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O procedimento: aspectos do controle da constitucionalidade no direito brasileiro

PARTE II AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS

3.2 Mutações constitucionais por atos do Poder Judiciário

3.2.1 O procedimento: aspectos do controle da constitucionalidade no direito brasileiro

Com base no acima exposto, ao referirmo-nos ao exercício da jurisdição constitucional, devemos fazê-lo, nos moldes de Canotilho, sob dois aspectos. Primeiro, atentando ao fato de que envolve uma superlegalidade formal e outra material376; segundo, tendo em mente que a idéia de controle de constitucionalidade traz consigo não só o dever legal de negar aplicação aos preceitos normativos inconstitucionais, mas também se dirige à tarefa de concretização377. Outrossim, na lição do autor, o Estado Democrático de Direito guarda, assentado nos respectivos princípios, uma natureza não somente material, mas igualmente procedimental378.

Visto desta forma, devemos abordar, sem a pretensão de esgotamento, o tema acerca do controle da constitucionalidade para que se logre compreender o seu papel e os seus limites quando falarmos em mutações constitucionais. Se antes evidenciamos que a concretização dos preceitos da Lei Maior opera as mutações constitucionais interpretativas, efetuando a internação dos efeitos da realidade constitucional, por meio do procedimento (elemento de seleção), e promovendo a atualização/evolução do sistema jurídico, é preciso ter presente, ao aqui discorrermos sobre a questão da jurisdição constitucional, que estamos a falar do aspecto procedimental.

Sob este prisma, exsurge que a tarefa da jurisdição constitucional, e, especialmente, do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e do processo legislativo, na ordem constitucional pátria e sob os auspícios do Estado Democrático de Direito, volta-se à garantia

376 CANOTILHO, 2000, p.784: Em se considerando a superlegalidade formal, a Constituição é norma primária da produção jurídica, enquanto a superlegalidade material reconhece à Constituição um valor normativo hierarquicamente superior que faz dela um parâmetro obrigatório para todos os atos estatais.

377 Ibidem, p.784-785.

das condições processuais para o exercício da autonomia pública e privada379, devendo, nesse mister, contemplar a abertura dos discursos legislativos de justificação do agir à luz do caráter normativo dos princípios constitucionais, bem como a ampla participação de todos os possíveis afetados pelas decisões judiciais380.

A garantia dos direitos fundamentais será obtida, por essa forma, no próprio processo jurisdicional, que não se legitima pela formação de um estabilizador consenso ético-cultural, ou pela imposição de uma tradição ética herdada, mas se justifica pelos seus pressupostos comunicacionais e pelo aporte das razões e interesses de significativa latitude, de modo a permitir a seleção dos melhores argumentos381, com escopo a obter a “resposta mais adequada”.

No que pertine ao procedimento destinado ao controle da constitucionalidade, adota- se, no ordenamento jurídico pátrio, o sistema misto, mesclando elementos do sistema austríaco e norte-americano, cindidos sob a forma concentrada e difusa.

O controle difuso de constitucionalidade, introduzido na Constituição republicana de 1891, marcado pela influência norte-americana e pelo positivismo filosófico reinante no período, vem se aperfeiçoando nas sucessivas cartas constitucionais até 1988. Já o controle concentrado foi implantado com a Emenda Constitucional 16/65, que modificou o art. 124-III, da Constituição de 1946, sob a influência do modelo Kelseniano, que, desde então, somente fez crescer o espaço legislativo das Cortes Constitucionais382.

Isso importa em superar o efeito, inicialmente atribuído às declarações de inconstitucionalidade, quanto a produzir uma redução do texto tido como inconstitucional, atingindo-se simultaneamente a sua validade e existência383, questão essa que parece não mais se sustentar perante a doutrina e jurisprudência pátrias384. Contudo, é pela via difusa que se

379 Cf. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo e controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.) Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 188-200.

380 Cf. Ibidem, p. 190-191. 381 Cf. Ibidem, p. 192.

382 CRUZ, 2004, p. 124 e p. 132-134. Ainda, sobre a evolução do controle de constitucionalidade no Direito pátrio, ver MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 189 et seq.

383 CRUZ, op. cit., p. 125.

384 Conforme precedentes do Pretório Excelso, em especial a ADIN nº 652, acerca de que o reconhecimento da inconstitucionalidade acarreta nulidade da norma. Também, segundo Teori Albino Zavascki (ZAVASCKI,

verificam as conseqüências tão-somente no plano da validade, porquanto, ao proferir decisão acerca da inconstitucionalidade de determinada lei, perante a Constituição, o juiz não retira a norma do sistema jurídico, mas deixa de conferir-lhe aplicabilidade no caso concreto, por entendê-la inválida385.

Essas considerações reforçam as conclusões antes referidas, de que, com o desenvolvimento dos atuais modelos de controle de constitucionalidade, não permanece mais a figura, anteriormente atribuída ao judiciário, de resignar-se à condição de um mero legislador negativo. Ao contrário, os fundamentos jurídicos lançados pela Corte Constitucional, nas declarações de nulidade, sejam elas totais ou parciais, comportarão um efeito concretizador386. Nas declarações totais, tais decisões configuram-se indicativos à regulamentação jurídica, quer para o parlamento (na elaboração de uma nova lei), quer para o judiciário (na solução dos casos concretos). Nas declarações parciais, poderão fazer a lei, cujo texto foi parcialmente reduzido, gerar efeitos distintos daqueles inicialmente concebidos387.

O mesmo efeito pode ser evidenciado no que tange às denominadas “interpretação conforme a Constituição” e “declaração de nulidade ou inconstitucionalidade sem redução do texto normativo”388, porquanto seus efeitos restritivos podem reduzir o alcance dos âmbitos subjetivo, objetivo, temporal ou espacial da norma, fazendo com que estas decisões produzam atos normativos gerais e abstratos, que inovam em relação ao provimento legislativo originariamente emitido pelo Parlamento389.

Embora não se atribua às decisões judiciais, proferidas no controle difuso, o efeito dos denominados stares decisis norte-americanos, que possuem efeito vinculatório para os

Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.51).

385 CRUZ, 2004, p. 125.

386 Denominamos concretizador, pois melhor nos parece do que efeito de “legislador positivo”, já que o resultado do processo não transforma o julgador em legislador - esferas de atribuições constitucionais distintas – mas densifica a norma, com escopo à sua aplicação. Contra a definição de “legislador positivo”, embora entenda superada a figura de “legislador negativo”, temos OLIVEIRA, M.A.C., 2003, p. 209.

387 CRUZ, op. cit., p. 126-127.

388 Na lição de Mendes, verifica-se a interpretação conforme a Constituição: “sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição”, Enquanto, para o mesmo autor, a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução do texto “refere-se, normalmente, a casos não mencionados expressamente no texto, que, por estar formulado de forma ampla ou geral, contém, em verdade, um complexo de normas.” (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 196-197 e p. 222).

demais órgãos do poder judiciário, perpassando o caso concreto a que originariamente jungidos390, as decisões proferidas pela via difusa/concreta podem influenciar não somente outras decisões judiciais em situações paradigmáticas, como também o legislador político. E, na lição de Cléve, a suspensão da execução de norma pelo Senado, atribui eficácia erga omnes à decisão declaratória de inconstitucionalidade, proferida pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso391.

Institutos assentados na supremacia do poder constituinte originário em face dos poderes constituídos, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção (art. 5°, LXXI, da CF/88), que infelizmente, na jurisprudência nacional, não lograram efetividade, poderiam emanar, como ocorre em outros modelos constitucionais, efeito concretizador, porque o apelo ou a solicitação para que o poder respectivo legisle atua como verdadeiro encaminhamento de projeto de lei, especialmente nos países em que se guarda maior respeito às decisões da Corte Constitucional392.

A inserção, em nosso ordenamento jurídico-constitucional, da Ação Declaratória de Constitucionalidade e da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, por sua vez, trouxe à baila a particular questão acerca da constitucionalidade formal da veiculação do efeito vinculante pela forma de lei ordinária, entendendo Sarlet que as experiências oriundas do Direito Comparado orientam no sentido de que o efeito vinculante e a flexibilização dos efeitos da declaração de constitucionalidade pela Corte Constitucional incorporam status de norma materialmente constitucional, exigindo, ao menos, delegação expressa do poder constituinte originário393.

Quanto aos mencionados institutos da tão hostilizada Lei nº 9.882/99, entende-se a preocupação da doutrina pátria, pois, para além da atividade concretizadora, que impõe, no controle de constitucionalidade, não somente a redução do texto contrário à Constituição, mas também, ao mesmo passo, que se aplique a própria Constituição, estamos diante de decisões

390 Instituto, próprio do sistema da commonn law, que possibilitava conceder efeito erga omnes às decisões da Suprema Corte americana, proferidas em grau de recurso no controle difuso de constitucionalidade. Sobre efeito dos stares decisis ver DI RUFFIA, 1988, p. 714; e GARCIA-PELAYO, 1953, p. 432.

391 CLÈVE, Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata de inconstitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 121.

392 A partir do entendimento de CRUZ, 2004, p. 129-130.

393 SARLET, Ingo Wolfgang. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: alguns aspectos controversos. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Org.) Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001, p. 158.

dotadas de normatividade secundária, que não deixam espaço de conformação para os demais aplicadores do Direito, traduzindo-se em restrição autoritária394.

Certo é, no entanto, que a força normativa da Constituição obriga a que os aplicadores jurídicos não se restrinjam somente à posição de legislador negativo, mas os torna, ao realizarem a ponderação de bens e valores, aplicando a proporcionalidade em conformidade com o aspecto procedimental, concretizadores dos preceitos constitucionais, gerando efeitos disciplinadores positivos em relação ao ordenamento jurídico.

Sem buscar clausura em uma visão estreitamente procedimentalista, no que tange à legitimidade da atividade concretizadora do julgador, posição que já afastamos retro, essa mencionada atualização do sistema não pode decorrer de atos arbitrários e pouco controláveis, fazendo depreender que, no cerne do procedimento, onde a tarefa da jurisdição constitucional é garantir a ampla e democrática participação equânime dos interessados, deverão ser observadas limitações a essa atividade. Questão que passamos, pois, a examinar.

3.2.2 A conexão entre os limites da jurisdição constitucional e os limites das mutações