• Nenhum resultado encontrado

Democracia Deliberativa para além do Modelo Habermasiano

Alguns fatores18 da proposta habermasiana induzem ao questionamento desta concepção de democracia deliberativa, “na medida em que a sua combinação de princípios liberais e re-publicanos não leva a um projeto de reformulação mais profunda ou radical da institucionali-dade, ou das „regras do jogo‟ da democracia representativa tradicional” (LÜCHMANN, 2002, p. 13).

Esta pesquisadora resgata diversas contribuições de diferentes autores que desenvolvem a concepção de democracia deliberativa, ampliando, segundo ela, a perspectiva procedimenta-lista habermasiana. Destes estudos ressalta as seguintes questões:

 o resgate da ideia de soberania popular: cabe aos cidadãos não apenas influ-enciar, mas decidir acerca das questões de interesse público;

 a ênfase no caráter dialógico dos espaços públicos, enquanto formadores da opinião e da vontade;

 o reconhecimento do pluralismo cultural, das desigualdades sociais e da complexidade social: a importância dos impactos dos processos deliberativos no contexto sociocultural;

 o papel do Estado e dos atores políticos (em especial os Partidos): para criar esferas públicas deliberativas e implementar as medidas decorrentes dos pro-cessos deliberativos; e

 a importância do formato e da dinâmica institucional.

18 Entre eles Lüchmann (2002) cita a excessiva informalidade da participação social (o processo de formação da opinião e da vontade coletiva, operado dentro da esfera pública e que estabelece a mediação entre o mundo da vida e o sistema político) e a construção de consensos à luz de um procedimento deliberativo pautado na força do melhor argumento.

Uma democracia deliberativa deve assim constituir-se em processo de institucionaliza-ção de espaços e mecanismos de discussão coletiva e pública, com vistas a decidir o interesse da coletividade. Partindo de um processo cooperativo e dialógico, cabe aos cidadãos – reuni-dos em espaços públicos – a legitimidade para decidir as prioridades e resoluções levadas a cabo nas arenas institucionais do sistema estatal. Não se trata, portanto, apenas de influência ou orientação informal, trata-se de definição dos cidadãos, de cogestão das políticas públicas.

Bohman (citado por LÜCHMANN, 2002) defende um processo de justificação pautado na cooperação, no diálogo e no comprometimento dos cidadãos para com os resultados ou respostas produzidos em um espaço de interlocução pública de caráter aberto, plural e inclusi-vo (a justificativa das decisões dá-se a partir da construção do interesse comum democratica-mente acordado, daí menor preocupação com a exigência da racionalidade discursiva pautada na ideia do consenso a partir do melhor argumento).

Lüchmann (2002, p. 16) também ressalta “a importância do poder público e das organi-zações partidárias neste processo, ou a importância do projeto político-partidário enquanto elo condutor da implementação de espaços públicos deliberativos e de investimentos na inversão das prioridades sociais”.

Pode-se aqui fazer referência ao triângulo do bom governo de Matus (1996), que mesmo não sendo um deliberacionista, já chamava a atenção para a importância do projeto de gover-no, da governança e da governabilidade para o sucesso de um governo nacional ou subnacio-nal. É preciso lembrar que o elo da governabilidade, importante para o processo de legitima-ção de governos, tem tudo a ver com a construlegitima-ção da cidadania em espaços públicos de cará-ter autônomo e onde a deliberação atue (ALLEBRANDT, 2002).

Para Lüchmann (2002), tendo em vista a realidade brasileira, três argumentos justificam a centralidade do poder público e do projeto político-partidário: o primeiro, com base em Kowarick e Singer (1993), é que o associativismo civil é complexo, plural e desigual – os movimentos sociais tendem a se constituir em locais, corporativos e parciais, daí a necessida-de da coornecessida-denação do processo pelo ponecessida-der do Estado, garantindo uma maior universalidanecessida-de na aglutinação e representação dos muitos e variados interesses existentes numa sociedade tão desigual; o segundo, com base em Cohen (1999), é que o poder público passa a ter um papel importante no estímulo e desenvolvimento de mecanismos que permitam ou potencializem a

ampliação de um associativismo civil atuante e vigoroso, ao mesmo tempo em que evita a exaltação de determinados grupos ou o seu facciosismo; e o terceiro, com base em De Vita (2000), é que numa sociedade tão desigual não se garante uma relação imediata entre partici-pação, o diálogo pautado no interesse comum e a promoção da justiça social, pois uma deci-são pode ser injusta mesmo que resulte da aplicação correta de procedimentos deliberativos equitativos, daí a importância de uma instância responsável (o Estado ou o governo) pela promoção de ações tendo em vista a inclusão, de criação de mecanismos de salvaguarda do princípio da igualdade participativa e de promoção de medidas com efetiva justiça social.

A autora, com base em Cohen, afirma a importância de formas participativas mais ins-titucionalizadas ou formalizadas, que viabilizem tanto a discussão pública de um sujeito plural como o poder de decisão sobre ideais ou princípios vinculados à promoção do bem comum.

Segundo Bohman (2000, p. 49), para obter resultado positivo de experiências de demo-cracia deliberativa é necessário criar condições sociais e arranjos institucionais onde se prati-que o uso público da razão “a deliberação é pública na medida em prati-que estes arranjos permi-tam o diálogo livre e aberto entre cidadãos capazes de formular juízos informados e racionais em torno às formas de resolver situações problemáticas”.

Portanto, pode-se entender a democracia deliberativa como um processo de instituciona-lização de um conjunto de práticas e regras, tanto formais quanto informais, que, pautadas no pluralismo, na igualdade política e na deliberação coletiva, minimizam os óbices para a coo-peração e o diálogo livre e igual e, desta forma, interferem positivamente nas condições de desigualdades sociais.

Lüchmann (2002) aponta ainda três questões centrais para a dimensão institucional: as instituições possuem um caráter de estabilidade ou durabilidade sob a forma de normas ou re-gras formalizadas que organizam as diferentes atividades sociais; além disso, as instituições impactam, regularizam e modelam comportamentos, ou seja, elas empoderam os sujeitos so-ciais, estruturam novas agendas, mudam preferências e comportamentos; em terceiro lugar, as instituições sofrem influências e mudanças provenientes da correlação de forças do tecido so-cial.

Aparece aí também a importância da relação Estado/sociedade, já que a democracia de-liberativa exige a participação ativa e propositiva da sociedade civil e do Estado na reconfigu-ração dos mecanismos tradicionais de decisão política. A democracia necessita de um formato institucional que possibilite a realização de um processo deliberativo que viabilize a amplia-ção e a qualificaamplia-ção da participaamplia-ção.

A democracia deliberativa é um modelo de deliberação política, caracterizado por pres-supostos teórico-normativos que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva. Esta participação exige a atuação de cidadãos ativos no processo coletivo de de-liberação pública. Por isso a discussão em torno de alguns desses conceitos e pressupostos é importante. É o que se verá a seguir.

2 SOCIEDADE CIVIL, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL

É importante discutir alguns dos entendimentos acerca de sociedade civil, já que é um dos conceitos básicos no contexto dos estudos sobre democracia deliberativa, especialmente no processo de análise e entendimento das relações interinstitucionais e interações, envolven-do os governos, as empresas e as instituições e segmentos que integram a sociedade civil. Mas o conceito de sociedade civil guarda forte relação com os conceitos de cidadania e participa-ção social, como veremos a seguir.

Documentos relacionados