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6. ARTICULAÇÕES PARA O ATENDIMENTO DAS MULHERES E DOS AUTORES

6.2 Quais as instituições que constituem as Redes?

6.2.3 Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres

As Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs) são unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação de violência. As atividades das DEAMs têm caráter preventivo e repressivo, por isso, cabe às DEAMs a realização de ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal, as quais dever ser pautadas no respeito pelos direitos humanos e pelos direitos das mulheres (BRASIL, 2011).

Com a promulgação da Lei Maria da Penha, as DEAMs passam a desempenhar novas funções, incluindo a expedição de pedidos por medidas protetivas de urgência às magistradas no prazo máximo de 48 horas (BRASIL, 2011). As DEAMs também são competentes pela retirada de pertences nas casas das mulheres em situação de violência, quando estas correm perigo iminente caso voltem às suas casas. Nessas situações, elas são encaminhadas ao CRM.

É nas DEAMs que é realizado o Boletim de Ocorrência Policial (BO) e que se inicia o Inquérito Policial. Conforme o indicado pela Lei Maria da Penha, os inquéritos são iniciados pela autoridade policial no momento em que são registradas as ocorrências (BRASIL, 2006). As ocorrências, por sua vez, são remetidas aos JVDFM para que os

115 pedidos de Medidas Protetivas sejam analisados e a audiência de acolhimento seja agendada.

A autoridade policial pode encerrar o processo, tenha sido concluído ou não, antes que este chegue ao Judiciário. Na pesquisa de Alimena (2010) no I JVDFM de Porto Alegre, RS, do total de 356 processos, apenas 17,7% (63 casos) dos inquéritos policiais iniciados foram concluídos. No mesmo estudo, conferiu-se que, em 57 casos, as vítimas retornaram à Delegacia para ―retirar a queixa‖ alguns dias após o registro da ocorrência, o que foi concedido e os casos foram encerrados (ALIMENA, 2010, p. 136). A primeira etapa do inquérito policial é o Boletim de Ocorrência. Este constitui, talvez, uma das partes mais importantes do processo de criminalização da violência doméstica e contra as mulheres, pois é a partir dele que as magistradas pautarão seus julgamentos no início do processo judicial – considerando que tal julgamento pode ser definitivo para que uma mulher permaneça viva, vide o deferimento das Medidas Protetivas. Apesar disso, em duas Varas Especializadas, as magistradas mencionaram a disparidade entre a versão encontrada nos Boletins de Ocorrência (BOs) e a versão posterior, constatada nas audiências de acolhimento. É importante lembrar que o BO é lavrado por uma autoridade policial, que escuta a vítima, interpreta o seu relato e redige o documento, que depois é assinado pela mulher; numa audiência, o relato da vítima é feito em primeira pessoa.

Uma assessora, cujo município possui Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, alegou que tal disparidade ocorre pela obrigatoriedade para que a vítima conte a sua situação de violência doméstica em vários serviços, e às vezes para mais de um profissional no mesmo serviço. O resultado da disparidade pode ser grave, levando inclusive um réu, que seria culpado(a), à absolvição:

―A gente encontra versões dissonantes, na delegacia ela disse uma coisa e aqui disse outra, e isso inevitavelmente leva à absolvição do réu quando não temos certeza da história. E essa incerteza justamente vem das diversas vezes que ela tem de contar [a história de

violência doméstica]‖ (ASSESSORA,

entrevista, 2017).

Em outro município, a magistrada comentou que as diferenças entre os casos descritos nos BOs e os casos escutados durante as audiências de acolhimento são mais frequentes quando os BOs são registrados na Delegacia de Polícia de Pronto

116 Atendimento (DPPA). O registro da DEAM, porém, pode ser insuficiente para o julgamento judicial da mesma forma.

―No que pese que tenha a DEAM aqui, tem hora de funcionamento, tem atendimento qualificado. No entanto, quando é o caso de registrar no plantão na DPPA, vêm os relatos que tu muitas vezes não sabe nem o vínculo que o ofensor tem com a vítima mulher, nem se é irmão, se é marido ou ex-companheiro. E aí dificulta para o juiz. Então, mesmo que é na própria DEAM, a gente sabe que eles não têm estrutura, então o próprio relato que vem é que não tem o depoimento dele, o dela e as testemunhas, vem só um relato genérico do que ela falou e do atendimento dela. Por isso que a audiência de acolhimento é tão importante, para ver se é o caso mesmo de conceder a MP [Medida Protetiva], ver se tem que ser revogada, ou expelida nos casos que foi indeferida (...). Muitas coisas a gente só vai descobrir na audiência, porque pelo registro do BO e pedido de Medida Protetiva, é bem deficitário‖ (JUIZA, entrevista, 2017, grifos meus).

Em um dos municípios onde não há DEAM, somente DPPA, uma assessora chegou a citar a violência institucional que a vítima pode sofrer na delegacia. Ela relacionou isso ao fato de que a delegada era uma mulher, talvez indicando uma crença de que nos serviços em que as coordenadoras são mulheres, o machismo e a violência institucional não estão presentes.

A violência institucional pode se manifestar em diversas formas de abuso, sendo a violência e negligência para com a mulher que, em situação de violência doméstica, busca assistência e atendimento (DINIZ, 2015). A violência institucional pode acontecer inclusive nos serviços especializados, como os Juizados e as DEAMs, mas também pode acontecer nos serviços não especializados, como os CREAs e DPPAs.

―Eu não sei como está agora, a delegada da polícia civil era uma mulher, mas às vezes a Delegacia não está preparada para receber essa mulher [vítima]. Principalmente nos casos das jovens atendidas, então elas são violentadas novamente várias vezes pela Delegacia de

117 Polícia para depois terem que vir aqui‖ (ASSESSORA, entrevista, 2017).

Em outro município, a magistrada comentou que, logo ao assumir a Vara Especializada, estabeleceu pessoalmente um protocolo de fluxos junto à DEAM e à DPPA para evitar a violência institucional.

―Logo que cheguei estabeleci fluxos diferentes com a delegada, para que ela aguardasse a audiência para terminar o inquérito policial. Porque ela [a delegada] estava numa situação de processo administrativo pelo atraso, mas não era culpa dela, tudo virava inquérito na DEAM, tinha milhões. Então acordamos que eu não mando mais de tudo, tivemos um diálogo muito bom‖ (JUIZA, entrevista, 2017). A magistrada contou que, após estabelecidos os fluxos, voltou a visitar os serviços, averiguando que cada computador na DPPA continha um bilhete ditado pela Delegada, que é engajada no combate à violência doméstica.

―Eu fiz um pleito para o delegado regional, fiz uma pressão bem grande, chamei toda a nossa Rede para pressionar nesse sentido: para que as mulheres sejam atendidas pela DEAM, e

nunca pela DPPA, que são policiais

plantonistas, e tem muitos relatos de que lá as mulheres são expostas e mal atendidas. Os BOs da DEAM são bem completos. Fiz reunião com a delegada, e fiz com a DPPA. Daí depois quando eu visitei a DPPA, cada computador tinha um bilhetinho "colocar se tem afastamento do lar, endereço, perguntar pra mulher tal e tal". A delegada [Fulana] da DPPA adora a [temática da] violência doméstica, então a gente conversou, afinou o que precisava ter, e ela passou a orientação para todos‖ (JUÍZA, entrevista, 2017, grifos meus).

A articulação da magistrada com as delegadas demonstra que é possível estabelecer fluxos especializados para as mulheres em situação de violência doméstica mesmo quando tal serviço não for especializado – pelo contrário, é possível que seja plantonista e que atenda a todos os crimes.

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