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ESPAÇO PÚBLICO NO SISTEMA REPRESENTATIVO

Há consenso entre os tratadistas que o sistema representativo, enquanto instrumento de representação política do povo, encontra na experiência inglesa sua origem, com a criação da Câmara dos Lords e a dos Comuns, nos séculos XIII e XVII respectivamente.

Todavia, não desconhecem traços rudimentares de representatividade nas sociedades primitivas, notadamente através dos conselhos de sacerdotes, de sábios, de anciãos, de chefes tribais e de família, peculiar a cada realidade, que, outrossim, deliberavam e decidiam sobre os destinos dos agrupamentos humanos que representavam.

Não se pode deixar de registrar, neste turno, que os Conselhos das Monarquias medievais também serviram de suporte empírico para a construção do sistema representativo do Estado moderno, podendo-se destacar, a título exemplificativo, os Estados Gerais da França, as Dietas da Alemanha e as Cortes de Portugal e Espanha.

De qualquer forma, é de se observar que as vertentes da representatividade sempre atuaram num espaço público, geográfica e politicamente reduzido, imerso na circunscrição de privilegiado estamento social, de onde promana e irradia as principais decisões políticas da comunidade, com efeito vinculante sobre a sociedade que representa.

Do mesmo modo, também convergem os filósofos quanto ao berço de sua sistematização principiológica, enquanto instrumento de combate ao absolutismo e de exercício da democracia, por via transversa. Esse marco, sem dúvida, é a Revolução Francesa (1789), momento mágico do Estado moderno, que universalizou os dogmas da democracia

representativa, embora este sistema já fosse realidade na Inglaterra, desde a Revolução Inglesa (Puritana em 1640 e Gloriosa em1688/89) e, por estes lados do Atlântico, nos Estados Unidos da América, pela via do Pacto da Filadélfia (1787).

Na França revolucionária, construiu-se um ambiente político favorável, ante as práticas de sufocamento popular típico da dinastia dos reis absolutos, para que os ideais iluministas florescessem e servissem de força motriz para o rompimento da máxima de Luiz XIV, eternizada na expressão "L'État c'est moi" (O Estado sou Eu). As agitações sociais que culminaram na queda da monarquia e na assunção do governo liberal, na modalidade de assembleísmo, modelaram o Ocidente e, posteriormente, parte do Oriente, dentro de um novo arquétipo político/normativo assentado em valores que defendiam a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade como bens supremo do homem e dever inarredável do Estado. A difusão desses ideais nos séculos seguintes constituiu-se em máxima da democracia liberal.

Com efeito, o instrumento jurídico de sistematização da democracia representativa foi solenemente concretizado na Constituição francesa de 1791, em seu Título III (Dos Poderes Públicos), artigo 2º, que dispunha: "A Nação é a única da qual emanam todos os

poderes, mas não pode exercê-los senão por delegação. A Constituição francesa é representativa: os representantes são os Corpos legislativos e o Rei".67 Em seguida, nova ênfase foi dada ao instituto através de seu artigo 7º: "Os representantes designados nos

departamentos não serão representantes de um departamento particular, mas da nação inteira e nenhum mandato lhes poderá ser dado".68

No mesmo contexto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pela senda de seu artigo 3º, ordenou que “o princípio de toda soberania reside, essencialmente na

67 CONSTITUIÇÃO FRANCESA. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/46618009/Constituicao-Francesa-

de-1791>. Acesso em 28 maio 2013.

68 CONSTITUIÇÃO FRANCESA. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/46618009/Constituicao-Francesa-

nação; nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos poderá exercer qualquer autoridade que não emane diretamente da nação".69

Noção idêntica espalhou-se por toda a Europa, sendo exemplo a Constituição belga de 1831, por via de seu artigo 32, ao estabelecer que "os membros das duas Câmaras

representam a nação e não unicamente a província ou a subdivisão da província que os designou"70, a italiana de 1848, através de seu artigo 41, segundo o qual "os deputados

representam a nação em geral, e não apenas as províncias pelas quais foram eleitos"71, e, ainda, a de Weimar em 1919, para quem "os deputados são os representantes de todo o

povo"72 - artigo 21.

Delimitou-se, neste aspecto, a geografia do debate político na democracia liberal aos pontos cardeais da representação parlamentar, sendo os representantes, por excelência, os únicos legitimados e, por conseguinte, capacitados a debaterem os dilemas sociais e a proferirem decisões políticas sobre tais assuntos. Em outras palavras, os elementos estruturantes no modelo inaugurado, baseiam-se na concentração decisória sobre os assuntos políticos em um órgão estatal, de cuja sobrevivência depende todo o arcabouço ideológico da democracia liberal.

A esfera pública, estruturada sob um prisma formalista-positivista, é arena destinada aos representantes do povo, nela somente podendo participar quem detenha a outorga popular e esteja investido de mandato no parlamento. É, portanto, por via do Poder Legislativo, ambiente político em que o povo se expressa, através de seus mandatários, que o espaço público se ambienta e floresce e de onde se irradia o centro decisório da nação.

69 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Disponível em:

<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-à-criação-da-Sociedade-das-Nações-até- 1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em: 4 jun. 2013.

70 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 208-209. 71 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 209. 72 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 209.

Para a doutrina liberal, o povo deve se governar, mas não diretamente, como se dera outrora na Grécia antiga. A transmudação da Cidade-Estado para Estado-Nação seria o vetor nuclear a impossibilitar a atividade política direta pelo povo, malgrado este permanecesse como titular e destinatário de todo o poder político. Mesmo declarando formalmente essa honorabilidade ao povo, seu exercício deveria recair em organismos profissionais, mais preparados para o complexo debate político do Estado moderno, e, somente mediante essa via oblíqua, era que os cidadãos participariam do processo de decisão política.

Em verdade, a conjuntura política que fez brotar a democracia liberal, seja na Inglaterra do século XVII ou nos Estados Unidos da América e França do século XVIII, apontava para um movimento social específico, de preponderância econômica, e não para um sistema político planificado do ponto de vista social. Fala-se da burguesia, classe social oriunda dos antigos mercadores, que assumiu a gênese da produção de riqueza na Europa, mas que, ignorada pelos estamentos sociais privilegiados da fase absolutista, não logrou a ascensão política almejada. Necessitava, então, desbravar território na zona cinzenta do poder e, bem assim, alicerçar seu espaço na política da nação, para, por conseguinte, assumir de vez o controle do poder.

Após a ascensão da burguesia e o desmoronamento do sistema absolutista, a organização das decisões políticas foi engendrada de modo que a própria burguesia assumisse o controle do Estado-nação, assim como todos os privilégios outrora fadados ao Rei, ao clero e à nobreza.

Liberta do julgo das franquias sociais do Antigo Regime, logo buscou aparelhamento político necessário para implantar o padrão liberal de poder. Extinguiu todos os títulos de nobreza, sob o argumento de que a lei assegurava, doravante, uma retilínea simetria ao povo. Por fim, lançou a pedra angular da solidariedade entre os cidadãos,

pregando a construção de uma sociedade mais justa. No plano ideológico, os liberais construíram a plataforma político-jurídica que lhes permitiram conduzir o processo de mudança fundante do Estado de Direito.

Por mais hígidas que fossem as estruturas do Estado liberal-burguês, sobretudo pela garantia prometida de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, em verdade tais preceitos ficaram restritos, materialmente, apenas à nova classe dominante, já que ao povo, às massas, ao cidadão apenas garantias formais lhes foram conferidas. Assim, eram livres, mas não podiam gozar essa liberdade em sua plenitude; iguais, mas, ao mesmo tempo, imersos em verdadeiros abismos sociais. Privados que estavam dos dois primeiros direitos, jamais compreenderiam o significado de solidariedade, encontravam-se, pois, esgaçados material e moralmente diante das injustiças a que estavam imergidos.

Tal estado de coisas pode ser conferido pelo muro erguido entre a atividade política do Estado, confiada, materialmente, apenas a uma pequena parcela de cidadãos, brotada do núcleo do Liberalismo, e o povo, visto em sua essência qualitativa e quantitativa, colocado às margens do sistema, pois jamais foi dotado de instrumentos políticos que lhe permitisse participar, enquanto sujeito do poder, do processo de decisão.

A esfera pública, retraída a dois substratos sociais no absolutismo - clero e nobreza - foi reduzida ainda mais no liberalismo, pois passou acomodar apenas um fragmento social, a burguesia. Isso tudo, sem que o arcabouço normativo vivo deixasse de propalar a igualdade de todos os homens perante a lei.

Nesse plexo, é correto afirmar que o sistema representativo clássico, de espaço público reduzido, agasalha-se na crítica feita por Peter Häberle aos intérpretes da Constituição, visto sob o manto da democracia liberal. Para Häberle, o modelo tradicional herdado do Liberalismo aponta para uma sociedade fechada dos intérpretes da Constituição (da esfera pública), cuja legitimidade restringe-se a alguns órgãos estatais, excluindo-se, dessa

forma, outras forças vivas da sociedade, por coexistirem com a realidade constitucional, muito teriam a contribuir na interpretação e compreensão da Constituição. Nesse sentido, diz o autor:

Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" e aqueles participantes formais do processo constitucional.73

A crítica de Häberle amalgama-se à análise do espaço público intrínseco ao padrão representativo, porque descende do mesmo tronco teorético, ou seja, do modelo de democracia liberal clássica, de axiologia positivista, que só reconhece o poder decisório a determinados órgãos estatais, expressamente disciplinados na Constituição. Ignora, portanto, qualquer interferência ou contribuição alienígena às corporações estatais, no processo de decisão política, já que, para o formalismo liberal, os representantes do povo devem exercer seu múnus público, legitimados que são pela Constituição, com total independência dos representados, pois exercem o mandato livre.

Sendo o espaço público, no regime representativo restrito, de sociedade política fechada, ou seja, limitado aos representantes do povo, a arena de debate democrático resume- se ao parlamento, casa de onde emana todo o manancial de discussões e decisões políticas que conduzem os atos governamentais do Estado de Direito.