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Democracia Representativa x Democracia Deliberativa

2. PARTICIPAÇÃO PÚBLICA

2.2 Democracia deliberativa

2.2.1 Democracia Representativa x Democracia Deliberativa

A essência da democracia está, hodiernamente, associada à participação deliberativa do cidadão139. Por paradoxal que seja, questiona-se o autoritarismo da democracia representativa, seja pela sua “tendência oligárquica”140

, seja pelo “falseamento do sistema representativo”, por meio de fraudes eleitorais e do caciquismo141,142. No entanto, essas “pervasivas exigências da vida participativa”143, antes de significar uma tendência de superação da democracia representativa, vem

137 SEN, Amartya. A ideia de justiça..., p. 371. 138 SEN, Amartya. Desenvolvimento..., p. 77 e 317.

139 DRYZEK, John S. Deliberative democracy..., p. 1. No mesmo sentido, Amartya Sen afirma que “na filosofia política contemporânea a ideia de que a democracia é mais bem-vista como ‘governo por meio do debate’ ganhou ampla aceitação” (SEN, Amartya. A ideia de justiça..., p. 358).

140 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva Ed., 1995, p. 142.

141

ÁLVAREZ CONDE, Enrique. Curso de Derecho Constitucional: El Estado Constitucional, El

Sistema de Fuentes, Los Derechos Humanos. Volume 1. 2ª edição. Madrid: Tecnos Ed., 1996, p. 87.

142 Sobre a crise do paradigma da democracia representativa, v. SÁNCHEZ MORÓN, Miguel. Elementos..., p. 38/39; KONDER COMPARATO, Fábio. Sobre a legitimidade das constituições. In: BONAVIDES, Paulo; MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson; SILVEIRA BEDÊ, Fayga (org.).

Constituição e democracia: estudos em homenagem ao professor J.J. Gomes Canotilho. São Paulo:

Malheiros Editora, 2006, p. 49/83, p. 87; ISIN, Engin F.; TURNER, Bryan S. Citizenship Studies..., p. 8; CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura – volume 1 – A sociedade

em rede. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 3; MIRANDA, Jorge. Crise e

reforma do sistema político. In: Constituição e cidadania. Coimbra: Coimbra Ed., 2003, p. 383/386, p. 383 e 386; DUARTE, Maria Luísa. O Direito de Petição..., p. 68; CLUNY, António. A ‘austeridade popular’, a desumanização do Direito e o princípio da esperança. In: PAZ FERREIRA, Eduardo (coord.). A austeridade cura? A austeridade mata?. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 155/172, p. 163; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas Funções Constitucionais no Estado Democrático de Direito: um estudo de caso no Brasil. In: REBELO DE SOUSA, Marcelo et al (coord.). Estudos de

homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda. Vol. I. Coimbra: Coimbra Ed., 2012, p. 569/592, p. 573 e

577.

expressar, de nossa perspectiva, um esforço de equilíbrio de forças num movimento de “constante dialética”144

.

Sob um olhar histórico, essa dialética esteve sempre presente e pode ser apresentada como a oposição entre as chamadas liberdade dos antigos e liberdade dos modernos. Em discurso pronunciado em 1819, Benjamin Constant já assinalava a importância de se conjugar uma à outra145. A primeira – liberdade dos antigos – consistia no exercício das deliberações diretas dos cidadãos a respeito dos assuntos públicos como guerra e paz, tratados estrangeiros, votação de leis, julgamentos, exame de contas etc. No entanto, advertia o pensador suíço, “não se podia, entre os espartanos, adicionar uma corda à sua lira sem que os Éforos não se ofendessem”. Assim, o indivíduo, “soberano nos negócios públicos” era um “escravo em todas as suas relações privadas.” De outra banda, a segunda liberdade – dos modernos – se restringia à vida privada dos cidadãos, porquanto, nos assuntos públicos, tratava-se de uma soberania “na aparência”. 146

No século XX, a abordagem de Benjamin Constant foi revisitada por Isaiah Berlin, que distinguiu os sentidos negativo e positivo da liberdade. O primeiro – sentido negativo da liberdade – compreende o espaço no qual o sujeito (uma pessoa ou um grupo de pessoas) deve ser deixado para fazer ou ser aquilo que é capaz de fazer ou de ser, sem interferência de outras pessoas. O segundo – sentido positivo da liberdade – situa o indivíduo como mestre de si próprio, sendo, pois, a fonte de controle sobre si147.

Ainda sob uma lógica dual (democracia dualista), Bruce Ackerman distingue as decisões políticas tomadas pelo povo (We the People), em situações raras e em condições constitucionais especiais (higher lawmaking), das decisões tomadas governo (We the government), em atividades diárias dos governantes eleitos (normal

144 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense Ed., 2000, p. 97.

145 “Longe, então, Senhores, de renunciar a alguma das duas espécies de liberdades de que vos falei. É preciso, já o demonstrei, aprender a combinar uma com a outra.” (CONSTANT, Benjamin. A liberdade

dos antigos comparada à dos modernos. Organização, estudo introdutório e tradução: Emerson Garcia.

São Paulo: Atlas Ed., 2015, p. 102).

146 CONSTANT, Benjamin. A liberdade..., p. 78/79. Ou, conforme anota Hannah Arendt, citando as palavras de Benjamin Rush, “todo o poder deriva do povo [mas] o povo só o possui no dia das eleições. Depois disso, ele é propriedade de seus governantes” (ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras Ed., 2011, p. 299).

147 BERLIN, Isaiah. Two concepts of liberty. In: HARDY, Henry (editor). Liberty. New York: Oxford University Press, 2002, p. 169 e 178; PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and

government. New York: Oxford University Press, 2002, p. 17/18. De modo semelhante: WALZER,

lawmaking)148. Citando momentos de reconfiguração do Estado constitucional norte- americano (a reconstrução da União norte-americana no século XIX e o estabelecimento do Estado do bem-estar social como alternativa ao nazismo e ao comunismo no século XX), o autor assenta que a tomada de decisões políticas fundamentais não é monopólio dos Founding Fathers e tampouco constitui um poder implícito dos eleitos. A “instauração de um mundo novo” pode e deve ser deliberada pelo povo.149

Com efeito, desde a gênese da Constituição norte-americana, o respectivo substrato teórico já buscava o equilíbrio possível dessa dualidade entre o exercício direto do poder pelo seu titular, o cidadão, e o exercício indireto do poder pelos seus mandatários, os governantes eleitos. James Madison, embora entendendo que as práticas de democracia direta ofereciam o risco de ocasionar distúrbios na tranquilidade pública, reconheceu a estrita consonância do recurso à autoridade originária do povo com a teoria republicana, sempre que fosse necessário aumentar, diminuir ou instituir um novo modelo de poderes governamentais150. Alexis de Tocqueville também pontua a tensão entre esses dois modos de exercício do poder, afirmando que a origem popular da lei, embora pudesse prejudicar a sua qualidade, “contribui singularmente para o seu vigor”151

. De fato, a abertura da teoria republicana à participação popular direta não era uma mera alegoria simbólica152. Conforme salienta Miguel Nogueira de Brito, desde o pensamento de Maquiavel, já seria “possível sustentar no âmbito de um conceito negativo de liberdade, sem incoerência, a ideia (...) de que apenas somos livres numa comunidade que se governa a si mesma”153

.

Contemporaneamente, a partir da análise de experiências concretas de cidadania participativa, Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer referem-se a

148 ACKERMAN, Bruce A.. We the people. Vol. 1. Fourth Printing. Cambridge: The Balknap Press of Harvard University Press, 1995, p. 6.

149 ACKERMAN, Bruce A.. We the people..., p. 303 e 307. 150

MADISON, James. The Federalist n.º 49. In: CAREY, George W.; MCCLELLAN, James (editors).

The Federalist: a collection/by Alexander Hamilton, John Jay & James Madison. Indianapolis: Liberty

Fund, 2001, p. 261/262.

151 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. 2ª edição. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes Ed., 2005, p. 280.

152

MASHAW, Jerry L.. Administrative Due Process..., p. 931; MASHAW, Jerry. Reasoned Administration..., p. 123.

153 NOGUEIRA DE BRITO, Miguel. As andanças..., p. 138. No mesmo sentido, Benjamin Constant assinalava que a liberdade política é a garantia da liberdade individual (CONSTANT, Benjamin. A

dois modos possíveis de convivência entre democracias representativa e deliberativa154: “coexistência e complementaridade”. A coexistência traduziria uma convivência segmentada em níveis diversos, restringindo-se as práticas participativas às instâncias locais. Ao seu turno, a complementaridade implicaria uma “articulação mais profunda” entre um modelo e outro, com espaço suficiente para que práticas participativas pudessem assumir maiores prerrogativas decisórias, substituindo partes dos mecanismos tradicionais de democracia representativa155.

Também sob a nota da complementaridade, Benjamin Barber defende o fortalecimento da democracia, por meio da cidadania participativa. Na visão do pensador político norte-americano, o aprimoramento da democracia só pode ocorrer por meio de práticas com ela compatíveis. Portanto, a ênfase em instrumentos de democracia direta serve de complemento, não traduzindo uma radical alternativa à democracia representativa. Nas suas palavras: “democracia forte é uma estratégia complementar, que adiciona sem remover e que reorienta sem distorcer”156

.

Friedrich Müller, por sua vez, toca a questão dos limites da democracia deliberativa, ao distinguir a esfera pública em “forte” e “fraca”. Na visão do pensador alemão, os atuais institutos de cidadania participativa compõem uma esfera pública fraca, porque apenas permitem à sociedade exercer certa influência sobre a esfera política, sem constituir, entretanto, um poder efetivo de tomada de decisão. No seu entender, a esfera pública deveria ser forte, isto querendo dizer que o cidadão haveria de decidir, diretamente, questões políticas fundamentais do Estado, por meio de plebiscitos e referendos obrigatórios (notadamente, no caso de rejeição parlamentar de lei de iniciativa popular)157.

Numa abordagem diversa, Pierre Rosanvallon propõem critérios de legitimação democrática, que transcendem a clássica dicotomia entre democracias representativa

154 Na dicção dos autores: “entre democracia participativa e democracia representativa” (SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39/82, p. 75).

155 SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar..., p. 75/76.

156 BARBER, Benjamin R. Strong democracy. Participatory Politics for a New Age. Twentieth Anniversary Edition. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2003, p. 118, 151, 262, 267, 308 e 309. Também no sentido da complementaridade, v. BONAVIDES, Paulo. A decadência da democracia representativa no Brasil. In: ALVES CORREIA, Fernando; MACHADO, Jonatas E. M.; LOUREIRO, João Carlos (org.). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes

Canotilho. Vol. V. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 9/11, p. 11; DUARTE, Maria Luísa. O Direito de Petição..., p. 69.

deliberativa. Sob a premissa do esgotamento da força legitimadora dos sistemas de eleições periódicas e de acesso meritório a cargos públicos, o pensador francês vislumbra outros três fatores de legitimação contemporânea da democracia, a saber: imparcialidade, reflexividade e proximidade158. Neste sentido, um governo democrático deve ser capaz de realizar um tipo dinâmico de ação, abordando o meio social de modo imparcial e equidistante; submetendo os seus atos a uma multiplicidade de formas e controles institucionais (é o caso, por exemplo, da edição de uma norma, por meio de um procedimento legislativo integrado por consultas e debates públicos, que depois é submetida a um mecanismo de controle judicial de constitucionalidade); e considerando a multiplicidade, as particularidades, as especificidades presentes no todo social. Estas novas formas de legitimação se inscrevem num contexto de descentralização da democracia, a partir do controle social exercido pela sociedade civil, da atuação de autoridades independentes de fiscalização, regulatórias e de cortes constitucionais e da constrição de líderes políticos a uma governança democrática. A partir daí logra-se o que o autor chama de “democracia da apropriação”, isto é, uma nova ordem democrática marcada pela reapropriação social do poder, de modo contínuo (em contraste com o caráter periódico do sistema eleitoral) e inclusivo (porque imparcial, porém aberto à multiplicidade humana).159 Assim, na visão do autor, o sistema tradicional de separação de funções estatais dá lugar, contemporaneamente, a uma separação de poderes entre instituições contramajoritárias (aí incluídos os órgãos independentes de fiscalização, regulatórios e as cortes constitucionais) e instituições majoritárias (isto é, preenchidas pelo voto da maioria), formando um “regime misto dos modernos”160

.

Assim, verificadas várias abordagens sobre a dialética entre estruturas democráticas representativas e deliberativas, adotamos uma perspectiva integrativa - jamais de superação ou de exclusão161 - na qual sobressai o diálogo, a transparência, a abertura, a inclusão e a solução negociada e participada de conflitos162.

158 ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy: impartiality, reflexivity, proximity. Translated by Arthur Goldhammer. Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 6/9 e 219.

159 ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy..., p. 139/140, 148, 220/221. 160 ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy..., p. 221/222.

161

Neste sentido: SYMA CZAPANSKIY, Karen; MANJOO, Rashida. The right of public participation in the law-making process and the role of legislature in the promotion of this right. In: Duke Journal of Comparative & International Law, Vol. 19. n.º 1, 2008, p. 1/40, p. 40; CASSESE, Sabino. New paths..., p. 606; CASSESE, Sabino. Functions of administrative procedure: introductory remarks. In: CASSESE, Sabino et al. Lisbon Meeting on Administrative Procedure: “functions and purposes of the