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Técnicas e tecnologias biopolíticas contemporâneas

2. POLÍTICA DOS DADOS

2.4 Técnicas e tecnologias biopolíticas contemporâneas

Em sua análise do poder disciplinar e do dispositivo panóptico, Foucault (1999b, p. 223) sustenta que

de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcionam num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante, etc).

Ao pensarmos as formas contemporâneas de controle, especialmente a partir do conceito foucaultiano de dispositivo, podemos concluir que uma parte delas excedem este duplo modo apontado pelo pensador enquanto outras o atualizam de diferentes maneiras. Um conjunto de técnicas que visam a repartição diferencial para, a partir daí, orientar as condutas e comportamentos dos sujeitos tem como suporte o uso instrumental das bases de dados por aparatos técnicos. Ao citarmos o(s) perfil(s) traçado(s) de diferentes indivíduos, no começo deste capítulo, nos referíamos de maneira indireta a algumas dessas técnicas, as quais David

O levantamento mais recente leva em conta o terceiro trimestre de 2019 e pode ser acessado no seguinte link: 36

Lyon (2003) nomeia de classificação social. A classificação social diz respeito às categorias sociais e econômicas, criadas por meio de aparatos computacionais que acessam e ordenam dados, para enquadrar diferentes sujeitos e influenciar e gerenciar suas vidas, seja enquanto indivíduo, seja enquanto parte de uma população (LYON, 2003, p. 2). Esta técnica afeta diretamente "oportunidades de vida e escolhas", justiça e injustiça (LYON, 2018b). Diferentes autores propõem outra denominação para a classificação social: o profiling. Técnicas de

profiling elaboram perfis computacionais ao buscar correlações entre elementos de grandes

bases de dados (BRUNO, 2013, p. 29), e são desenvolvidas a partir de algoritmos sobre os quais somos “cada vez menos capazes de compreender, explicar ou prever o funcionamento interno, os vieses e os eventuais problemas" (DONEDA; ALMEIDA, 2018, p. 142). As correlações encontradas projetam padrões de diferentes tipos: consumo, crime, comportamento etc. (BRUNO, 2013, p. 29). Ao longo desta escrita opto por usar o termo

profiling, ao invés de classificação social, para descrever técnicas computacionais de criação

de perfis.

As vidas mais afetadas por técnicas de profiling são, com frequência, as de indivíduos pertencentes a minorias raciais, étnicas e sexuais, como o exemplo de Brisha Borden e Vernon Prater deixa claro . Brisha, jovem afro-americana, foi presa com uma amiga 37

na primavera de 2014 em Coral Springs, Flórida. Ao encontrarem uma bicicleta infantil e uma lambreta destrancadas, Brisha e sua amiga as pegaram para dar uma volta, interrompida pelos gritos de uma mulher que afirmava que os veículos pertenciam a seu filho. A polícia foi chamada e as duas foram presas. Dados de Brisha foram analisados pela ferramenta

COMPAS , que busca prever a possibilidade de reincidência criminosa de alguém, assim 38

como a probabilidade de que este venha a cometer um crime violento. A Brisha foi atribuída uma alta probabilidade de reincidência. Vernon Prater, morador do mesmo condado, foi preso no ano anterior, também em Coral Springs, por roubo de ferramentas em uma loja Home

Depot. Mesmo com uma ficha criminal com outros delitos, Vernon, um adulto branco, foi

considerado pouco perigoso ao ser analisado pelo COMPAS e com baixa probabilidade de reincidência. Dois anos após sua prisão, Brisha não havia cometido qualquer delito, enquanto Vernon foi condenado a oito anos de encarceramento por roubo de equipamentos eletrônicos.

O caso é descrito em: https://www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-

37

sentencing

Sigla de Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions 38

Conforme uma análise realizada pela agência de jornalismo investigativo ProPublica concluiu, o COMPAS, mesmo propondo, em sua análise, utilizar conjuntos de dados não relacionados a questões étnicas, é fortemente enviesado contra afro-americanos, contribuindo, assim, para o encarceramento em massa de populações negras nos Estados Unidos.

O profiling, como indica David Lyon (2018b, trad. livre) , 39

especialmente quando faz uso de bancos de dados pesquisáveis e comunicações em rede, funciona através da categorização automatizada de dados de pessoas, de modo que diferentes grupos possam ser tratados distintamente. Simplesmente estar em um grupo estatístico lhe define para inclusão ou exclusão, acesso ou rejeição.

Dividir sujeitos em grupos categorizados possibilita orientar com maior assertividade suas condutas em determinadas direções. As categorias podem ser praticamente infinitas, aplicadas em uma miríade de casos, como em aeroportos, prisões, educação e saúde privadas... A divisão permite estabelecer regulações tanto no nível do indivíduo quanto no nível da massa. O profiling é uma técnica que se dirige à multiplicidade dos sujeitos, mas com efeitos e consequências muito claras para cada elemento. Ordenar e regular a vida dos indivíduos, é este o objetivo de tecnologias como o profiling, que são manifestações contemporâneas do que Foucault (1999a, p. 131) chama de biopolítica.

Foucault (2005, p. 289) sustenta que a biopolítica é o outro pólo da disciplina e funciona integrando-a e implantando-se nela, mas se expandindo para outra escala. A biopolítica aplica-se à

a vida dos homens, [...] ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite [...], ao homem-espécie. [...] a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. [...] a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. [...] depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante. (ibid.)

Com a administração da multiplicidade dos homens surge a ideia de população como um corpo múltiplo, necessariamente numerável e perceptível (FOUCAULT, 2005, p. 288). Os fenômenos que se manifestam a partir da organização dos sujeitos como população são fatos coletivos (ibid., p. 289). Vistos a partir de cada indivíduo, tais fenômenos se apresentam como

especially when it uses searchable databases and networked communications, works through automatically 39

categorizing people’s data so that different groups may be treated differently. Simply being in a statistical group sets you up for inclusion or exclusion, access or denial. Having nothing to hide simply does not help to protect you from any negative effects that surveillance might have.

contingências, sendo relevantes apenas quando pensados ao nível da massa, a partir da qual é possível extrair constantes e previsões (ibid.) que permitem intervir no nível mesmo das determinações desses fenômenos gerais, estabelecendo mecanismos reguladores que permitem fixar neles um equilíbrio, uma regulação (idem, p. 293).

Para lidar com a população, prever suas contingências e melhor administrá-la, diferentes tecnologias para a produção de saberes foram criadas durante o período da Modernidade, entre elas a estatística, “ciência do Estado” (ibid., p. 134). Consistindo na coleta e organização sistemática de informações sobre cidadãos e fatos (HACKING, 1990 apud BRUNO, 2013, p. 149), a estatística permite reconhecer regularidades próprias à população, tais como taxas de mortalidade e natalidade, quantidade de doentes e suas patologias etc. Conhecendo estas regularidades, é possível estabelecer previsões e medições globais em torno de fenômenos que, à primeira vista, parecem puro acaso, e, a partir daí, intervir de forma direta sobre tais fenômenos, mesmo em escala global, fixando um equilíbrio, uma média global (FOUCAULT, 2005, p. 293). A estatística foi determinante para a constituição da “máquina burocrática” dos Estados modernos (BRUNO, 2013, p. 149-150) e para a eficiência de regulações globais impostas às populações. Afinal, como pontua Foucault (2004 apud. BRUNO, 2013, p. 18), governo é a arte de conduzir condutas, condução realizada a partir do conhecimento gerado por meio das informações adquiridas sobre uma população e sobre cada indivíduo.

As sociedades contemporâneas são, como aponta Fernanda Bruno (2013, p. 150), herdeiras da máquina burocrática moderna, ao mesmo tempo que são “atravessadas por novos processos e tecnologias que não apenas apontam a intensificação de mecanismos passados, mas também a emergência de modelos diferenciados de monitoramento e coleta dos dados” (ibid.). Como uma técnica de coleta e organização de informações, a estatística está na base da lógica de organização e funcionamento do banco de dados, a partir da qual é possível constituir redes de saberes indispensáveis para o exercício de técnicas como o profiling.

Tecnologias como esta, que classificam os sujeitos para melhor administrá-los, definem, para cada sujeito, formas de vida possíveis a partir do que ele é considerado através de seu perfil, sejam existências incluídas nos processos sociais e econômicos ou destes excluídos, sujeitos considerados exemplares ou um risco para a sociedade. Estas tecnologias intervêm no que Rancière (2005) denomina partilha do sensível, "o sistema de evidências

sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas", que fixa um comum partilhado entre os indivíduos e partes exclusivas destinadas a cada um deles. Como complementa o filósofo, "partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce" (RANCIÈRE, 2005, p. 15). Poderíamos complementar afirmando que a partilha do sensível dá visibilidade a quem pode tomar parte nesse comum a partir também daquilo que é, ou a partir de como é classificado. Brisha Borden, por exemplo, como uma moça negra que cometeu um pequeno delito, foi classificada pela obscura ferramenta COMPAS como uma futura reincidente criminal. Uma classificação como essa altera de modo direto as possibilidades de vida de uma pessoa, quais espaços pode ocupar assim como quais funções.

Nos tornamos, deste modo, cidadãos vigiados. Para onde quer que olhemos, somos atravessados por processos de controle e os ecoamos, seja na observação constante dos perfis de pessoas próximas – ou mesmo desconhecidas – em redes sociais, no compartilhamento de localização geográfica com aplicativos de mobilidade ou no isolamento nas salas de pré- triagem de aeroportos internacionais. Estas formas de vigilância, passivas ou ativas, consentidas ou não, envolvem necessariamente dados. Os olhares sobre estes são múltiplos, assim como os fins que incidem sobre eles.

Uma vigilância levada ao ápice, que se exerce de todos por todos (é importante salientar que, naturalmente, há assimetrias gritantes entre o poder de observação de diferentes agentes), é, como aponta Lyon (2018a, p. 152), uma “vigilância sem suspeito”. Acumulam-se dados em uma magnitude que escapa à compreensão, produzindo, também, provas, mesmo sem crime, de cidadãos vigiados que são considerados terroristas virtuais (AGAMBEN, 2009, p. 49), cuja periculosidade é sempre latente. O artista bengali-estadunidense Hasan Elahi evidencia a questão em sua obra em andamento Tracking Transience. Elahi, graças a uma informação errônea passada a autoridades policiais, se tornou alvo, em 2002, de uma investigação intensa por parte do FBI, que havia recrudescido sua “caça ao terror” após o 11 de Setembro. Terrorista até que se provasse o contrário, o artista foi interrogado diversas vezes, passando, inclusive, por nove testes de detecção de mentira, até que qualquer suspeita que incidisse sobre ele fosse dispensada. A partir do ocorrido, Elahi concebeu seu projeto,

composto por um dispositivo de “automonitoramento”, o qual transmite para um website , de 40

forma contínua, sua localização exata, assim como seus dados financeiros e registros de comunicação (figura 8). Os dados vão sendo somados, formando uma base com milhares de fotos de aeroportos por onde Elahi passou, alimentos consumidos e banheiros públicos utilizados nestes lugares, e, dentre os desdobramentos da obra, há performances, instalações (figura 9) e o próprio website para o qual as imagens capturadas são enviadas, que funciona como uma forma de álbum de fotos incômodo, que, ao mesmo tempo que é banal e repetitivo, revela a crueldade da totalidade das formas de monitoramento atuais. O artista propõe, a partir da obra, uma crítica incisiva ao modo de funcionamento da vigilância contemporânea, que junta, de maneira indiscriminada, provas antes mesmo de haver qualquer crime – ou apesar mesmo de não haver qualquer crime. A vigilância de si surge como uma forma de contravigilância, se protegendo do escrutínio inverificável ao fazer de sua vida, incluindo os mais banais e ridículos pormenores, totalmente pública.

Figura 8: Imagem do website do projeto Tracking Transience

Fonte: http://elahi.umd.edu/track/

http://elahi.umd.edu/track/ 40

Figura 9: Instalação a partir de imagens do projeto Tracking Transience

Fonte: http://www.elahi.umd.edu/documents/installations_sundance.html

Os modos como dispositivos contemporâneos utilizam e praticam técnicas de

profiling são também problematizadas por mim na obra Por que é que a gente tem que ser...?,

onde parto de tendências atuais de criações automatizadas de perfis, as quais reverberam, cada vez mais, em diferentes ambientes, inclusive o acadêmico. No próximo capítulo apresentarei em profundidade o projeto.

Técnicas como profiling e outras formas de classificação não podem ser pensadas descoladas de seu aspecto político, de embates em torno de uma experiência comum. Investigar, como proponho neste trabalho, exercícios contemporâneos de poder, suas tecnologias e que tipos de sujeitos formam, tem a ver diretamente com a política nestes termos, de construção e disputas em torno de uma experiência sensível comum. No próximo tópico, analiso o big data, aparato que alimenta os motores de novas técnicas de regulação.

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