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3. A CRIAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DOS JVDFM

3.2 Políticas Públicas para as Mulheres no Brasil

Antes de citar as ações brasileiras ou as específicas do estado do Rio Grande do Sul, ressalta-se que, internacionalmente, inúmeros eventos aconteceram para incentivar a formulação e implementação de políticas públicas que tratassem das violências de gênero. As Organização das Nações Unidas (ONU) instituíram a Década da Mulher (1975-1985) e, ao longo da referida Década, realizaram conferências mundiais sobre as mulheres em 1975, 1980 e 1985, com o tema de Igualdade, Desenvolvimento e Paz, avaliando avanços e desafios no campo das políticas para mulheres. Uma destas conferências promovidas pela ONU foi a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim, China, em setembro de 1995, que foi considerada como um divisor de águas sobre a questão central dessas políticas de gênero (PEREIRA, 2006). A conferência de Pequim teve como marco fundamental a mudança na orientação predominante das proposições da ONU sobre a temática. De políticas e ações para mulheres, o foco passou para as desigualdades de gênero, levando em consideração que toda a estrutura da sociedade, e todas as relações entre homens e mulheres dentro da sociedade, deveriam ser reavaliadas.

Nesse sentido, a comunidade internacional ali reunida foi mobilizada para que os esforços dedicados para combater a condição desigual de vida entre homens e mulheres ocorressem de maneira transversal (gender mainstreaming) entre os diversos organismos institucionais e da sociedade civil. Em outras palavras, a transversalidade asseguraria que a perspectiva de gênero estivesse presente em todas as atividades governamentais, como nas políticas de desenvolvimento, nas pesquisas, na legislação, na alocação de recursos e, finalmente, no planejamento, implementação e monitoramento de todos os programas e políticas públicas do Estado (ONU, 2001).

No Brasil, os primeiros arranjos institucionais que tentaram responder às demandas das mulheres foram a criação do Conselho da Condição Feminina, no Estado de São Paulo, em 1983, e a criação da Delegacia de Defesa da Mulher, no mesmo estado, em 1985. A partir de 1985, foram criadas também as Casas-Abrigo e de

37 Acolhida, bem como Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), subordinadas à Polícia Civil, em outras unidades federativas (PASINATO; SANTOS, 2008). Em âmbito nacional, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), vinculado ao Ministério da Justiça, foi implantado ainda em 1985, no Governo Sarney, para promover políticas que visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País. Posteriormente, no final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 2002, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (SEDIM), também vinculada ao Ministério da Justiça (PINTO, 2006). A partir da criação do CNDM, em meados da década de 1980, com as reivindicações dos movimentos feministas e articulações como o chamado Lobby do Batom, desde a Assembleia Constituinte, a temática específica sobre a mulher passou a estar presente nas agendas de alguns órgãos do Governo, como o Ministério do Trabalho e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (CONTERATTO; MARTINS, 2016).

Entretanto, apenas a partir de março de 2003, com a criação, no primeiro Governo Lula, da Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres, subordinada diretamente à Presidência da República (SPM-PR) e com status de Ministério, é possível dizer que a estruturação das políticas para mulheres começou a ocorrer de forma mais ampla. O CNDM, que desde 1985 teve suas funções e atribuições bastante modificadas, deixou de pertencer ao Ministério da Justiça em 2003, passando a integrar a estrutura da SPM-PR, contando, em sua composição, com representantes da sociedade civil e do Governo. Isso ampliou significativamente o processo de controle social sobre as políticas públicas para as mulheres.

Paralelamente, houve mudanças na esfera jurídico-legal, com a introdução de diversas leis, como a da Lei Maria da Penha (Lei Federal n.º 11.340/2006) em 2006, e da nova Lei do Crime de Estupro (Lei Federal n.º 12.015/2009) em 2009, que caracteriza este como crime hediondo. Em 2015, impulsionada pelo trabalho de movimentos sociais e feministas, entrou em vigor a Lei Federal n.º 13.104/2015, que alterou o Código Penal e incluiu o feminicídio como homicídio qualificado. Ressalta-se, inclusive, que, alguns anos antes da promulgação da Lei Maria da Penha, em função do caso da própria Maria da Penha Maia Fernandes, denunciado internacionalmente, o Brasil havia sido condenado pela Organização dos Estados Americanos por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recebendo, como uma das penalidades, a

38 recomendação para que fosse criada uma legislação adequada a esse tipo de violência (CONTERATTO; MARTINS, 2016).

Além de lançar um plano nacional com diretrizes a serem seguidas por todos os entes federativos, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2004; 2008; 2013), a SPM-PR criou a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2007) e o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (2007), compreendendo a ação conjunta dos diversos setores envolvidos no combate, na prevenção, na assistência e a na garantia de direitos das mulheres. Salienta-se que o Rio Grande do Sul foi o último estado da Federação a assinar o Pacto, o que ocorreu somente em 20112.

3.2.1 A Rede de Atendimento e Enfrentamento às violências contra as mulheres Para implementar a Política Nacional de Enfrentamento, foi adotado em 2010, também pela Secretaria Nacional, o conceito de ―Rede de Enfrentamento‖, que salienta a relevância do papel de cada parceiro e sua área de atuação, tanto no combate à violência quanto na garantia de direitos das mulheres. A Rede de Enfrentamento é composta por formuladores, fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres, centros de educação e reabilitação aos agressores, universidades, órgãos federais, estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos, serviços de Segurança e Defesa Civil, rede de atendimento e serviços especializados e não especializados para as mulheres (BRASIL, 2011). Em consonância à Rede de Enfrentamento, a SPM-PR lançou, em 2013, o programa ―Mulher, Viver sem Violência‖, objetivando integrar e ampliar os serviços públicos existentes voltados às mulheres em situação de violência (CONTERATTO; MARTINS, 2016).

Um dos aspectos abordados pela Lei Maria da Penha, assim como pelos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres elaborados pela SPM/PR (2004; 2008; 2013), é a necessidade da gestão e atuação interdisciplinar inspirada pela temática. Nos documentos publicados pela SPM/PR (BRASIL, 2011; BRASIL, 2013; BRASIL, 2013a), consistentes em uma série de propostas que servem como fundamentação tanto para as políticas federais como para as agendas das secretarias ou dos departamentos

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O Governo do Estado do Rio Grande do Sul contou com uma Secretaria Estadual de Políticas Para as Mulheres (SPM-RS) de 2011 até o início de 2015. A extinção da SPM-RS foi uma das primeiras medidas tomadas pelo governador eleito em 2014, José Ivo Sartori – Lei n.º 14.672 de 1.º de janeiro de 2015, para fins de corte de gastos. Desde então, a manutenção e articulação entre os serviços não tem sido incentivada, conforme demonstrou o estudo de Conteratto, Martins e Leal (2017).

39 que tratam das políticas para mulheres em nível estadual e municipal (CONTERATTO; MARTINS, 2016), o conceito de gestão intersetorial/interdisciplinar é difundido como ―transversalidade‖, que é a elaboração de uma matriz estratégica que oriente uma nova visão de competências políticas, institucionais e administrativas que garantam a responsabilização dos diversos agentes públicos sobre as assimetrias de gênero (BANDEIRA, 2004). Dessa forma, a transversalidade garante um pacto de responsabilidades compartilhadas entre todos os órgãos de governo e entes federativos e, para que isso ocorra, faz-se necessário que a agenda contra a desigualdade de gênero esteja presente institucionalmente na rotina desses órgãos. Portanto, seja por meio de diretorias, secretarias ou áreas técnicas, deve haver em cada órgão a consciência de ―que homens e mulheres não possuem os mesmos problemas e necessidades, mas devem possuir os mesmos direitos‖ (BRASIL, 2011, p. 6).

Seguindo a mesma linha de raciocínio da gestão intersetorial/transversal, a atuação multidisciplinar nos serviços e equipamentos da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres também permite abordar os problemas de maneira intersetorial e combinada, pois além de realizar um exame físico e psicológico da vítima de violência, o profissional pode garantir o direito da vítima como cidadã, proporcionando, além de um atendimento humanizado e qualificado, o encaminhamento das mulheres vítimas à programas de atendimento psicológico, de saúde, de trabalho ou de assistência social, conforme cada situação demandar e o desejo e vontade de cada mulher. Essa é a importância do encaminhamento das mulheres vítimas de violência doméstica que estão em processo judicial buscando uma medida protetiva para a Rede de Atendimento. Nessa perspectiva, a multidisciplinaridade possibilita uma interação entre as disciplinas de atenção à violência doméstica, não anulando a especificidade de cada uma, e sim refletindo os limites e possibilidades de cada área (GOMES et al, 2009).

O principal documento da Rede de Enfrentamento (SPM/PR, 2011) destaca, sobretudo, a evolução do número de serviços especializados da Rede de Atendimento, o monitoramento dos Serviços da Rede de Enfrentamento e, por fim, a capacitação dos/das profissionais atuantes em tais Redes. As principais diferenças entre as Redes de Atendimento e Enfrentamento são referentes às ações de cada uma. Enquanto a Rede de Atendimento restringe-se aos serviços de atendimento (especializados e não especializados), a Rede de Enfrentamento é mais ampla, contemplando todos os eixos da Política Nacional (combate, prevenção, assistência e garantia de direitos) e incluindo

40 os órgãos responsáveis pela gestão e controle social das políticas de gênero, além dos serviços de atendimento.

A institucionalização da multidisciplinaridade e intersetorialidade na atuação e gestão dos serviços de atendimento à violência doméstica, por meio da criação das Redes de Atendimento e Enfrentamento às mulheres em situação de violência, representa uma inovação institucional governamental. A inovação institucional está relacionada, nesse caso, ao envolvimento de organismos do Poder Executivo, Judiciário e Legislativo no combate a esse tipo de violência, potencializando a articulação de parcerias, a formulação de políticas públicas e programas em conjunto, e o monitoramento destas políticas e programas através de um Protocolo de Fluxos.

3.3 O julgamento das violências contra as mulheres antes e depois da Lei Maria da