• Nenhum resultado encontrado

O desafio de encontrar alternativas para os que ficam pelo meio do caminho:

1 O MEIO DO CAMINHO E A PROPOSIÇÃO DA TRILHA

1.4 O desafio de encontrar alternativas para os que ficam pelo meio do caminho:

No contexto particular, vivi a angústia de saber que quase fiquei pelo meio do caminho e que posso ter deixado muitos estudantes e professores também pelo meio do caminho. Entretanto, no contexto nacional, durante várias décadas, era perfeitamente concebível deixar milhões de brasileiros pelo meio do caminho. A lógica dos excluídos se consagrou e os que ficam pelo meio do caminho passaram a ser considerados como um problema apenas na história recente.

A partir de então, a questão do fracasso escolar passou a ser uma pedra no meio do caminho de educadores e políticos, e a busca pelos responsáveis se intensificou. Quem é responsável pelo fracasso escolar: os estudantes, os professores, a escola ou o sistema de ensino?

Para Charlot (2000, p.16), o objeto “fracasso escolar” não existe como tal, mas se caracteriza como um conjunto de “fenômenos, observáveis, comprovados, que a opinião, a mídia, os docentes agrupam sob o nome de fracasso escolar”. O autor insiste na ideia de que o fracasso escolar não existe como uma coisa, ou seja, não é possível contextualizá-lo como algo isolado.

A noção de fracasso escolar remete para fenômenos designados por uma ausência, uma recusa, uma transgressão – ausência de resultados, de saberes, de competência, recusa de estudar, transgressão das regras... O fracasso escolar é “não ter”, “não ser”. (CHARLOT, 2000, p.17)

Assim, as reflexões em torno do fracasso escolar exigem sempre uma análise das diversas relações que engendram as situações de fracasso. Por este motivo, não é possível afirmar quem é responsável pelo fracasso escolar porque, na condição de fenômeno, exige uma análise dos aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos que foram determinantes ao longo da história.

O que se constata na história recente é que as situações de fracasso escolar estão naturalizadas no contexto educacional, e o que gera espanto, por oposição, são as situações de sucesso escolar. Na minha experiência profissional também fui surpreendida com uma experiência de sucesso. Em 2007, fui convidada a integrar a equipe de formadores do ICEP – Instituto Chapada de Educação e Pesquisa e me deparei com uma proposta de formação continuada com resultados surpreendentes. O Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP) é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, com sede em Caeté-Açu, distrito de Palmeiras, na Chapada Diamantina. A história desta instituição teve início em 2000, com a criação do Projeto Chapada, uma iniciativa de um grupo de professores, profissionais liberais, membros de organizações da sociedade civil e gestores municipais de 12 municípios da Chapada Diamantina, sob a liderança da educadora Cybele Amado de Oliveira, atual presidente da instituição, com a finalidade de responder ao desafio de melhorar a qualidade da educação pública municipal, em uma região com o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do estado e última colocada quanto ao Índice de Desenvolvimento Social, conforme dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI-BA 2002).

O Projeto Chapada enfrentou enormes desafios a partir de um processo inicial de avaliação diagnóstica da situação, partilha destes resultados com a comunidade, seguido de um processo de formação continuada em serviço para professores, coordenadores pedagógicos e diretores escolares, com foco na Leitura e Escrita. No início, grande parte das secretarias de educação dos municípios parceiros do projeto não possuíam equipes técnicas, e as escolas não contavam com a figura do coordenador pedagógico.

O Projeto Chapada começou atuando apenas no município de Palmeiras. Em 2000, 12 municípios integravam o projeto e, em 2005, totalizavam 25 redes municipais de ensino. Em 2006, os excelentes resultados gerados pelo Projeto deram origem ao Instituto Chapada de Educação e Pesquisa, ampliando o raio de ação da tecnologia social desenvolvida ao longo de quase dez anos de trabalho.

O ICEP articula uma grande rede social, formada por diversos setores da sociedade civil, redes públicas de ensino e poder político, em prol da desnaturalização do fracasso escolar e da melhoria da educação nos municípios parceiros. Isto ocorre através da mobilização e implementação de ações conjuntas entre as secretarias de educação, as equipes técnicas, os diretores escolares, os coordenadores pedagógicos e os professores alfabetizadores.

O Projeto Chapada atua no sentido de colaborar para a formulação de políticas públicas educacionais de qualidade, pautadas em diretrizes legais. A formação continuada de educadores articulada ao contexto de trabalho, a estruturação e reestruturação das secretarias municipais de educação e a composição de quadros de formadores regionais são importantes produtos das atividades desenvolvidas pelo ICEP. Em 2010, Boa Vista do Tupim, Piatã e Ibitiara foram os três melhores IDEBs10 do Estado da Bahia, todos vinculados ao Instituto Chapada desde 2000.

Esse resultado é fruto das ações afirmativas em prol da qualidade do sistema público e da sustentabilidade das políticas públicas educacionais de uma rede colaborativa pela qualidade da educação. O ICEP compreende a educação como um direito social e, por este motivo, a luta pela superação do analfabetismo é compreendida pela instituição como uma ação política.

Entre os municípios parceiros do Projeto Chapada, o que mais me chamou a atenção foi Boa Vista do Tupim, localizado a 318 km de Salvador e com 18.000 habitantes aproximadamente, sendo 64% na zona rural, de acordo com o Censo Demográfico 2010. No ano 2000 ocupava a 274º posição no ranking do IDH-M do estado da Bahia e, em 2005, o IDEB era de 2,2.

10O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) é um indicador de qualidade educacional que

combina informações de desempenho em exames padronizados (Prova Brasil ou Saeb) – obtido pelos estudantes ao final das etapas de ensino (4ª e 8ª séries do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio) – com informações sobre rendimento escolar (aprovação)

Em 2009 fui convidada a atuar no município, como formadora externa dos coordenadores pedagógicos do Ensino Fundamental I. Nesta aproximação identifiquei uma inversão da lógica que determina o fracasso escolar como algo natural. Boa Vista do Tupim havia consolidado a crença de que todos os estudantes poderiam aprender a ler e a produzir textos na escola, independente das condições socioculturais do município.

Em Boa Vista do Tupim não havia espaço para discussões sobre o fracasso escolar. Os educadores que lá encontrei não identificavam a formação precária dos professores, a dificuldade dos pais em acompanhar os filhos ou até mesmo a pobreza como justificativa para os que ficavam pelo meio do caminho. O que estava naturalizado não era o fracasso, mas as possibilidades de produção do sucesso escolar existentes em cada sala de aula das escolas da rede municipal.

Esta certeza também foi referendada pelos resultados do IDEB em 2007 e 2009, que garantiram a Boa Vista do Tupim, por dois anos consecutivos, o primeiro lugar no

ranking estadual. Entretanto, a publicação do resultado de 2011 gerou, entre os

educadores, grande surpresa. A Tabela 3 mostra a evolução do IDEB entre 2005 e 2011.

Tabela 3 – Evolução do IDEB de Boa Vista do Tupim entre 2005 e 2011

Boa Vista do Tupim 5º ano 2005 2007 2009 2011

IDEB 2,2 4,8 5,8 4,0

Proficiência em Língua Portuguesa 134,20 187,16 210,82 162,34 Proficiência em Matemática 148,60 206,51 240,78 176,83

Taxa de Aprovação 0,69 0.90 0,91 0.93

Crescimento + 118% + 21% - 31%

Fonte: http://www.portalideb.com.br/

Inicialmente, os educadores não encontraram razões para a queda nos resultados do IDEB em 2011, porque o município havia consolidado ainda mais o investimento na formação continuada, a realização periódica de avaliações diagnósticas e a implementação de planos de apoio pedagógico para os alunos com mais dificuldades. Boa Vista do Tupim mostrou-se inconformado diante deste cenário e, na tentativa de

compreender o que havia acontecido, identificou uma queda significativa nos resultado da Prova Brasil aplicada no 5º ano da Escola Abraham Lincoln.

A Professora Sandra Oliveira Lima, membro da equipe técnica municipal responsável pela formação continuada dos diretores escolares, realizou um acompanhamento à escola e publicou em seu relatório a seguinte análise:

IDEB Abraham Lincoln 2009: 6.5 IDEB Abraham Lincoln 2011: 3.5

Intervenientes considerados pela escola que impactaram negativamente o resultado:

A turma dos alunos que fizeram a Prova Brasil estava composta de alunos repetentes, aprovados com ressalva e consequentemente com distorção idade/série. Compreende mais de 90% dos alunos.

O reforço para essa turma só iniciou em julho. A Diretora alega que solicitou da secretaria de educação uma professora para o reforço, mas só foi atendida em julho. Porém, a escola reconhece que deveria ter planejado uma ação mais específica de apoio para esses alunos. Foram realizadas, antes do reforço, atividades diferenciadas, investimento em atividades de leitura, mas avaliam que precisavam de um apoio mais sistemático.

Outro aspecto que a escola traz diz respeito à dificuldade dos alunos em trabalhar com o gabarito da Prova Brasil. Apesar de terem planejado algumas situações de gabarito, os alunos demonstraram muita dificuldade e acreditam que muitos deles marcaram errado no gabarito e certo na prova.

Esta análise, realizada pela Professora Sandra Oliveira Lima, em parceria com os educadores da Escola Abraham Lincoln, revela as fragilidades do IDEB, compreendidas desde as questões mais amplas, como a dificuldade em garantir o acompanhamento aos alunos que necessitavam de mais ajuda, até o preenchimento do gabarito.

Ao focalizarmos o IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – reconhecemos que ele remete a um conceito muito abrangente. Portanto, julgamos temeroso dizer que determinada escola tem um maior ou menor índice de desenvolvimento educacional a partir do fluxo escolar e do desempenho dos alunos medidos através das avaliações externas. Ainda que essas duas variáveis – fluxo e desempenho escolar – sejam sintéticas – abarcando, portanto, outras dimensões internas – não há como negar a fragilidade do processo através do qual observa-se pontualmente o resultado de avaliações externas e o retrato do fluxo escolar. (CALDERANO, BARBACOVI e PEREIRA, 2013, p. 13 e 14)

Aos poucos, diante destas reflexões, os educadores de Boa Vista do Tupim foram compreendendo que o IDEB era capaz de avaliar apenas uma contingência e não a realidade educacional em sua complexidade. Por este motivo, nem o fato de ter o 1º lugar no ranking estadual significava que todos os problemas estivessem resolvidos, nem a sua queda representava um retrocesso. Ao contrário, o estranhamento inicial dos educadores baseava-se justamente na certeza de que “estavam melhores” em 2011 do que nos anos anteriores.

Esta análise dos resultados do IDEB foi me mostrando que os educadores de Boa Vista do Tupim tinham muito a mais a dizer, sobre como é possível transformar um contexto educacional, do que os índices e indicadores sociais. A queda do IDEB significou para esta rede de ensino mais uma possibilidade de debate na dimensão pública, que certamente contribuiu para o desenvolvimento profissional de todos os envolvidos. Vale destacar também que a mudança do grupo político, na eleição de 2012, resultou na descontinuidade da política pública de formação continuada implementada no município, em parceria com o ICEP.

Boa Vista do Tupim era uma rede que respondia, mas respondia àquilo que um determinado grupo sonhava, que queria muito aquilo, que orquestrava junto. Mas no momento que esse grupo se desfez isso tudo acabou. (Thaís Pinheiro Costa Mascarenhas – Coordenadora Geral do Ensino Fundamental I)

Os profissionais que lideravam as ações que garantiam sustentação à política de formação continuada foram demitidos ou transferidos para a zona rural. A força histórica do coronelismo da Chapada Diamantina se impôs no contexto social, e a comunidade não encontrou forças para lutar pela manutenção do que já havia sido construído.

Apesar dos impactos negativos da descontinuidade política e da queda no IDEB, Boa Vista do Tupim continuou sendo um fenômeno que merecia ser compreendido. Isto se justifica porque as ações empreendidas pelos educadores da rede municipal, entre 2000 e 2012, superaram as adversidades contextuais e estruturais, em prol da realização de um projeto de educação que desnaturalizou o fracasso escolar e ampliou significativamente as possibilidades de produção do sucesso escolar, garantindo dignidade a quem é profissional.

Assim, diante do confronto entre as reflexões sobre os que ficam pelo meio do caminho e a experiência de Boa Vista do Tupim, identifiquei um problema de pesquisa que me pareceu interessante. Em um contexto em que ficar pelo meio do caminho parece estar naturalizado, é surpreendente que um município, aparentemente condenado pelos condicionantes socioculturais, consiga mudar as regras do jogo do seu campo educacional, garantindo a qualificação das práticas educativas e, consequentemente, melhores resultados na aprendizagem de seus estudantes. Como isso aconteceu? Como os sujeitos se reposicionaram neste contexto e mudaram a lógica do fracasso para uma situação de sucesso?

Essas questões ganharam força, e a necessidade de um estudo mais verticalizado se impôs. Portanto, o que pretendo com esta pesquisa não é enumerar uma lista de fatos, mas problematizar as experiências dos diversos sujeitos envolvidos nesta situação de sucesso e compreender, principalmente, como as relações entre as diversas ações engendradas no campo educacional de Boa Vista do Tupim consolidaram as mudanças que impactaram positivamente o índice de alfabetismo dos estudantes.

A iniciativa de tomar as situações de sucesso como objeto de análise e pesquisa encontra apoio no que sugere Boaventura de Souza Santos (2004), quando afirma que a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante e ainda mais, quando denuncia que esta riqueza social está sendo desperdiçada. Para tanto propõe uma razão cosmopolita que pretende criar condições para a valorização da “inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje” (p. 779).

No Brasil, outros pesquisadores, a exemplo da Professora Bernadete Gatti, também demonstram interesse pelas “riquezas sociais”. Ao organizar a publicação do Seminário Internacional “Construindo Caminhos para o Sucesso Escolar”, realizado pela UNESCO, reconheceu que:

Nos últimos anos, considerando a sequência histórica, os resultados educacionais do país mostram a construção de um caminho de recuperação do tempo perdido, de séculos, na verdade. Porém, os esforços na direção do desenvolvimento da educação básica ainda devem ser muito grandes e bem direcionados. Políticas consequentes, nacionais, regionais e locais são mais do que necessárias, são imperativas. (GATTI, 2008, p. 24)

Imperativo também se torna a busca pela compreensão destes caminhos. Por isto, assumo neste trabalho o desafio de interrogar-me sobre o significado que os sujeitos envolvidos extraem ou conservam daquilo que experienciam ao longo das mudanças operadas no campo educacional de Boa Vista do Tupim. Desta forma, será possível se aproximar do modo pelo qual esses profissionais trilharam esse caminho, como se mobilizaram e como se articularam para garantir melhores resultados na aprendizagem dos estudantes.

Por fim, vale esclarecer a minha posição ideológica acerca da escolha por uma situação de sucesso. Aos que questionarem por que não estudar uma história de fracasso e nela intervir para contribuir de modo efetivo na superação de suas dificuldades, eu responderei que a investigação em torno das causas do fracasso escolar já foi amplamente realizada e o conhecimento construído a partir do que não deu certo indicou com mais precisão o que não deve ser feito do que apontou caminhos concretos para suplantar tantas dificuldades. A minha escolha por uma situação de sucesso é porque penso que é possível alcançar melhores resultados. Basta de deixar estudantes e professores pelo meio do caminho. Basta de produzir o fracasso, precisamos unir esforços para encontrar um caminho que ofereça melhores condições aos estudantes de aprender a ler e a escrever na escola.

2 PRIMEIRA ANCORAGEM DA TRILHA: a formação continuada como um