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Os fundamentos constitucionais do Terceiro Setor

2.6 Tratamento jurídico do Terceiro Setor

2.6.1 Os fundamentos constitucionais do Terceiro Setor

A Constituição Federal de 1988 – a Constituição Cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães – enuncia, entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, a cidadania, uma expressão que, ao longo da história, apresentou diversos significados. Derivada do latim civis – civitas (homem livre – cidade) e activa civitas (ação do homem livre

346CAGGIANO, Monica Herman Salem. Oposição na política: proposta para uma rearquitetura da

democracia. São Paulo: Angelotti, 1995, p. 94. 347Ibid., p. 87.

348LEMBO, Cláudio. Participação política e assistência simples no direito eleitoral. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 50.

na cidade e no Estado), possui, em seu núcleo conceitual inicial, a “idéia de participação dos homens livres no governo da polis grega e da civitas romana”.349

Nos séculos XVIII e XIX, com o desenvolvimento do conceito de nação, a cidadania passaria a ser compreendida como um atributo concedido somente aos nacionais eleitores. Tratava-se de uma visão mais conservadora da cidadania. Uma cidadania de dimensão vertical, segundo a qual o Estado conferiria a seus membros o direito de participar de suas decisões políticas, mediante o exercício de direitos eleitorais de votar e ser votado, pouco acrescentando, contudo, algo em relação às garantias sociais.350

Na França do século XVIII, segundo Ana Maria D’Ávila Lopes, a noção de cidadania restringia-se apenas à ideia de titularidade de direitos políticos e de alguns deveres políticos, a exemplo do patriotismo, da lealdade, do cumprimento das leis e do respeito ao governo. Esse traço característico da cidadania do século XVIII, segundo a autora, ficaria evidente em uma análise da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Nessa declaração, teria sido estabelecida uma distinção entre o status personae (personalidade jurídica) e o status

civitatis (cidadania).

[...], a titularidade de todos os direitos foi atribuída ao homem (art. 1º), enquanto que ao cidadão foram conferidos apenas os direitos e deveres (os únicos) políticos (art. 6º). A separação entre homem e cidadão não apenas era uma simplista distinção terminológica presente no título da famosa

Declaração, mas refletia uma concepção que buscava defender a idéia do indivíduo como um ser superior ao Estado, cujos direitos eram anteriores e contra este. Indivíduo que concentrava todos os direitos, mas cujos deveres eram mínimos. A rigor, a partir do momento em que se diferencia o homem do cidadão, o indivíduo torna-se praticamente um ser sem nenhum dever para com a sua sociedade.351

A partir de Marshall, nos anos 1950, percebe-se, no entanto, uma primeira superação das margens conceituais da cidadania liberal. Em sua obra Cidadania, classe social e status, o autor atribui ao vocábulo um conceito mais alargado, compreendendo-o como um status composto por três elementos: civil, político e social.

349TAVARES, André Ramos; et. al. (org.). Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva: Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais, 2007, p. 50.

350SMANIO, op. cit., p. 336.

351LOPES, Ana Maria D’ávila. A cidadania na Constituição Federal de 1988: redefinindo a participação política. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira (coord.). Constituição e

O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. [...]. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. [...]. O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acôrdo com os padrões que prevalecem na sociedade.352

Mais recentemente, contudo, a cidadania teria assumido uma nova dimensão, notadamente em um cenário internacional cosmopolita. Mesmo com o advento da globalização econômica, a sociedade contemporânea não conseguiu resolver os problemas básicos dos direitos da cidadania expressos por Marshall. Assim, pautado no valor da dignidade humana, o papel de cada cidadão no interior do Estado se ressignificou, imprimindo à cidadania uma nova dimensão horizontal. Nesse contexto, para Gianpaolo Smanio, além de a cidadania incutir uma condição objetiva de acesso a direitos, incorporou também o comprometimento da sociedade para com os interesses de toda a comunidade, a exemplo da defesa do meio ambiente, da responsabilidade social, da transferência nos negócios públicos, da distribuição de renda e da inclusão social. A cidadania, portanto, seria compreendida como um direito, mas também indicaria uma intersubjetividade entre os cidadãos, de forma a reconhecer entre eles a existência de um dever de solidariedade.353

Ainda hoje, é possível encontrar autores, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que compreendem a cidadania como um atributo da nacionalidade e do exercício exclusivo de direitos políticos, talvez influenciado pelo conceito liberal de cidadania. Assim, afirma o autor que “a cidadania (em sentido estrito) é o status de nacional acrescido de direitos políticos (stricto sensu), isto é, o poder participar do processo governamental, sobretudo pelo voto”. O autor sustenta, ainda, ser possível identificar uma cidadania ativa – o poder conferido, pela Constituição, aos “cidadãos” de escolherem seus representantes – e uma cidadania passiva – o poder de ser escolhido para o exercício de um mandato político.354

Em sentido semelhante, Alexandre de Moraes, em análise ao artigo 14 e seguintes da CF/88, afirma serem os direitos políticos – direito ao sufrágio, alistabilidade, elegibilidade,

352 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 63-64. 353 SMANIO, op. cit., p. 336-337.

354 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141- 142.

iniciativa popular de lei, ação popular e organização e participação em partidos políticos – “direitos públicos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitis, permitindo- lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da cidadania”.355

José Afonso da Silva também reconhece a cidadania como um “atributo político, decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política”. Os direitos de cidadania, segundo o autor, seriam adquiridos mediante o alistamento eleitoral. José Afonso diferencia, no entanto, nacionalidade de cidadania, embora reconheça haver entre elas uma conexão. “Nacionalidade é o conceito mais amplo do que cidadania, e é o pressuposto desta, uma vez que só o titular da nacionalidade brasileira pode ser cidadão”.356

Apesar da reconhecida contribuição doutrinária desses autores, Gianpaolo Smanio sustenta ter a CF/88 rompido com a tradição liberal de cidadania. Na esteira de Marshall, a CF/88 teria incluído em seu conceito de cidadania, além dos direitos políticos, os direitos civis e sociais. E, ao prever, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária357, teria ainda assegurado à cidadania uma dimensão horizontal, compreendendo, além de direitos políticos e fundamentais, um dever de solidariedade de todos os cidadãos.358

É nesse conceito ampliado de cidadania que se encontram os fundamentos constitucionais da existência e evolução do Terceiro Setor. Note-se, ainda, que a CF/88 elencou, entre os fundamentos de nossa democracia, o pluralismo político, o que significa reconhecer ser a nossa sociedade formada por elementos plurais, por vezes até dissonantes, os quais, contudo, não devem ser abafados, e sim enaltecidos, para que seja mantido o nosso caráter democrático. As organizações do Terceiro Setor encontram, também, no pluralismo a possibilidade de se afirmarem como atores de nossa democracia.

O conceito ampliado de cidadania inclui em seu âmbito os direitos civis que também advogam a favor do reconhecimento de um fundamento constitucional do Terceiro Setor.

355MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 547.

356SILVA, op.cit., p. 345-346.

357Artigo 3, inciso I, da Constituição Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. 358SMANIO, op. cit., p. 340-341.

Nesse sentido, a CF/88 afirmou entre os direitos individuais e coletivos, expressos no artigo 5º, a plena liberdade de associação para fins lícitos, sendo vedada a de caráter militar (inciso XVII). Previu, também, que a criação de associações independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal (inciso XVIII). “As associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado” (inciso XIX). Ademais, “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado” (inciso XX). “As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial e extrajudicialmente” (inciso XXI). No que tange à vida associativa fundada em preceitos religiosos, apregoa, ainda, ser a liberdade de crença inviolável, assegurado “o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias” (inciso VI).

Nos dizeres de Cláudio Lembo, “a liberdade de associação aponta para a possibilidade de uma união voluntária e estável das pessoas”, uma liberdade que “diz respeito a todos os tipos de formações sociais, salvo a familiar, na qual o vínculo deixa de ser voluntário para se tornar obrigatório”359. Em sede constitucional, são elementos da associação, segundo José Afonso da Silva: a existência de uma base contratual; a permanência, o que a diferenciaria da reunião temporária; e a perseguição de um fim lícito, não contrário ao direito.360

Como salientado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a liberdade de associação não se encontrava reconhecida nas primeiras declarações de direitos, dada à forte influência das ideias de Rousseau, que desacreditava na existência de agrupamentos, agremiações ou associações atuando como intermediários da relação entre os indivíduos e o Estado. Segundo Ferreira Filho, essa posição viria a ser revista, no século XIX, sob a influência de Stuart Mill e Alexis de Tocqueville361. No Constitucionalismo Brasileiro, conforme relatado em uma das seções deste capítulo, a liberdade de associação ganhou o status constitucional somente a partir da Constituição de 1891. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a ausência de previsão constitucional da liberdade de associação na Carta de 1824 e a mudança de posição na

359LEMBO, Cláudio. A pessoa: seus direitos. Barueri: Manole, 2007, p. 196. 360SILVA, op. cit., p. 267.

Constituição de 1891 é reflexo da evolução histórica das declarações de direitos por todo o mundo.362

Recentemente, é possível notar, ainda, a emersão de posições como a de Robert Dahl, que, ao tecer considerações sobre o seu conceito de poliarquia – a democracia real de larga escala –, reconhece, na liberdade e na autonomia de criação de associações, uma das exigências mínimas para que determinado Estado esteja mais próximo do ideal democrático. Assim, de acordo com Dahl, “para obter seus vários direitos, até mesmo os necessários para o funcionamento eficaz das instituições políticas democráticas, os cidadãos também têm o direito de formar associações e organizações relativamente independentes”363, a exemplo daquelas integrantes do Terceiro Setor.