituição. Pondera que a divergência no posicionamento deve-se mais a questões terminológicas acerca do que signifique “mutação

A necessidade de adequação no emprego das diversas formas de interpretação constitucional tem seu fulcro na legitimidade do Estado e da própria Constituição, bem como na permanente reafirmação desse pacto em compromisso com a realidade social. É nos mecanismos de interpretação que se persegue a justa medida entre procedimento e substância, sem se remeter a uma preeminência do social sobre o normativo, nem se desconsiderar o significado das forças sociais para compor a realidade constitucional.

Cunha Ferraz nos traz a conclusão de que os diversos métodos interpretativos são hábeis a produzir mutações constitucionais, em maior ou menor amplitude347. Ao passo que a aplicação da Constituição vem procedimentalizada pelos poderes estatais constituídos, de forma direta ou indireta, completando-a, desdobrando-a, ou tornando efetiva a norma constitucional, o que a autora denomina interpretação orgânica, e fica a cargo do Legislativo, Executivo e Judiciário, admite-se, também, uma interpretação não orgânica, desenvolvida pela doutrina, pela ciência jurídica e pelos juristas348.

A interpretação opera, por essa forma, a alteração do significado, do sentido e do alcance do texto constitucional, sem que a letra da Constituição seja modificada349.