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3. A CRIAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DOS JVDFM

3.1 Gênero e violência contra as mulheres

Durante muitos anos, os modelos biológicos foram utilizados para explicar diferenças sociais e políticas entre homens e mulheres, alegando que as diferenças entre os sexos eram naturais, universais e imutáveis (STERLING, 2005; SORMANO, 2015). Na década de 1970, adotou-se o conceito de gênero a fim de explicar a condição de dominação e subordinação feminina na sociedade (SORMANO, 2015). Naquele momento, o intuito dos movimentos feministas era divergir sexo e gênero, demonstrando que as instituições sociais eram as responsáveis por produzir diferenças entre os homens e as mulheres, e não os modelos biológicos (STERLING, 2005).

Para Sormano (2015), ideologias de gênero são as ações cotidianas que alegam tais diferenças como ―naturais e imutáveis‖: ou seja, tanto crenças comuns quanto crenças religiosas, e inclusive discursos científicos. Derivadas de tais crenças, tanto as regras formais quanto as implícitas na vida em sociedade, construídas e reproduzidas nas instituições sociais, constituem a ordem de gênero, onde diferentes funções e posições são diversificadas entre ―para homens‖ e ―para mulheres‖.

As posições ―para mulheres‖, sistematicamente, recebem menor ou nenhum valor simbólico e imaginário, constituindo-se como a base de discriminação contra o feminino. Ressalta-se que as posições ―para gays‖, ―para lésbicas‖, ―para travestis‖ ou ―para transexuais‖ também são alvo de estigma e discriminação. Sormano (2015) credita a essas posições uma grande parcela da dificuldade em eliminar as formas de violências contra as mulheres; para erradica-las, não bastariam eliminar estereótipos e mudar papéis sociais, também seria necessário que todas e todos os indivíduos repensassem suas próprias condições como seres humanos – e, assim, modificassem tudo o que foi aprendido e internalizado nos processos de socialização historicamente instalados.

A noção de gênero é uma das primeiras camadas incorporadas pelos indivíduos em função do reconhecimento de si mesmo e do outro, pautando a relação individual

33 com o mundo juntamente com influências de valores culturais e, consequentemente, das estruturas institucionais (RIDGWAY, 2009). Tais valores culturais constituem os processos de socialização, sustentando as relações sociais hierárquicas. As relações sociais hierárquicas, por sua vez, são sustentadas pela noção de mando e obediência, e impulsionadas pelas instituições sociais (como a família, a escola, a religião e o trabalho). Pateman (1993), no mesmo sentido, avalia que as instituições sociais incentivam as relações sociais hierárquicas através da naturalização das desigualdades econômicas e sociais. O processo de configuração sexual seria apenas mais uma das desigualdades sociais incentivadas pelas instituições sociais.

Do mesmo modo em que há naturalização das diferenças étnicas e religiosas, ocorre a naturalização das diferenças de gênero, como se a desigualdade partisse de um ser inferior e outro superior, culminando em uma sociedade que, além de desigual, exclui política e economicamente. Desta forma, a sociedade naturaliza a violência como uma forma de relação econômica e social. Condicionando as relações sociais, essa estrutura desigual também determina as relações políticas, igualmente hierárquicas, a realizar-se sob a forma de favor, da clientela, entre outros, bloqueando as práticas de representação e participação nos governos democráticos (CHAUI, 2005).

Destaca-se que gênero se refere às redes de símbolos culturais, aos conceitos normativos, às institucionalidades e aos elementos de identidade subjetivos que, através de um processo de construção social, diferenciam os sexos, ao mesmo tempo em que articulam estes em relações de poder a partir de recursos (tendo em vista que os diferentes papeis desenvolvidos por homens e mulheres implicam em diferentes níveis de acesso e controle sobre os recursos em geral) (SORMANO, 2015). A terminologia de sexo, por outro lado, se refere apenas às diferenças biológicas entre homens e mulheres, mantendo-se em vista que os discursos biológicos também são socialmente construídos.

Assim sendo, Sormano (2015, p.24) grifa que o conceito de gênero é:

▪ Relacional: construído por interdependências construídas socialmente, isto é, não se refere às mulheres ou aos homens isoladamente, e sim às relações construídas socialmente entre os homens e as mulheres;

▪ Hierárquico: é constituído por relações de poder, porque as diferenças estabelecidas entre homens e mulheres tendem a atribuir maior importância e valor às características e atividades associadas ao masculino;

34 ▪ Instável: se modifica com o passar do tempo, pois os próprios papéis e relações sociais variam ao longo da história;

▪ Contextual: varia de acordo com a classe, cultura, etnia e geração;

▪ Institucional: sistêmico e institucionalmente estruturado, porque não se refere apenas as relações entre homens e mulheres em nível pessoal e privado, mas também a um sistema social que apoia tais relações com valores, legislações, religiões, dentre outros.

Reitera-se que a violência contra as mulheres faz parte do rol das violências de gênero. Tanto homens quanto mulheres estão sujeitos ao risco de sofrer violência. Entretanto, os dados estatísticos evidenciam uma proporção maior de mulheres assassinadas no ambiente doméstico e/ou por pessoas próximas, como parceiros e familiares, configurando uma maior vulnerabilidade feminina nesse tipo de crime (MARTINS; CONTERATTO, 2016). A especificidade destes crimes é que remetem à violência de gênero, visto que a maioria das mulheres assassinadas o foi com armas brancas (facas, paus, objetos cortantes), no ambiente doméstico, tendo como assassinos homens com os quais mantiveram relacionamentos de intimidade (NARDI; SILVEIRA; MACHADO, 2013).

É por isso que, na violência de gênero, onde teoricamente o agressor poderia ser tanto homem quanto mulher, a prática aponta a prevalência de que homens, parentes e amigos, raramente estranhos, agridem as mulheres. É por isso que os tipos mais comuns de violência contra as mulheres sejam de violência doméstica e de violência intrafamiliar (SAFFIOTTI, 2015).

As violências de gênero não se remetem somente às violências contra as mulheres, isto é certo, pois afetam um grande número de LGBTs em vários países do mundo; mas em maior proporção, as violências de gênero se materializam em crimes e outros tipos de violência contra as mulheres, pois são sustentadas pelas instituições sociais e relações sociais.

Por suas especificidades, a violência de gênero se diferencia das demais devido às crenças e valores, de modo que a própria mulher tem, muitas vezes, dificuldade de se reconhecer como vítima do crime. Em consequência, os casos de violência contra as mulheres perduram por serem predominantemente fruto de preconceito presente na consciência coletiva, não sendo vistos como uma falta relevante para amplos setores da

35 sociedade, o que torna a violência de gênero, atualmente, um dos mais graves problemas sociais dignos da atenção do setor público (VIANA; SOUZA, 2015). Assim sendo, apesar do reconhecimento social e legal de direitos femininos básicos — como o voto, o acesso ao mercado de trabalho formal e à contracepção, entre outros —, a violência contra a mulher manteve-se, em diferentes níveis e formas, em todas as sociedades contemporâneas (CONTERATTO; MARTINS, 2016).

Sormano (2015), em sua tese de doutorado, analisou as políticas de gênero do Uruguai e especificamente de Montevideo. Sua metodologia de análise relaciona duas dimensões da desigualdade de gênero: a violência contra as mulheres e a violência doméstica. A violência doméstica seria instigada pela violência contra as mulheres através de fatores de risco, que afetam desde as relações sociais até as instituições sociais e políticas (SORMANO, 2015).

Quadro 2 Dimensões de análise das políticas públicas de gênero segundo Sormano (2015)

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA VIOLÊNCIA CONTRA AS

MULHERES

Fatores de risco com eficácia causal primária (cultural e educativa)

Pautas culturais que mantêm a desigualdade de gêneros

Socialização segundo estereótipos de gênero

Organização familiar vertical e autoritária

Aprendizagem feminina de tolerância à violência

Aprendizagem masculina de utilização da força em situações de conflito Violência intraparental durante o crescimento dos filhos e filhas Modelos sociais que aceitam a violência como ―natural‖ Fatores facilitadores que aumentam a

probabilidade da violência doméstica

Fatores estressantes (econômicos, de trabalho e sociais)

Uso de álcool e/ou drogas

Fatores que contribuem para a permanência da violência doméstica

Dificuldades ou insuficiências no desenho ou aplicação da legislação Capacitação inadequada dos funcionários/as policiais e judiciais para cumprimento de normas, e dos funcionários/as da saúde para detectar situações de Violência Doméstica

36 Debilidade das redes comunitárias de apoio

Fonte: SORMANO (2015, p.51)