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Dando seguimento à mesma linha de raciocínio, e tomando como pressuposto que a mobilidade só pode ser experenciada a partir do corpo, a percepção sensória ocupa então um lugar de suma importância na nossa relação com o mundo. A visão, o paladar, a audição, o olfato e o tato compõe nossos cinco principais sentidos, e combinações e derivados destes nos permitem uma gama de percepções do espaço ao nosso redor, como as percepções de temperatura ou movimento, entre muitas outras. Ao considerar a mobilidade como não só incorporada no sentido do movimento, mas também como uma experiência imersa – e emergida de – uma paisagem sensória particular pertencente a um local, pode-se apreender a importância de ambas as esferas, o corpo e o ambiente, para o entendimento corpóreo da mobilidade (JENSEN, 2011).

O estudo dos sentidos como uma área formal do conhecimento encontra-se sob o domínio da Filosofia, como os estudos sobre a Estética. De maneira simplificada, duas principais correntes se caracterizam no campo: a dos estudos críticos sobre a natureza e as manifestações artísticas humanas em seus mais diversos movimentos, no qual se focam críticos de arte e historiadores; a outra se foca sobre as percepções subjetivas diante de tais objetos artísticos, levando em conta diferenças culturais, subjetivas e temporais, sobre as quais se debruçam teóricos do campo da Psicologia da Arte, sociólogos, entre outros (BLANC, 2012). Alguns autores do campo de Estudos da Estética cunharam o termo “experiência estética”, que se dá através da característica fundamentalmente corpórea da apreciação de qualquer objeto e situação, e do fato de que todo conhecimento e percepção que temos de

44 elementos à nossa volta é essencialmente pautado pelo corpo. Segundo Berleant (2012), a apreciação de qualquer paisagem se dá através de uma experiência holística na qual uma multiplicidade de fatores influi de tal forma que o observador e a situação se fundem e só podem ser vividos naquele contexto situacional específico. Considera-la inteiramente subjetiva ou objetiva não incorpora propriamente a natureza da experiência e é incapaz de descreve-la em sua totalidade.

Desse modo, apreciar uma paisagem é um fenômeno diferente de entrar em uma sala, observar algo, e então sair dela. Não é possível entrarmos em uma paisagem, nós estamos e fazemos parte dela. É uma experiência de estar presente e, através da presença, modifica-se e molda-se a paisagem de modo a contribuir para sua singularidade. Na ausência da presença humana e de não humanos, tem-se apenas uma determinada área geográfica. Sendo assim, a experiência estética é, em sua totalidade, uma experiência essencialmente sensória. Isso torna- se particularmente desafiador quando se pensa sobre a tradição filosófica ocidental que prioriza a visão e a audição sobre os outros sentidos, e a prática de separarmos os sentidos uns dos outros para fins acadêmicos. A experiência tátil, comumente ignorada no cotidiano contemporâneo, incorpora sensações de equilíbrio, humidade, temperatura, texturas e outras sensações percebidas também sem o toque. Mais do que qualquer outra situação, a experiência estética nos engaja holisticamente através de todos os nossos sentidos de maneira súbita (BERLEANT, 1986, 2012).

De modo a evitar justamente o restringimento da experiência estética apenas à percepção visual, pautada em nossos hábitos culturais de aprendizagem de percepção do mundo através da identificação de objetos, o autor propõe que a experiência relacionada à paisagem seja referida como “nadar na paisagem” (BERLEANT, 2012, pg. 56, tradução da autora). Tais experiências ambientais também não estão limitadas ao campo das artes visuais, mas se apresentam em muitas outras esferas na qual a corporeidade é particularmente central à experiência, como na dança e na música.

Ao transferir essa experiência para o âmbito das cidades, pode-se refletir sobre o fato de os sentidos mediarem nossa vida pública nos espaços urbanos – algo que é comumente esquecido nas sociedades ocidentais dominadas pela supremacia da visão. A relação entre os ritmos cotidianos, que Jane Jacobs (1992) notoriamente denominou de ‘balé das calçadas’, e as experiências sensoriais ligadas à ela são uma importante chave interpretativa de como os indivíduos se relacionam com o urbano. Assim, o entendimento de quais ritmos se dão em

45 quais locais e para quais grupos sociais, torna-se essencial para o entendimento de dinâmicas da cidade (DEGEN, 2010).

Apesar de serem fortemente influenciadas por elas, as percepções sensórias não são diretamente resultantes das percepções que temos sobre os espaços construídos. De fato, são influenciadas por dois fatores: o primeiro deles é a mobilidade do corpo pela paisagem, e as práticas de mobilidade associadas a um determinado espaço. O segundo está relacionado à memórias relacionadas ao uso de certos espaços, de modo a se estar altamente engajado e articulado sobre as qualidades sensórias do mesmo e de outros locais, fazendo comparações entre diferentes tempos e espaços. Desse modo, quanto mais oportunidades de experenciar um espaço de maneira agradável e convidativa, mais possibilidades do estabelecimentos de vínculos afetivos fortes e positivos tanto com o espaço urbano como com aqueles com os quais o compartilha (DEGEN; ROSE, 2012).

Muitos desses ritmos, em cidades contemporâneas, estão ligadas ao tráfego motorizado. Enquanto a experiência estética do automóvel é, para aqueles que nele se encontram, considerada agradável – ligadas ao prazer da alta velocidade sobre o corpo, e à privacidade do espaço individual – para os outros habitantes da metrópole, sejam pedestres, crianças indo à escola, carteiros, lixeiros e ciclistas, ela é considerada invasiva e opressiva. Nesse sentido, muito da percepção moderna sobre a vida nas cidades é pautada pela presença dos automóveis, como o ruído sonoro, a poluição do ar, e a velocidade rápida das ruas. Por conta da presença generalizada do automóvel nos espaços públicos das cidades ocidentais ser tomada como dada, é difícil notar o tamanho da influência do carro no desenho e na experiência urbana como um todo. Segundo Sheller e Urry (2000), “grandes áreas do mundo agora consistem em ambientes exclusivos para carros, (...) que, em troca, exercem uma notável dominância espacial e temporal sobre os espaços que os cercam, transformando aquilo que podemos ver, ouvir, cheirar e degustar” (pg. 746, tradução da autora) (SHELLER; URRY, 2000; TAYLOR, 2003).

Tendo esse cenário como pano de fundo, a presença de polirritmias, ou a atuação de vários ritmos tomando lugar na mesma situação, pode ser considerado uma das resistência à totalidade descritas por Certeau (2013). Como derivam influência do modo como o corpo se move em um determinado espaço, a experiência estética está diretamente relacionada à obstáculos no caminho ou à dificuldade de se navegar por um determinado espaço. No caso de tipos ativos de mobilidade, como caminhar ou andar de bicicleta, a oferta de espaços seguros

46 onde se possa experimentar o ambiente possibilita uma imersão maior nas qualidades estéticas da paisagem (DEGEN; ROSE, 2012; STEFANSDOTTIR, 2014).

Desse modo, a percepção urbana pode tomar muitas formas, de modo a trazer melhorias à vida cotidiana ou oprimi-la. O corpo, e os sentidos, sentem um lugar como convidativo ou hostil, intimidador ou acolhedor, confortável ou desagradável, o que influencia diretamente a relação das pessoas com o espaço urbano construído, a partir da qual atuam e desenvolvem relações e trocas sociais e sua própria subjetividade. Está, portanto, relacionada ao bem-estar urbano e pode vir a basear o que Sawaia (1995) define como uma “racionalidade ético-afetiva na cidade” (pg. 24), no qual os espaços teriam a capacidade de enfrentar os processos de exclusão urbana e “insuspeitos de ressonância dos interesses e necessidades coletivas” (pg. 24) (BERLEANT, 1986; SAWAIA, 1995).