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Democracia indireta ou representativa

2.2 FORMAS DE DEMOCRACIA

2.2.2 Democracia indireta ou representativa

A democracia indireta ou representativa é experiência moldada no Estado moderno, em que a vontade popular ingressa na ordem jurídica de forma mediata, ou seja, por intermédio de representantes do povo.

O poder político na democracia direta, nos moldes da experiência grega, era exercido imediatamente pela vontade do povo, sem a necessidade de interlocutores. Essa ordem democrática tornou-se imprópria e, de certa forma, impraticável no Estado moderno, fundado dentro de uma nova realidade geográfica, de conceitos e valores.

Com efeito, razões pragmáticas podem justificar a necessidade do sistema representativo, como forma de organização democrática do poder no Estado contemporâneo, como por exemplo, as grandes dimensões territoriais, fruto da transmudação do Estado/cidade em Estado/nação, o contingente populacional e a nova percepção política assumida pelo homem moderno.

Não se pode negar que o homem coevo, ao revés do cidadão ateniense, que desconhecia a vida civil e, outrossim, dedicava-se com exclusividade aos interesses públicos da pólis grega, apenas acessoriamente participa da vida política de seu Estado. É um homem preocupado com suas necessidades materiais, com suas obrigações profissionais, familiares e pessoais.

É inconteste, por conseguinte, que o Estado moderno, em virtude de vários fatores que o diferencia da pólis grega e que o torna peculiar diante dos modelos conhecidos alhures, não consegue mais se amoldar à técnica democrática experimentada pelos atenienses clássicos, sobretudo, pelo exercício imediato da vontade popular como forma de gerenciamento supremo da coisa pública, pelo menos, não como se praticou na Grécia antiga. Conforme relatado, a grande extensão territorial, o imenso contingente populacional, as complicadas relações sociais contemporâneas, dentre outros fatores, são marcas indiscutíveis da dificuldade, ou até impossibilidade do uso da técnica de conhecimento e captação da vontade dos cidadãos de forma direta.

Evidentemente, essa realidade criou um obste para o regresso da democracia imediata. Por outro lado, parece indiscutível hodiernamente, pelo menos para os Estados que defendem o poder político como consectário natural da vontade popular, que um governo legítimo só o será através da manifestação soberana do povo, seja nas prósperas Repúblicas da Europa e da América do Norte, seja nas Monarquias Seculares do Reino Unido, da Suécia, do Japão, ou ainda nas nascentes e incipientes democracias latino-americanas.

O poder, sob uma ótica puramente democrática, sempre será o reflexo da vontade do povo, materializada e exteriorizada por intermédio de um governo soberano. Desse modo, só há uma saída para se garantir um poder legítimo em condições de atender à complexidade social do Estado contemporâneo, vale dizer “um governo democrático de base representativa” 27, como bem acentuou Paulo Bonavides.

A democracia representativa, outrossim, caracteriza-se como um complexo de instituições que põem regras à participação popular no processo político. É, portanto, uma forma mediata de exercício da vontade popular, cuja manifestação se dá por intermédio de

representantes indicados pelo corpo de eleitores, que compõe uma nação territorial e politicamente organizada.

Essa representação popular, tão aludida pela doutrina constitucional moderna, vem estribada em um mandato político que constitui o elemento básico da democracia representativa.

A outorga política instituiu a grande arca da aliança da democracia moderna, que vê no mandato eletivo a forma perfeita e legítima de exercício da força popular na administração do poder. É, assim, por intermédio dessa concessão representativa, que o povo, de forma oblíqua, defende suas convicções políticas, ideológicas e até religiosas dentro das complexas regras do poder coevo e, por conseguinte, confere legitimidade ao governo escolhido como gestor dos negócios estatais.

O mandato representativo, não se deve deixar de lembrar, é invenção do Liberalismo burguês, como resposta à centralização do Absolutismo europeu do Século XVIII. Veio como uma forma de instituir um poder temporal e racional baseado na vontade popular, mas exercido por via de representantes livremente escolhidos. Foi, sem dúvida, um meio de assegurar os ideais políticos do novel Estado liberal, que defendia uma fulgente distinção entre Estado e sociedade e uma relação abstrata entre povo e governo, como bem definiu José Afonso da Silva: “O mandato representativo é criação do Estado liberal

burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade, e mais uma forma de tornar abstrata a relação povo-governo”.28

Malgrado a importância dada pelo professor José Afonso da Silva ao mandato político, críticas severas existem contra tal instituto, mormente pela desvinculação sabida entre os mandatários e os mandantes, quando aqueles são eleitos.

28 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 12. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p.

Goffredo Telles Júnior advoga a tese de que inexiste, em absoluto, um verdadeiro mandado no sistema representativo atualmente conhecido, uma vez que o mandato, de acordo com sua natureza jurídica, deve vincular o mandatário à vontade do mandante, sob pena de imediata revogação dos poderes outorgados. Hodiernamente, o eleito delibera e atua por sua própria vontade, sem qualquer vínculo de subordinação com quem lhe conferiu ditos poderes. Assim, apenas por ficção jurídica seriam representantes do povo.29

Hans Kelsen também tece severas críticas ao sistema representativo, em razão da ausência de vinculação entre os interesses dos representados e a atuação dos representantes. Para referido autor, a caracterização de um verdadeiro mandato passaria pela obrigatoriedade dos mandatários executarem a vontade dos mandantes, sob pena destes cassarem os mandatos outorgados.30

Finalizando sua retórica, Telles Júnior deduz que:

Em verdade, o que acontece é o seguinte: embora sem mandato, destituídos dos poderes da representação autêntica, os parlamentares são chamados representantes para lembrar-lhes que se devem portar como se fossem, realmente, representantes e mandatários; como se a sua missão tivesse a natureza do mandato, cumprindo-lhes cuidar, em consequência, não de seus próprios interesses, mas dos interesses da coletividade.

O que se deseja, como o poder sugestivo de uma palavra, é conseguir, na prática, o que, em teoria, não é possível demonstrar. O que se quer é que os parlamentares se conduzam como verdadeiros representantes! Que sua ação vise somente ao que lhes parecer ser, de fato, os interesses da Nação e do povo!

No quadro de tais aspirações, proclamar que o regime político é representativo é firmar um preceito de dever, um princípio moral. A palavra representação é mantida por um motivo deontológico, designando o que deve ser, ou o que deveria ser, a simbolizar, portanto, um ideal político.31

29 JÚNIOR, Goffredo Telles. O povo e o poder: o conselho de planejamento nacional. São Paulo: Malheiros.

2003.

30 "Para se estabelecer uma verdadeira relação de representação, não basta que o representante seja nomeado ou

eleito pelos representados. É necessário que o representante seja juridicamente obrigado a executar a vontade dos representados, e que o cumprimento dessa obrigação seja juridicamente garantido. A garantia típica é o poder dos representados de cassar o mandato do representante caso a atividade deste não se conforme aos seus desejos". KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed., Trad. Luis Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 414.

31 JÚNIOR, Goffredo Telles. O povo e o poder: o conselho de planejamento nacional. São Paulo: Malheiros.

Referida percepção também é sensibilizada por José Afonso da Silva, que assim acentua:

Segundo a teoria da representação política, que se concretiza no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual; é geral, livre, irrevogável em princípio, e não comporta ratificação dos atos do mandatário. Diz-se geral, porque o eleito por uma circunscrição ou mesmo por um distrito não é representante só dela ou dele, mas de todas as pessoas que habitam o território nacional. É livre, porque o representante não está vinculado aos seus eleitores, de quem não recebe instruções alguma, e se receber não tem obrigação jurídica de atender, e a quem, por tudo isso, não tem que prestar contas, juridicamente falando, ainda que politicamente o faça, tendo em vista o interesse na reeleição (...). É irrevogável, porque o eleito tem o direito de manter o mandato durante o tempo previsto para sua duração, salvo perda nas hipóteses indicadas na própria Constituição.32

Paulo Bonavides analisa essa desvinculação, existente entre representantes e representados, sob a visão teórica da duplicidade do sistema representativo, enfatizando que:

A duplicidade foi o ponto de partida para a elaboração de todo o moderno sistema representativo, nas suas raízes constitucionais, que assinalam o advento do Estado liberal e a supremacia histórica, por largo período, da classe burguesa na sociedade do Ocidente. Com efeito, toma-se aí o representante politicamente por nova pessoa, portadora de uma vontade distinta daquela do representado, e do mesmo passo, fértil de iniciativa e reflexão e poder criador. Senhor absoluto de sua capacidade decisória, volvido de maneira permanente – na ficção dos instituidores da moderna ideia representativa – para o bem comum, faz-se ele órgão de um corpo político espiritual – a nação, cujo querer simboliza e interpreta, quando exprime sua vontade pessoal de representante.33

Criticando o modelo de democracia representativa, Rousseau alfineta:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ou é a mesma, ou é outra – não existe meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser os seus representantes; são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo não tenha ratificado diretamente é nula, não é lei. O povo inglês pensa ser livre, mas está redondamente enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, ele é escravo, não é nada. Nos breves momentos de sua liberdade, pelo uso que dela faz bem merece perdê-la.34

32 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 12. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p.

139.

33 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 203.

34 ROUSSEAU, Jean-Jaques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3. ed., São Paulo: Martins

Essa visão rousseauniana critica, sobretudo, o conceito de liberdade política do Estado pós-absolutista, pois afirma que o homem na democracia representativa só é livre quando deposita seu voto na urna. Após esse ato, volta a ser escravo, não representando mais nada para o poder político da nação.35

Mencionada discussão é a essência desta obra, o seu núcleo vivo, e, malgrado topograficamente essa dialética só venha a ser travada mais a frente, não se poderia deixar de refletir sobre a exposição feita, que de forma lúcida, trouxe à baila uma das mazelas do sistema representativo, materializada na desvinculação dos representantes do povo com as propostas apresentadas aos representados. E mais gravemente com a defesa dos interesses dos titulares legítimos do poder político.

Doutra banda, deve-se alertar que a democracia representativa não se encontra restrita ao processo eleitoral que elege os representantes do povo, seja para quais poderes for. Se assim não fosse, povos como o espanhol, o belga, o japonês, o inglês, o norueguês, o sueco, o australiano, o canadense, o luxemburguês, o neozelandês, o finlandês, o alemão, o dinamarquês, e tantos outros, simplesmente não teriam soberania popular, nem cidadania, nem democracia! E isto porque nenhum deles elege diretamente o Chefe do Estado ou o Chefe do Governo, em que pese elegerem seus Parlamentos por intermédio da representatividade da democracia indireta. No entanto, a Organização das Nações Unidas (ONU) classifica quase todos eles como as mais avançadas democracias do mundo. E a soberania popular é o elemento indispensável à democracia.

A democracia, portanto, deve transcender à escolha direta dos chefes dos poderes estatais, para, outrossim, tutelar um complexo de interesses e instituições políticas, cujo objetivo é a defesa da vontade popular como o único e legítimo meio de exercício do poder.

35 ROUSSEAU, Jean-Jaques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3. ed., São Paulo: Martins

Essa percepção de que a política vai além do voto é, definitivamente, fundamental para o Estado contemporâneo.