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2. POLÍTICA DOS DADOS

2.8 Dentro do nevoeiro

Analisando o modo contemporâneo do capitalismo, cuja lógica de funcionamento é o da ausência de interrupções nas experiências produtoras de valor econômico, Crary (2017, p. 85) indica que o sono é a última barreira a ser atravessada para a colonização de todos os aspectos da vida. Há, naturalmente, grandes mercados em torno do sono, sejam ligados ao seu monitoramento ou os movimentados por produtos farmacêuticos que visam induzi-lo. O sono está, Crary (ibid., p. 20) complementa, com sua "profunda inutilidade e intrínseca passividade", sempre "a contrapelo das demandas de um universo 24/7". Ao mesmo tempo,

poucas vezes dormimos tão mal. Uma pesquisa recente feita nos Estados Unidos aponta que 67

um terço de seus habitantes dorme menos que seis horas de sono por noite. Um estudo 68

similar foi feito com a população brasileira e seus resultados indicam que 36% dos entrevistados sofrem de insônia. 35% do número total de entrevistados reportam que filmes e redes sociais intervêm de forma determinante na qualidade do sono. Observamos, aí, especialmente a partir dos circuitos de entretenimento, a invasão do sono por aparatos computacionais que alimentam redes de troca de valor. Este estado de iluminação contínua, suscitado por telas, câmeras de vigilância, redes sociais, com sua ligação orgânica a operações de troca e circulação globais, estabelece um regime de visibilidade intolerante a "tudo que obscureça ou impeça uma situação de visibilidade instrumentalizada e constante" (ibid., p. 15). São telas que preenchem nosso dia e invadem nossa noite, iluminando-a paradoxalmente, a partir de luzes intensas e difusas, como uma "névoa cerrada" (WISNIK, 2018, p. 305).

O excesso de aparatos computacionais, telas e fluxos de comunicação embota nossa compreensão e pensamento. Conversar em aplicativos de troca de mensagens instantâneas, postar fotos e responder comentários nas redes sociais, configurar assistentes smart, acessar notícias praticamente em tempo real... Respondemos de modo ininterrupto a um conjunto de demandas que nos dão a sensação de estarmos, como salienta Guilherme Wisnik (ibid., 75), em meio "a uma bola de neve de pequenas tarefas diárias que cresce sem parar, na qual sentimos perder o controle de nossas ações e decisões". O regime de visibilidade em que vivemos é de baixa clareza (ainda que estejamos frequentemente expostos a uma máxima visibilidade), de "baixa definição do pensamento" (WISNIK, 2018, p. 49), que impede uma compreensão mais ampla dos conflitos contemporâneos. A vigilância da NSA exemplifica esta questão. Olhando a partir de 2019, o caso parece ter se distanciado de nossa atenção de forma tão brusca quanto emergiu.

Um acontecimento recente pode ser pensado como paradigmático do nevoeiro contemporâneo que embaça nossa visão. Realizada em 2016, a última eleição presidencial dos Estados Unidos, cujo resultado teve Donald Trump como presidente eleito, foi a mais inesperada de todas as votações presidenciais realizadas no país ao menos neste século. E,

Um resumo dos resultados obtidos pode ser visto no seguinte link: https://www.smithsonianmag.com/smart-

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news/almost-one-third-americans-sleep-fewer-six-hours-night-180971116/

Um resumo dos resultados obtidos por este outro estudo estão disponíveis a seguir: https://saude.abril.com.br/

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situando Trump como um outsider, ex-apresentador de reality show e empresário que já faliu diversas empresas, não é absurdo afirmar que sua vitória foi a mais inesperada da história do país norte-americano. Praticamente todas as pesquisas apontavam uma vitória de Hillary Clinton, que, de fato, obteve mais votos, mas perdeu na quantidade de colégios eleitorais. De todo modo, a vitória de Trump no conjunto dos colégios foi uma enorme surpresa.

Trump construiu sua personalidade de campanha como outsider, derrotando membros do establishment republicano nas eleições primárias. Em março de 2018, pouco mais de um ano e meio após o resultado eleitoral, Christopher Wylie vazou para o jornal The

Guardian diversos documentos que indicavam que a empresa para qual trabalhava, Cambridge Analytica, acessou dados de usuários do Facebook sem o consentimento dos

mesmos com a finalidade de traçar perfis psicológicos minuciosamente precisos, para os quais propagandas políticas individualizadas seriam direcionadas. Os dados utilizados pela

Cambridge Analytica eram provenientes de, entre outras fontes, bases de dados com

informações coletadas a partir de uma aplicação de Facebook chamada This Is Your Digital

Life, desenvolvida por Alexandr Kogan. Utilizando a aplicação, os usuários da rede social

respondiam a um conjunto de questões. O resultado delineava a "vida digital" do usuário e aos desenvolvedores era fornecido acesso aos dados de cada indivíduo que utilizasse a aplicação. Eram traçados, então, perfis psicológicos de cada usuário com base em suas páginas e postagens curtidas a partir de um estudo feito por Michal Kosinski, Wu Youyou e David 69

Stillwell, o qual concluía que, analisando 10 curtidas de uma determinada pessoa, um algoritmo treinado poderia conhecer sua personalidade melhor do que um colega de trabalho; com 70 curtidas, o conhecimento era superior ao de um amigo ou colega de quarto; com 150 curtidas, o algoritmo poderia traçar um perfil mais preciso do que conseguiria um membro da família; por fim, acessando 300 curtidas de um usuário, era possível ter mais conhecimento sobre este do que seu hipotético cônjuge possuiria. Cerca de 270 mil usuários utilizaram This

Is Your Digital Life, mas seus desenvolvedores se aproveitaram de uma falha de segurança do Facebook que permitiu que, a partir do consentimento destes usuários, fosse possível acessar

dados de todos os seus amigos, mesmo que a plataforma proibisse a ação (apenas juridicamente, não de modo prático). Ao todo, especula-se que 87 milhões de usuários foram analisados pela plataforma e tiveram perfis psicológicos delineados. Os perfis eram nomeados

Um resumo do artigo pode ser acessado na seguinte página: https://www.gsb.stanford.edu/insights/michal-

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como "neurótico", "simpático", "líderes", "seguidores" etc., e, a partir da categorização de cada usuário da rede social em um determinado perfil, era possível lhe direcionar propaganda de diferentes tipos, inclusive política.

Robert Mercer e sua filha, Rebekah Mercer, dois habituais financiadores de candidatos republicanos, intermediaram o contato entre Alexander Nix e Steve Bannon, estrategista da campanha de Trump em 2016. Neste contato, a Cambridge Analytica foi criada, diretamente ligada à campanha do presidente eleito, a qual fez uso dos perfis criados para direcionar propaganda, notícias falsas e postagens de blog contrárias a Hillary Clinton para vários usuários. Após a divulgação do caso, diversas hipóteses foram levantadas, inclusive a de que a influência da empresa foi determinante para a eleição de Donald Trump e mesmo para a anuência britânica ao Brexit . 70

É praticamente impossível determinar o quanto a empresa influiu diretamente em ambos os casos. Sobram, antes, especulações, hipóteses e acusações, que apenas contribuem para a nossa incompreensão frente a diversos acontecimentos atuais. Uma questão, porém, é clara: a participação, mesmo indireta, do Facebook no caso, com o fornecimento das técnicas, tecnologias e, ainda mais grave, das bases de dados de usuários necessárias para constituir as redes de saberes e possibilitar as intervenções que a Cambridge Analytica afirma ter feito. Os mesmos aparatos que nos dão prazer e, aparentemente, facilitam nossa vida, possibilitam a regulação de nossos gestos e comportamentos. Conforme nos mostra Guilherme Wisnik (2018, p. 93) "por trás de uma nuvem aparentemente dispersa e pouco identificável de dispositivos de diversas naturezas, somos vigiados e controlados por mecanismos de alta precisão e nitidez, que penetram fundo naquilo que observam".

Para evidenciar e, quem sabe, desarmar dispositivos desse regime de visibilidade, que se confunde com um regime de incompreensão geral, não devemos necessariamente buscar limpar nossa visão. Antes, é necessário, tal qual afirma Wisnik (ibid, p. 225), assumir a nossa condição nebulosa e buscar compreendê-la, como fazem diferentes artistas apontados por Wisnik, desde Marcel Duchamp, com sua obra A noiva despida por seus celibatários, mesmo ou O Grande Vidro, até Michael Wesely, fotógrafo alemão renomado por suas fotos de ultra-longa exposição que atravessam anos.

Brexit foi um referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia. Hoje nomeia o processo 70

Ryoki Ikeda versa, em seu projeto datamatics, sobre as torrentes informacionais que permeiam a sociedade contemporânea extraindo do nevoeiro de dados experiências sinestésicas. Os dados são extraídos de erros em discos de armazenamento e se tornam visuais e sons expressos em diferentes suportes: instalações (figura 14), concertos audiovisuais e mesmo publicações impressas. Ikeda cria espaços contemplativos que interrompem o fluxo cotidiano de produção de dados a partir desta mesma matéria.

Figura 14: Instalação da série datamatics, de Ryoji Ikeda

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=6mnN3ZrE_nE

As diferentes obras do projeto datamatics vai de encontro à afirmação de Victoria Vesna (2007, p. XI) de que artistas trabalhando com mídias digitais devem estar cientes do hiperfluxo de informação contemporâneo, ao mesmo tempo que é uma demanda da prática artística pensar em modos de organizá-lo, diminuir sua característica entorpecente. Os espaços contemplativos de Ikeda possibilitam, como argumenta Guilherme Wisnik (2018, p. 307), um retardamento na experiência, “um recuo em relação ao contexto em que estamos imersos”. Somente na desaceleração do tempo 24/7 e no distanciamento do nevoeiro contemporâneo podemos ver “a tragédia latente e abafada do nosso tempo” (ibid.), movida por diferentes processos e técnicas de controle.

O trabalho de Ryoji Ikeda não propõe uma intervenção ou discurso político incisivo como outras obras expostas nesta dissertação, mas cria espaços contemplativos e de lentidão que provocam suspensão nas formas ultrarrápidas de controle, assinalando que é possível

utilizar os dados, motores de diversas técnicas de controle contemporâneas, em outra direção, na de experiências sensíveis, que afetam.

2.9 “Vigiar e resistir”

As novas redes de poder se infiltram até mesmo naquilo que poderíamos imaginar como incolonizável: nossos desejos, pensamentos, ânsias, afetos… Nos tópicos anteriores deste capítulo analisei diversas manifestações destas redes, as linhas de força que tornaram possível sua emergência e jogos com aparatos técnicos concebidos por artistas e ativistas, os quais põem em evidência processos de controle. Tal análise tem como intuito – entre diversos outros – “demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de contra−ataque de uns e de outros” (FOUCAULT, 1979, p. 226). Ao exercício do controle, do poder, é inerente a resistência, e justamente porque aquele se manifesta é que há contrapontos (idem, 1999a, p. 90). As correlações de poder existem justamente em função daquilo que lhe resiste, e não há apenas resistência, no singular, mas, efetivamente, resistências, as quais,

por definição, não podem deixar de existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. [...] É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. (ibid.)

Se a vigilância distribuída, apresentada anteriormente, ilustra o funcionamento de redes de poder amplamente difusas, apontando para as formas de captura e subjugação realizadas, a noção mostra o caminho também para o escape (BRUNO, 2013, p. 26). Inseridos completamente nos mecanismos do poder, é apenas a partir destes mesmos que podemos esboçar fugas. Como aponta Marta Kanashiro (2015, p. 23), “é a partir da reapropriação da tecnologia e da construção e proliferação de saberes que se pode propor alternativas e não negando a tecnologia ou falsamente se ausentando de alguns sistemas de comunicação”.

Tal reapropriação é articulada pelos projetos analisados anteriormente e a partir de diferentes jogos com aparatos técnicos. Estes jogos, com suas reapropriações, podem ser justamente pensados como a resistência que Foucault discute, que introduzem clivagens e “suscitam reagrupamentos”. Uma resistência que mobiliza inclusive o processo criativo gestado na presente pesquisa de mestrado, apresentado no próximo capítulo, que deseja esboçar mudanças na paisagem das ações e formas de vida possíveis. Procuro, antes de trazer

para discussão o processo de criação artística, analisar nas próximas linhas dois projetos que, cada um à sua maneira, provocam “deslocamentos efetivos nas vias convencionais de poder, controle e vigilância” (idem, p. 143), complementando o conjunto de trabalhos anteriormente apresentados.

O primeiro projeto é Chupadados (figura 15), da organização Coding Rights, que 71

apresenta uma compilação de histórias latino-americanas “sobre como mecanismos de vigilância estão a serviço do Chupadados e têm sido utilizados por nós mesmos e por empresas para monitorar pessoas no âmbito de suas cidades, casas, bolsos e corpos”. O “chupadados” nada mais é do qualquer aparato e serviço tecnológico em cujo funcionamento há inscrita a possibilidade de coleta, armazenamento e processamento de dados.

Figura 15: Página inicial do projeto Chupadados

Fonte: https://chupadados.codingrights.org/

Na sociedade informacional, onde estruturamos nossas experiências por meio da perspectiva do banco de dados, a coleta, classificação e acesso a dados de indivíduos não é, como afirmado anteriormente, mais prerrogativa apenas do Estado, e tais atos são operados por diferentes instâncias que compõem a sociedade de controle.

A troca de dados e metadados por serviços de comunicação, como apontado em um tópico anterior, se tornou a nova norma. Os usos de informações são múltiplos por tais serviços e pelas empresas que os gerem, indo desde a eficiência do serviço prestado à sua venda como mercadoria.

Nisso, frequentemente não há um controle de dados e de seus rastros. Este fato, combinado com o crescimento exponencial de bases de dados tanto públicos quanto privados,

https://chupadados.codingrights.org/ 71

cria um efeito paralisante (PAUL, 2008, p. 185), provocando uma forte alienação na forma como lidamos com nossas informações.

Chupadados, que consiste em um website, procura evidenciar aspectos ocultos de um

amplo mercado de dados, para o qual nós, ao fazermos uso de dispositivos tecnológicos, trabalhamos de forma voluntária ao cedermos nossas próprias informações. A partir destas mesmas informações, corpos são “informatizados” e reduzidos a dados, afetando de modo crítico a vida destes mesmos sujeitos (BAUMAN; LYON, 2013, p. 124).

As histórias compiladas pelo projeto se dividem em quatro categorias (divididas em abas na página web): cidades, casas, bolsos e corpos. As histórias em cada uma delas relatam casos onde monitoramento e controle de informações se manifestou de diferentes modos (cada uma se relacionando com a própria categoria). A partir disso, busca-se revelar nuances de distintos discursos com forte apelo, tais quais cidades inteligentes, marketing digital direcionado ou eficiência esportiva por meio de aplicativos que monitoram dados biométricos ou anúncios publicitários direcionados. O que se mostra em tais discursos e nos aparatos que o tornam possível é um controle muito sutil que busca eliminar “o outro, o estranho, o desviante” (HAN, 2018, p. 104), e, mais ainda, torna tudo mercadoria e “atribui um preço às informações associadas ao seu contexto de uso” (MOROZOV, 2018, p. 128).

Os artigos disponíveis no endereço web do Chupadados são escritos em uma linguagem acessível, direta, muitas vezes ilustrados por desenhos ou infográficos. Dessa forma, busca-se diluir essa situação de alienação do público em relação à informação que ele mesmo (direta ou indiretamente) constrói e cede.

Para além dos relatos, há, ainda, o Fuzzify.me, extensão de código aberto que permite que usuários da rede entendam a lógica por trás de anúncios direcionados na rede social Facebook e, mais além, minimizem a quantidade de dados sobre os quais a rede social tem acesso.

Muitos aparatos do controle ultrarrápido e a céu aberto têm funcionamento sutil, realizam intervenções em nossas condutas de modo praticamente imperceptível. Chupadados, ainda que, em parte, esteja se tornando obsoleto (uma vez que tão rápidos quando os processos de controle são suas atualizações), põe alguns destes aparatos sob uma lente microscópica, permitindo uma reorganização de nossas ações em relação a eles. Se, para escapar ao controle é necessário, como nos mostra Deleuze (2017, p. 220), criar "vacúolos de

não-comunicação", Chupadados aponta não exatamente para estes vacúolos, mas, antes, para onde o controle é um "feixe contínuo", permitindo que possamos, nós mesmos, criar estes espaços.

Realizado pelo Tactical Tech Group , Me & My Shadow (figura 16), projeto 72 73

atualmente descontinuado, é como um irmão próximo do Chupadados. Sua proposta consiste em auxiliar o público a “controlar seus rastros de dados, ver como você está sendo rastreado e aprender mais sobre a indústria de dados”, evidenciando a falta de controle sobre nossas informações e sobre a forma como são utilizadas por empresas e instituições públicas e privadas.

Figura 16: Página inicial do projeto Me & My Shadow

Fonte: https://myshadow.org/

Me & My Shadow, de forma didática e com linguagem simplificada, procura

“empoderar” o público em relação aos seus próprios dados. O projeto, que consiste em um site web, realiza o feito de diferentes formas. Conceitos básicos como o de rastros digitais e metadados são explicados de maneira simples e direta. Na aba tracking, há diversas informações sobre como nossos dados são armazenados e acessados, especialmente por empresas privadas, por meio de diferentes dispositivos que mediam nossas interações online (browsers, redes sociais, aplicações de geoposicionamento etc.).

Um aspecto de grande relevância desta mesma aba consiste em uma seção denominada Lost in small print, na qual os termos de serviços de diferentes plataformas são acessíveis, e partes mais sensíveis (dizendo respeito especialmente a armazenamento, acesso

https://tacticaltech.org/ 72

https://myshadow.org/ 73

ou venda de dados) são destacadas. É possível também, ainda na aba tracking, ter uma estimativa de quantos rastros digitais, e a partir de quais dispositivos, deixamos e como ter controle sobre eles.

O site nos apresenta outros conteúdos, como, por exemplo, artigos que nos mostram como é possível ter um maior controle de nossos dados, seja em uma mudança nas ferramentas que utilizamos para interações online, seja fazendo um uso mais lúcido delas. Há, ainda, diferentes textos que compõem uma “investigação sobre a sociedade dos dados” e mesmo treinamentos e práticas com a finalidade de que indivíduos possam ter um maior controle e consciência sobre suas próprias informações. Por exemplo, o Data Detox permite que, ao longo de oito dias, seguindo um conjunto de instruções diárias, possamos estar a “caminho de um eu digital mais saudável e controlado”.

A forma como Me & My Shadow elucida diferentes questões envolvendo dados e bases de dados é notável. Desta forma, conceitos obscuros a um público mais amplo, como vigilância de dados, metadados como moeda corrente ou ferramentas digitais alternativas, são elucidados de forma direta e simples, mas também leve e lúdica, ilustrado por desenhos cartunescos e pequenas narrativas, permitindo o “riso que perturba todas as familiaridades do pensamento” (FOUCAULT, 1995, p.12).

Chupadados e Me & My Shadow partem da compreensão de que para subverter a

indústria de dados é “preciso compreender como são programados seus aparatos” (BAIO, 2015, p. 61). Partindo desta compreensão, é possível superar a lógica que rege o aparato, problematizando dinâmicas aí estabelecidas (ibid., p. 69).

Em meio à paralisia causada pela enorme quantidade de dados que criamos, muitas vezes involuntariamente, e a conceitos obscuros a um público mais amplo, como vigilância de dados, anúncios publicitários direcionados ou recorrentes vazamentos de informações pessoais, Chupadados e Me & My Shadow permitem que nos “orientemos no mundo” (KENNEDY et al., 2015 apud BRUNO, 2013).

Procuramos não encarar os projetos apresentados neste capítulo, os quais articulam contrapontos a dispositivos contemporâneos de poder em torno dos dados, como panaceias, pensando que podem minar toda as formas de jugo às quais tantos sujeitos são submetidos. O objetivo de seus autores se distancia disso. São, antes, esboços de um redesenho de um novo comum, atravessados por linhas de força que escapam ao controle, trabalhos ao mesmo tempo

políticos e micropolíticos, que movimentam a questão "de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetividade dominante" (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 133), que é, como nos mostra Félix Guattari (ibid.,) a verdadeira questão micropolítica.

Penso as obras que compõem o processo criativo desta pesquisa também como esboços, em um constante exercício de buscar novas formas de ser e estar no mundo que, como preconiza Foucault (1993), “não se apaixonem pelo poder”, ainda que sejamos por este constantemente atravessados.

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