• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 ACESSO À JUSTIÇA E JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO

2.2 Estado democrático, processo civil e acesso à justiça: uma convergência necessária

2.2.2 O desafio do acesso à justiça

A necessidade de tornar a justiça acessível a todos é uma importante faceta de uma tendência que marcou os sistemas jurídicos mais modernos deste século. A relevância é tamanha que, quando observamos as constituições ocidentais mais progressistas do século XX, é possível evidenciar determinadas características que revelam o esforço em integrar as liberdades individuais tradicionais – incluindo aquelas de natureza processual – com as garantias e direitos sociais, essencialmente destinados a tornar as primeiras a todos acessíveis e, por conseguinte, a assegurar uma real, e não meramente formal igualdade perante a lei.29

27 VIEIRA, André Luiz Valim. Direito social à alimentação: tutela jurisdicional e efetividade do direito fundamental. 2012. 301 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2012. p. 244-245.

28 BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 242.

Muito embora a problemática do acesso a uma ordem jurídica justa30 já se fizesse sentir no início deste século, a exigência de um aprofundamento reflexivo sobre a questão somente se faz perceber no pós-guerra. Isso porque será nesse contexto histórico que os chamados “novos direitos” irão eclodir, sendo consagrados constitucionalmente e, com isso, o direito de acesso à justiça passa a ser um verdadeiro instrumento de sua garantia. Para Boaventura de Souza Santos, uma vez ausentes os mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os direitos sociais e econômicos se tornariam meras declarações políticas com conteúdo e função mistificadores.

Daí a constatação de que a organização da justiça civil e em particular a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo investigar se as funções sociais por ela desempenhadas e, em particular, o modo como as opções técnicas no seu seio veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou, mesmo, antagônicos.31

A temática do acesso à justiça, sem dúvida, está intimamente ligada à noção de justiça social. Podemos até dizer que “o acesso à justiça” é o “tema-ponte” a interligar o processo civil com a justiça social. Tal perspectiva, porém traz à tona, ainda, a desmistificação da neutralidade ideológica do juiz32 e do processualista. O juiz e o processualista, se um dia realmente se pensaram ideologicamente neutros, mentiram a si próprios, pois a afirmação de neutralidade já é opção ideológica do mais denso valor, a aceitar e a reproduzir o status quo. Por isso é necessário deixar esclarecido que o tema do acesso à justiça, a permear o processo civil, é opção ideológica desmistificadora da neutralidade científica imposta pela dogmática.33

Dessa forma, é preciso ter em mente que estudar o direito processual civil por meio da perspectiva do acesso à justiça faz aflorar toda uma problemática que se encontra inserida em um contexto social e econômico. Outrossim, justifica-se a necessidade do processualista socorrer-se de outras ciências e de dados estatísticos, a fim de compreender as causas de expansão da litigiosidade e os modos de solução e acomodação.

30 A expressão é cunhada por Kazuo Watanabe que afirma ser o acesso à justiça um direito do consumidor uma vez que uma se trata de uma justiça inserida e comprometida com a realidade social do seu país. Para o autor a expressão “acesso à justiça” pode dar a falsa ideia de restrição ao acesso aos órgãos judiciais, preferindo a terminologia acesso à ordem jurídica justa, pois se trata de proporcionar mais do que simplesmente o acesso à Justiça enquanto órgão estatal. (WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. (Coord.). Participação e processo. São Paulo: RT, 1988. p. 134.

31 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 54. 32 Cf. GROSSI, Naiara Souza. A flexibilização do papel do magistrado nas sociedades de massa a partir do

direito fundamental à tutela jurisdicional adequada. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2799, 1 mar. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18599>. Acesso em: 26 mar. 2014.

Nos dizeres de Luiz Guilherme Marinoni34:

O processualista precisa certificar-se de que toda técnica processual, alem de não ser ideologicamente neutra, deve estar sempre voltada a uma finalidade social; de convencer-se, ainda, de que não somente os órgãos judiciários tradicionais têm condições para solucionar os conflitos de interesses.

O construtor jurídico35, por sua vez, tem o dever de imbuir-se da mentalidade instrumentalista, já que falar em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade significa como diz Cândido Rangel Dinamarco36, falar dele como algo posto à disposição das pessoas com vistas a fazê-las mais felizes (ou menos infelizes), mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas. Melhor é falarmos, então, em acesso à ordem jurídica justa, acesso à justiça quer dizer acesso a um processo justo, a garantia de acesso a uma justiça imparcial, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as especificas situações de direito substancial. Acesso à justiça significa ainda acesso à informação e à orientação jurídicas e a todos os meios alternativos de composição de conflitos.

O acesso à ordem jurídica justa é, antes de tudo, uma questão de cidadania. A participação na gestão do bem comum através do processo cria o paradigma da cidadania responsável; responsável pela sua historia, a do país, a da coletividade. Nascido de uma necessidade que trouxe à consciência da modernidade o sentido democrático do discurso, ou seja, o desejo instituinte de tomar a palavra, e ser escutado. É necessário, portanto, que também a jurisdição seja pensada com vários escopos, possibilitando o surgir do processo como instrumento de realização do poder que têm vários fins.37

34 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 22. 35 No presente trabalho adotamos uma visão constitucional do processo. Ao longo do trabalho permeamos esta

visão e buscamos deixar claro, por respeito ao leitor, que a adoção deste paradigma e dos seus conseqüentes cortes temáticos são uma opção metodológica nossa a fim de observar o avanço proposto pelo projeto de novo Código de Processo Civil no que se refere a adoção de um sistema de respeito aos precedentes judiciais (objeto desta pesquisa). Dessa forma, acreditamos que para além do apoio em doutrinadores que compartilham deste posicionamento, a nomenclatura na redação da Dissertação se faz igualmente importante em alguns momentos a fim de ressignificar estruturas. Este é um caso. Comumente encontramos a referência “operadores jurídicos”, preferimos a redação “construtores” por acreditar que o Direito não é estático e manuseável tal qual uma máquina, mas sim produto de uma construção constante.

36 “Mais do que um principio, o acesso à justiça é a síntese de todos os princípios e garantias do processo, seja a nível constitucional ou infraconstitucional, seja em sede legislativa ou doutrinária e jurisprudencial. Chega-se à idéia do acesso à justiça, que é o pólo metodológico mais importante do sistema processual na atualidade, mediante o exame de todos e de qualquer um dos grandes princípios.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 2. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1990. p. 434). 37 MARINONI, 1996, op. cit, p. 22-23.

Dessa forma, percebemos que a questão do acesso à justiça exige, antes de tudo, uma mudança de mentalidade, ou seja, a justiça deve ser pensada na perspectiva dos consumidores da prestação jurisdicional. Na atualidade, a perspectiva que prevalece ainda é a do Estado, quando não a do ocupante temporário do poder, pois, “[...] como bem ressaltam os cientistas políticos, o direito vem sendo utilizado como instrumento de governo para a realização de metas e projetos econômicos, predominando a ética da eficiência técnica, e não a da equidade e do bem-estar da coletividade.” 38

Nesse diapasão, torna-se necessário que a jurisdição e o tema do acesso à justiça passem a ser focalizados com base nas linhas do próprio Estado democrático de direito. Isto é, a jurisdição deve visar à realização dos próprios fins do Estado; fins que tomam a liberdade e a igualdade em termos que diferem amplamente daqueles que influenciaram as mais prestigiadas teorias sobre a jurisdição. O acesso à justiça, por sua vez, deverá objetivar a superação das desigualdades que impedem o seu acesso, bem como a participação através do processo mediante paridade de armas, inclusive a participação do cidadão na gestão do bem comum, ponto, esse ultimo, que também está entre os escopos da jurisdição.39