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DE PERTO E DE DENTRO – UM OLHAR DA ANTROPOLOGIA URBANA Ao tratar de dinâmicas urbanas que se desdobram nos arranjos cotidianos da vida social de

inúmeros indivíduos, foi necessário aproximar o olhar da Antropologia Urbana, com seu extenso campo de conhecimento sobre questões urbanas contemporâneas.

“(...) pode a Antropologia, com os conceitos e métodos de análise forjados ao longo de pesquisas em sociedades de pequena escala – cuja forma de assentamento não era, precisamente, a cidade – lidar com a complexidade dos atuais aglomerados urbanos, em toda sua diversidade? Em segundo lugar – e esse é, propriamente, o desafio de fundo – não seria justamente tal legado o que dá a seu olhar, de perto e de dentro, determinada acuidade, lá onde uma visão de fora e de longe passaria ao largo?”. (MAGNANI, 2016,

pg. 195).

Não é raro a caracterização de grandes cidades contemporâneas como locais desordenados e caóticos, que cresceram demasiadamente em um curto período de tempo, e por conta disso não foi foram acompanhadas de seu ordenamento anterior. Contudo, suas novas proporções e fluxos fazem com que emerjam dimensões e dinâmicas não antes observadas, assim como promove mudanças nas relações dos atores sociais com os espaços públicos e privados, e permite novos arranjos urbanos. Nesse sentido, a antropologia urbana permite uma leitura aprofundada de um determinado fenômeno social a partir do olhar próximo aos atores e

38 dinâmicas sociais envolvidas, e a articulação com dimensões de maior escopo, na tentativa de uma compreensão holística do fenômeno (MAGNANI, 2016).

Para isso, essa pesquisa faz uso das categorias delimitadas por Magnani e já bem estabelecidas por anos de pesquisas realizadas por alunos de graduação e pós-graduação ligados ao Núcleo de Antropologia Urbana (NAU), do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Segundo o próprio autor, se as cidades contemporâneas não apresentam mais uma centralidade ou totalidade, é necessário uma tentativa de “estabelecer mediações entre o nível das experiências dos atores e o de processos mais abrangentes, e assim reconstituir unidades de análise em busca de regularidades” (MAGNANI, 2016, pg. 187).

É esse o objetivo da família de categorias cunhadas a partir do trabalho de campo etnográfico e que surgiram a partir de sua ocorrência empírica. As categorias são o resultado da descrição de arranjos nativos de maneira generalizada o suficiente para que possam ser elucidativos quando aplicados à situações além das suas originais, de modo a tornar reconhecível uma dinâmica. Embora bem delimitadas, as categorias não são excludentes entre si, e suas articulações são justamente o que permite a escalabilidade do fenômeno estudado dentro do contexto urbano, de modo a identificar os arranjos emergentes de práticas cotidianas individuais, e como esses arranjos articulam-se entre si e entre os outros fluxos da cidade (MAGNANI, 2002, 2016).

A primeira delas, o pedaço, refere-se a um espaço intermediário entre o espaço privado de casa, familiar e pessoal, onde “se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla do que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável do que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade” (MAGNANI, 2005, pg. 178). No pedaço, pode-se distinguir claramente quem faz parte e quais são os estranhos. Já a mancha refere-se a espaços contíguos, que a partir de determinados equipamentos ou característica, permitem a prática de uma ou outra atividade ou prática. Enquanto o pedaço está ligado mais às dinâmicas e funcionamento interno de um determinado grupo social – um grupo, por exemplo, pode mudar seu lugar de encontro conforme suas necessidades –, a mancha é caracterizada por ser um espaço com mais permanência no tempo e frequentado por grupos diversos (MAGNANI, 2005, 2016).

A categoria de trajeto refere-se a um uso do espaço que se diferencia daquele indicado pelo pedaço, e surgem a partir da necessidade de percorrer paisagens urbanas distantes e diversas

39 entre si. Desse modo, enquanto o pedaço refere-se a um ponto de permanência e laços sociais próximos, o trajeto delimita fluxos recorrentes e “levam de um pedaço a outro, ou cortam as manchas” (MAGNANI, 2016, pg. 189). Por fim, o circuito descreve práticas que ocorrem em lugares e equipamentos urbanos que não possuem uma contiguidade espacial entre si, mas que é possível de ser reconhecido por conta de seus usuários habituais (MAGNANI, 2005, 2016).

É importante mencionar também o aspecto de abrangência de um circuito como uma particularidade dessa categoria. Enquanto o pedaço e a mancha são bem estabelecidos no espaço, o circuito – por não depender diretamente da propinquidade de seus elementos – permite vários níveis de escopo a depender do contexto de interesse do pesquisador. Ao utiliza- la como elemento de análise é possível investigar as relações entre as práticas de grupos individuais e sua relação com dinâmicas urbanas em nível local e regional (MAGNANI, 2012; MAGNANI, 2016).

“Se no pedaço não há lugar para estranhos, a mancha tem mais amplitude, pois acolhe mesmo quem não se conhece pessoalmente, já que o elemento que o une é a identificação por um certo gosto musical, estilo de vida, orientação sexual, religiosa, etc. e tem uma implementação mais estável na paisagem urbana. Já o circuito é mais abrangente, pois liga pontos sem necessariamente haver contiguidade espacial, permitindo trocas entre parceiros distantes: transcende fronteiras físicas. Trajetos levam de um pedaço a outro, ou cortam as manchas, transpondo pórticos”. (MAGNANI,

2016, pg. 189).

Outro pensamento norteador no desenvolvimento desse trabalho foi a ênfase de não agrupar sob um denominador comum um grupo a priori heterogêneo, como, no caso de algumas pesquisas desenvolvidas pelo NAU, os jovens. Magnani (2005) detalha que ao agrupar vários comportamentos e manifestações culturais sob o mesmo denominador comum, ocorre-se o risco de achatar particularidades e arranjos com outros atores sociais para além do grupo estudado. Desse modo, deve-se dar ênfase nos espaços ocupados e percorridos, aos usos que se fazem desses espaços, assim como os conflitos que emergem a partir dessa inserção e as negociações do mesmo (MAGNANI, 2005).

Segundo Certeau (2013), o espaço público da cidade é um campo onde forças opostas se encontram e conflitam entre si sobre o sentido e uso daquele espaço. Embora as instituições, aqui representadas pelo planejador e o urbanista, tenham instituído o sistema normativo da cidade através de sinais como as faixas de pedestre e os faróis, os “praticantes comuns” da

40 cidade trilham seus próprios caminhos, fazendo uso de espaços que não podem ser percebidos pelas instituições, muito menos planejados. Essas duas maneiras de atuar sobre elementos da cultura são o que Certeau teoriza como estratégias e táticas, sendo que estratégias são as “formalidades das práticas”, que ocorrem quando um sujeito detentor de poder “(...) postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta” (pg. 46), e, por sua vez, táticas podem ser consideradas a resistência à ordem imposta por meio das “’maneiras de fazer’, vitórias do mais ‘fraco’ sobre o mais ‘forte’. A tática só tem por lugar o do outro” (CERTEAU, 2013, pg. 46, ênfases no original).

Embasado em seus conceitos de estratégia e tática, Certeau descreve o ato de andar como uma “resistência do lugar” que naturalmente altera os significados impostos pelas instituições de ordem a partir das opiniões, preferências e memórias das pessoas que o fazem. Ao habitar o cotidiano da cultura ordinária, as táticas pressupõe um novo sentido sobre a cultura de massa, face a qual os sujeitos não são simplesmente recipientes de significados já prontos, mas sim produzem e fabricam os seus próprios a partir de experiências cotidianas Assim, os citadinos não apenas observam a cidade, mas a moldam e atuam sobre ela conforme exercem seus padrões de mobilidade particulares. O significado dos espaços é então constituído pelo movimento tanto quanto pelas suas características morfológicas (JENSEN, 2009; CERTEAU, 2013)

Sendo assim, não há uma única ideia de lugar para pessoas distintas; não há um lugar em si, mas sim uma rede interligada de significações materiais, simbólicas, históricas e culturais que torna o lugar algo em constante transformação através dos usos associados a ele. Ao retomarmos a rua como espaço de circulação social e experiência sensorial da cidade, pode-se perceber que o modo como a cidade é apreendida e relacionada possui uma relação direta com o modo como as pessoas se relacionam com outras pessoas, tendo impactos profundos na produção subjetiva do indivíduo e em sua percepção de temas do urbano (JACOBS, 1992; JENSEN, 2009).