• Nenhum resultado encontrado

6 CONSTITUCIONALIDADE DO PODER REGULAMENTAR DAS AGÊNCIAS

6.4 Poder Regulamentar das Agências Reguladoras e o Princípio da Legalidade

6.4.3 Delegificação

A teoria da delegificação é ainda uma tese muito recente no cenário jurídico brasileiro. Parte significante e composta por importantíssimos doutrinadores do Direito Administrativo e Constitucional são explícitos ao se declararem contrários a aceitação da teoria em nosso ordenamento. O Ilustre Professor Orientador desta monografia, inclusive, vê com muitas reservas a aceitação da delegificação. Conforme salientou, considera a aceitação desta tese temerária, uma vez que praticamente nada existiria entre a Constituição e o Regulamento. Desta forma, apesar de abraçar tal teoria nesta monografia, e data venia divergir da outra corrente, entendo que ainda precisa de maiores estudos e melhores delineamentos para que possa ser efetivamente aplicada.

No uso tradicional do poder regulamentar, a Administração Pública, por meio, principalmente, de decretos e regulamentos, confere executividade a alguma diploma normativo proveniente originariamente do Poder Legislativo. Através do instituto da delegificação, o Poder Legislativo, no uso de sua liberdade para dispor sobre determinada matéria, delega à Administração Pública uma gama de atribuições normativas, permanecendo os instrumentos criados com total subordinação às leis formais instituidoras, o que guarda similaridade com o poder regulamentar tradicional.

Lecionando sobre as origens do instituto da delegificação Marcos Juruena Villela Souto (2002, p. 47) desenvolve o tema da seguinte maneira:

A deslegalização é oriunda do conceito desenvolvido na doutrina francesa da délégation de matères, adotado na jurisprudência do Conselho de Estado em dezembro de 1907 segundo as conclusões do Comissário Tardieu no caso chemin de fer de l’État du Midi, du Nord, d’Orléans, de lÓuest e de Paris-Lyon-Mediterranée - , calcada na idéia de que o titular de um determinado poder não tem dele a disposição, mas, tão somente, o exercício.

Desta forma o legislador tão somente retiraria do domínio da lei (domaine de la

loi) certas matérias, pondo-as, por conseguinte, sob o domínio dos regulamentos (domaine de

l’ordonnance).

Entendamos mais especificamente como ocorre esse fenômeno. Primeiramente, consideremos que exista uma lei formal que regule de forma geral e abstrata uma determinada matéria. Uma segunda lei, de deslegalização, é editada abrindo o mesmo tema antes regulado pela primeira lei à disposição do poder regulamentar. Pelo princípio do contrarius actus, quando uma lei está regulando uma determinada matéria, somente por outra lei poder-se-á ter inovação na matéria regulada. A segunda lei, desta forma, age com base no contrarius actus, não para inovar na matéria regulada, mas para conferir ao regulamento a competência de regular determinada matéria, o que gera uma degradação normativa da lei anterior. Permite- se, desta feita, que a lei anterior seja derrogada pela superveniência de um simples regulamento, que passará a inovar na ordem jurídica.

Eduardo García de Enterría (1998 apud ARAGÃO, 2000, p. 289) adverte que a deslegalização “não é uma lei de regulação material, não é uma norma diretamente aplicável como norma agendi, não é uma lei cujo conteúdo deva simplesmente ser completado; é uma lei que limita seus efeitos a abriri aos regulamentos a possibilidade de entrar em uma matéria até então regulada por lei”.

Alexandre Vitorino Silva (2002, on line) assim defende o instituto:

Se a lei pode revogar a lei anterior, então, com mais razão, pode reduzir o grau hierárquico de determinada norma para o nível infra-legal, possibilitando, assim, que a Administração Pública discipline a matéria “enfraquecida” via regulamento. Assim, a questão não se poria em termos de regulamentos criadores de obrigações, mas sim de leis que delegam a regulamentação ao órgão regulador. Nem haveria, propriamente, regulamento autônomo, eis que se faria nos estritos limites da lei.

Não há aqui a delegação da função legislativa, nem muito menos a invasão do Poder Executivo sobre o Legislativo. Na verdade o legislador tão somente transfere a uma

outra sede normativa a regulação de determinada matéria através do rebaixamento do grau hierárquico de uma lei.

Desta forma, não há como se vislumbrar qualquer vício de inconstitucionalidade neste procedimento, tendo em vista que sua existência está em perfeita harmonia com os princípios da legalidade, da separação dos poderes, do Estado Democrático de Direito e seus corolários e, como já apresentamos nesta monografia quando tratamos do poder regulamentar, com os entes competentes para a expedição de regulamentos.

Importante frisar que há corrente na doutrina que defende a inconstitucionalidade da delegificação, uma vez que o deslocamento de sede normativa só poderia ser disciplinado no corpo da Constituição. O Poder Legislativo não poderia deliberadamente dispor de uma competência expressamente prevista pelo Poder Constituinte. A delegificação, nesta seara, significaria a derrogação infraconstitucional de competência originariamente constitucional.

Não há na delegificação a delegação do poder ab-rogatório da lei. Em verdade a ab-rogação operada pela norma deslegalizada é uma conseqüência da degradação normativa que a lei deslegalizadora operou. Ressalte-se que a Administração Pública pode inclusive se utilizar dessa delegação não apenas no primeiro momento de redução hierárquica da norma, mas posteriormente sobre os seus próprios regulamentos. Apesar de aparentemente complexo, trata-se de uma operação de lógica jurídica.

A revogação da lei poderá ocorrer com a edição da lei deslegalizadora que modificou a competência para a entidade reguladora. A eficácia desta revogação, entretanto, poderá ser diferida para o momento em que a entidade reguladora, em conformidade coma previsão legal respectiva, edita o competente regulamento.

O centro de decisão política, desta forma, não sairá das mãos do legislador para a entidade reguladora.

Ademais, mesmo que não se considere a delegificação em sede legislativa, a Constituição Federal em várias passagens faz uso do instituto da delegificação para delegar poder regulamentar sobre determinadas matérias, entre os quais citamos os seguintes:

Art. 217 - É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

Art. 21 - Compete à União: (...)

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

Art. 177 - Constituem Monopólio da União: (...)

§ 2º - A lei que se refere o § 1º disporá sobre: (...)

III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União.

Art. 207 - As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

O Poder Legislativo, como já amplamente explanado nesta monografia, face a complexidade, dinamismo e tecnicismo da sociedade contemporânea, vem realizando um divisão entre as matérias de cunho político das que demandam uma maior agilidade e especificidade. Quanto às primeiras, mantêm sob sua titularidade. Em relação às segundas, em face de sua notória limitação para regular tais matérias, fazem os legisladores uso da delegificação, quando da delegação de poder regulamentar às Agências Reguladoras.

Sobre a delegificação e as agências reguladoras, assim enuncia Alexandre dos Santos Aragão (2000, p. 291):

A necessidade de descentralização normativa, principalmente de natureza técnica, é a razão de ser das entidades reguladoras independentes, ao que podemos acrescer o fato de a competência normativa, abstrata ou concreta, integrar o próprio conceito de regulação.

Dessa forma, parece-nos que, em princípio, as leis criadoras das agências reguladoras implicam, pelo menos em matéria técnica, deslegalização em seu favor, salvo, logicamente, se delas se inferir o contrário.

Evidente que a delegificação não se faz de forma ilimitada e indiscriminada, mormente estando sob a fiscalização do Poder Legislativo que exerce papel fiscalizatório sobre possíveis abusos.

Ademais, vale ressaltar que o art. 25 do ADCT não vedou o exercício de funções normativas pela Administração Pública. Conforme Marcos Juruena Villela SOUTO (2002, p. 52): “limitou-se a dizer que, com a exigência de reserva legal pela CF/88 em relação a matérias que a CF/67 e EC n°01/69 não a exigiam, não foram recepcionados os atos normativos infra-legais (remarque-se que estes diplomas foram editados em período de hipertrofia do Executivo não acolhida pela CF/88).”

Documentos relacionados