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Democracia ideal x democracia real: a poliarquia de Robert Dahl

Uma das principais contribuições de Robert Dahl para a ciência política foi haver descrito as características de um sistema considerado democrático, bem como haver introduzido o conceito de poliarquia. O autor estabelece diferenças entre um sistema democrático ideal e a democracia real em sociedades de larga escala, a qual denomina poliarquia. A poliarquia, originária da junção de palavras gregas, significa o “governo de muitos”. Ela consiste na aproximação imperfeita da democracia ideal ou, como o próprio autor diz, “a consecução parcial desse objetivo”.124 A democracia ideal seria um objetivo a ser perseguido. Contudo, o que, na prática, é identificado como democracia não é senão um arranjo institucional poliárquico.

Segundo Dahl, a democratização pode ser considerada “como formada por pelo menos duas dimensões: contestação pública e direito de participação”. Por conseguinte, a democracia seria o regime político que mais atinge esses dois objetivos, ou, em outras palavras, que garante efetivamente as duas dimensões citadas. Todavia, ressalta Dahl que, como outras dimensões podem ser incorporadas pelos sistemas políticos, nenhum dos regimes instituídos

123“«Democracia» es una palabra que implica largos discursos.” (SARTORI, Giovanni. Qué es la

democracia?. Trad. Miguel Angel González Rodríguez, María Cristina Pestellini Laparelli Salomon, Miguel Ángel Ruiz de Azúa. Madrid: Taurus, 2007, p. 24.)

no mundo real pode ser considerado plenamente democrático, preferindo referir-se a eles como poliarquias.125

As poliarquias podem ser pensadas então como regimes relativamente (mas incompletamente) democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública.126

Entre os critérios de uma democracia ideal, segundo Robert Dahl, estariam: a participação efetiva e em igualdade de todos os membros de uma sociedade, a igualdade de voto, o entendimento esclarecido, a possibilidade de controle do programa de planejamento por todos, a inclusão dos adultos e a afirmação dos direitos fundamentais.127 Em resposta a seu questionamento sobre o porquê da democracia, Dahl sustenta que, com ela, evita-se a tirania e garantem-se direitos essenciais, liberdade geral, autodeterminação, autonomia moral, desenvolvimento humano, proteção dos interesses pessoais essenciais e igualdade política, sem falar na busca pela paz e prosperidade, tão caras ao mundo contemporâneo.128

125DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005, p. 29- 31.

126Ibid., p. 31.

127“Creo que una democracia ideal requeriría como mínimo estas características:

Participación efectiva. Antes de que una política sea adoptada por una asociación, todos los miembros del demos deben tener oportunidades iguales y efectivas para hacer saber a los otros miembros sus pontos de vista sobre lo que debería ser la política.

Igualdad en la votación. Cuando llegue el momento en el cual finalmente se tomará la decisión, cada miembro debe tener una oportunidad igual y efectiva de votar, y todos los votos deben ser contados por igual.

Adquisición de conocimiento iluminativo. Dentro de un período de tiempo razonable, cada miembro tendrá oportunidades iguales y efectivas de aprender sobre políticas alternativas relevantes y sus consecuencias probables.

Control final de la agenda. El demos tendrá la oportunidad exclusiva de decidir cómo (y si) sus miembros eligieron qué asuntos formarán parte de la agenda. Así, el proceso democrático que requieren las tres características anteriores nunca se cerrará. Las políticas de la asociación siempre estarían abiertas al cambio por el demos, si sus miembros eligieran hacerlo.

Inclusión. Cada miembros del demos tendrá derecho a participar en las formas ya descritas: participación efectiva, igualdad en la votación, búsqueda de un conocimiento iluminativo de los asuntos y el ejercicio del control final sobre la agenda.

Derechos fundamentales. Cada una de las características necesarias de una democracia ideal prescribe un derecho que es en sí una parte necesaria del orden de una democracia ideal: el derecho a participar, el derecho a que el voto de uno se cuente igual que el de los demás, el derecho a buscar el conocimiento necesario para entender el asunto en la agenda, y el derecho a participar en relaciones de igualdad con los conciudadanos al ejercer el control final sobre la agenda. La democracia consiste, entonces, no sólo en procesos políticos. También es, necesariamente, un sistema de derechos fundamentales.” (Idem, La igualdad política. Trad. Liliana Andrade Llanas. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2008, p. 23-24.)

Em democracias diretas de pequena escala, os ideais democráticos são mais facilmente atingidos129, o que não se percebe em Estados maiores que adotam o regime democrático representativo. Robert Dahl reconhece que a democracia ideal está longe de ser alcançada, mas, ainda assim, ao se questionar sobre quais instituições políticas requerem uma “democracia em grande escala”, elenca algumas exigências mínimas para um determinado Estado ousar estar mais próximo da democratização. São elas:

- Funcionários eleitos. O controle das decisões do governo sobre a política é investido constitucionalmente a funcionários eleitos pelos cidadãos.

- Eleições livres, justas e freqüentes. Funcionários eleitos são escolhidos em eleições freqüentes e justas em que a coerção é relativamente incomum.

- Liberdade de expressão. Os cidadãos têm o direito de se expressar sem o risco de sérias punições em questões políticas amplamente definidas, incluindo a crítica aos funcionários, o governo, o regime, a ordem socioeconômica e a ideologia prevalecente.

- Fontes de informação diversificada. Os cidadãos têm o direito de buscar fontes de informação diversificadas e independentes de outros cidadãos, especialistas, jornais, revistas, livros, telecomunicações e afins.

- Autonomia para as associações. Para obter seus vários direitos, até mesmo os necessários para o funcionamento eficaz das instituições políticas democráticas, os cidadãos também têm o direito de formar associações ou organizações relativamente independentes, como também partidos políticos e grupos de interesses.

- Cidadania inclusiva. A nenhum adulto com residência permanente no país e sujeito a suas leis podem ser negados os direitos disponíveis para os outros e necessários às cinco instituições políticas anteriormente listadas. Entre esses direitos, estão o direito de votar para escolha dos funcionários em eleições livres e justas; de se candidatar para os postos eletivos; de livre expressão; de formar e participar de organizações políticas independentes; de ter acesso a fontes de informação independentes; e de ter direitos a outras liberdades e oportunidades que sejam necessários para o bom funcionamento das instituições políticas democráticas em larga escala.130

Relacionando essas instituições aos critérios de uma democracia ideal, Robert Dahl apresenta o seguinte quadro esquemático:

129DAHL, Robert A. La igualdad política. Trad. Liliana Andrade Llanas. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2008, p. 25.

Quadro 1 – Democracia real x democracia ideal131

Em uma unidade tão grande como um país,

são necessárias estas instituições políticas: para satisfazer estes critérios da democracia ideal:

1. Representantes eleitos Participação efetiva

Controle da agenda

2. Eleições livres, justas e frequentes Voto igualitário

Participação efetiva

3. Liberdade de expressão Participação efetiva

Conhecimento esclarecido Controle da agenda

4. Fontes de informação alternativas Participação efetiva

Conhecimento esclarecido Controle da agenda

5. Autonomia de associação Participação efetiva

Conhecimento esclarecido Controle da agenda

6. Inclusão de todos os membros do demos Participação efetiva do demos Voto igualitário

Conhecimento esclarecido Controle da agenda

Fonte: DAHL, 2008, p. 27.

Tomando como exemplo a liberdade de expressão, essa é necessária para satisfazer a participação efetiva, o entendimento esclarecido e o controle do programa.

Para se adquirir uma compreensão esclarecida de possíveis atos e políticas de governo, também é preciso a liberdade de expressão. Para adquirir a competência cívica, os cidadãos precisam de oportunidades para expressar seus pontos de vista, aprender uns com os outros, discutir e deliberar, ler, estudar e questionar especialistas, candidatos políticos e pessoas em cujas opiniões confiem – e aprender de outras maneiras que dependem da liberdade de expressão.

[...], sem a liberdade de expressão, os cidadãos logo perderiam sua capacidade de influenciar o programa de planejamento das decisões do governo. Cidadãos silenciosos podem ser perfeitos para um governo autoritário, mas seriam desastrosos para uma democracia.132

Quanto à criação e ao funcionamento de associações, Robert Dahl reconhece que a autonomia dos cidadãos em criar associações políticas – como grupos de interesse, partidos políticos e organizações de lobbying – é necessária para satisfazer o controle do programa, o conhecimento esclarecido e a participação efetiva, critérios de uma democracia ideal.

[...], se uma grande república exige que representantes sejam eleitos, então, como as eleições poderão ser contestadas? Se um grupo quer obter essa

131DAHL, Robert A. La igualdad política. Trad. Liliana Andrade Llanas. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2008, p. 27.

vantagem, não a desejarão também outros que discordem de suas políticas? Por que a atividade política deveria ser interrompida entre as eleições? Os legisladores podem ser influenciados; as causas podem ser apresentadas, políticas podem ser implementadas, nomeações podem ser procuradas. Assim, ao contrário de uma cidadezinha, a democracia na grande escala de um país faz com que as associações políticas se tornem ao mesmo tempo necessárias e desejáveis. Seja como for, como poderiam ser evitadas sem prejudicar o direito fundamental dos cidadãos de participar efetivamente do governo? Numa grande república, eles não são apenas necessários e desejáveis, mas inevitáveis. Associações independentes também são uma fonte de educação cívica e de esclarecimento cívico: proporcionam informação aos cidadãos e, além disso, oportunidades para discutir, deliberar e adquirir habilidades políticas.133 (grifo nosso)

A adoção de um regime poliárquico traz resultados significativos, afirma o autor. O primeiro deles é que uma poliarquia garante oportunidades para o exercício da oposição ao governo, permite a formação de organizações políticas e a manifestação de opiniões públicas, sem o risco e o receio de sofrer represálias governamentais, bem como assegura eleições secretas nas quais os candidatos de diferentes partidos concorrem pelos votos dos eleitores, e aquele que sai derrotado entrega pacificamente os cargos ao vencedor. Em uma poliarquia, o sufrágio universal, estendido a novos grupos, possibilita que candidatos próximos às classes agraciadas com ele ganhem uma fatia maior dos cargos eletivos. Isso, contudo, não significa dizer que as lideranças parlamentares representem uma amostragem perfeita da sociedade, mas que, em geral, sejam consideravelmente mais representativas.134

“Na medida em que um sistema torna-se mais competitivo e inclusivo, os políticos buscam o apoio dos grupos que agora podem participar mais facilmente da vida política”.135 Isso provoca mudanças inclusive no sistema partidário, como a emersão de partidos mais eficazes em atrair as classes médias, a aproximação deles com seus seguidores e potenciais eleitores, além do aumento da politização do eleitorado.136 Em uma poliarquia, sustenta Dahl, as variadas oportunidades de expressar, organizar e representar preferências políticas também possibilitam maior variedade de preferências e interesses passíveis de representação137 e, sendo

133DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2009, p. 111- 112.

134Idem, Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005, p. 41-42. 135Ibid., p. 43.

136Ibid., p. 44-45. 137Ibid., p. 46.

[...] menores os obstáculos à contestação e maior a proporção da população incluída no sistema político, mais dificuldade terá o governo de um país em adotar e aplicar políticas que exijam o exercício de sanções extremas contra uma porção maior do que uma pequena porcentagem da população; e menos provável, também que o governo tente fazê-lo.138

Apesar de profundamente focado em uma constatação substancial da manifestação democrática, a partir da análise de estruturas ditas poliárquicas, Robert Dahl fornece elementos conceituais, essenciais para o repensar da democracia e dos desafios para a sua operacionalização em um contexto social pluralista. Sua percepção pode não ser a melhor do mundo, mas demonstra haver a sociedade encontrado caminhos para garantir mecanismos de participação social nas decisões políticas, a exemplo do que ocorre quando do exercício da liberdade e autonomia de criação de associações.

1.3 Democracia representativa: crise de legitimidade da classe política e insuficiência de